Falar de Terrence Malick é falar, de certa forma, de dois diretores diferentes. O primeiro deles, o T.M. da década de 70, que entregou dois filmes fantásticos e desapareceu da mídia. O segundo, o T.M. de hoje, que vinte anos depois voltou à direção bem diferente do que havia sido e, ainda assim, continuou a ser Terrence Malick. Ter essa capacidade de mudar permanecendo o mesmo é um atributo de poucos artistas, somente os reais autores podem fazê-lo, e Malick se encaixa perfeitamente no tipo, por ter uma visão de mundo e uma maneira de expressá-la, um estilo enfim, únicos.
Os filmes do diretor são marcados por algumas características especiais. Formalmente falando, a beleza plástica é o que mais surpreende. Especialmente nos filmes de sua primeira fase, os quadros do homem cercado pela natureza e por vastas paisagens são estonteantes. É realmente inacreditável a visão que Malick tem para esse tipo de composição. Obviamente, é inútil tentar descrever, mas se todo o resto nos filmes dele fosse assustadoramente ruim, só a beleza visual já bastaria para torná-los aprazíveis de se assistir. Quanto aos temas de seu trabalho, como bom autor que é, Malick privilegia um: a relação do homem com a natureza. Daí, ele busca retirar algumas variações, mas até agora todas deram contas do ser humano que busca se encontrar como indivíduo, seja procurando pelo sagrado ou saindo viajando por aí, e matando algumas pessoas pelo caminho.
Esse último é o caso de Terra de Ninguém, o primeiro filme de Malick e o que abre o ciclo de análises de seus filmes aqui no blog. Baseado numa história real, o filme conta sua história lentamente, bem ao estilo do TM1 (o Malick dos dois primeiros filmes, como o chamaremos daqui pra frente). Sem pressa, são mostradas cenas que revelam pouco a pouco o que os personagens são e o que eles estão fazendo. Esse estilo é particularmente capaz de surpreender, pois nada do que acontece no filme é previsível: ele começa como a história de um lixeiro que tem um caso com a filha única de um viúvo, e aos poucos se transforma em um filme de serial killer. A paciência de Malick é enorme, mas ao mesmo tempo ponderada, visto que esse filme tem só 90 minutos, e ainda assim consegue dar conta de uma história relativamente extensa.
Kit (Martin Sheen), o lixeiro, começa a ter um caso com Holly (Sissy Spacek), a garota. O pai dela desaprova o relacionamento dos dois e, após um desentendimento com ele, Kit acaba matando-o. Os dois então queimam a casa e fogem, passando a viver nas badlands americanas. As circunstâncias levarão Kit a matar cada vez mais gente, porém, até que o casal se torna um caso nacional. No entanto, se a frieza de um psicopata é algo notório, o que surpreende é a quase indiferença com que Holly encara tudo aquilo. Sendo narradora da história, é ela que imprime, de maneira geral, o espírito da narrativa, e a narrativa é seca, contemplativa, sem melodrama. Kit vai matando e fugindo com Holly, mas quando é preso age naturalmente é consegue até divertir os soldados responsáveis pela sua captura. Já a menina vê até a morte do próprio pai sem histeria, e parece estar o filme todo tomada por uma apatia.
Isso, porque, como já comentei, o interesse de Malick é no ser humano que procura seu lugar, e, embora o destaque do enredo, quanto ao desenvolvimento da história, seja Kit, a verdadeira protagonista é Holly. Podemos encarar Terra de Ninguém como um perturbador relato das ações e da personalidade de um serial killer, o que é bem válido. Mas é ainda mais profundo encará-lo como uma história de formação, de perda da inocência e contato com o mundo. Como Holly nos conta no início do filme, sua mãe morreu e seu pai mudou-se com ela para uma pequena cidade, longe de sua perda. E é só com Kit que ela abandona aquele local, é Kit o seu guia na “jornada do herói” do homem comum (mulher comum, no caso), o ser humano extraordinário que a leva por terras estranhas, terras de ninguém onde deve-se viver por conta própria, e depois deixa que ela volte para o “mundo real”, o mundo do dia-a-dia, das situações cotidianas. E aí a apatia da personagem se justifica, como uma arma para resistir aos horrores que presencia ou uma atitude passiva, receptiva para todas as coisas. Seja como for, o espírito da garota, narradora que é, se reflete no espírito do filme, tornando-o também seco e sem arroubos dramáticos. Após Kit ser preso, Holly casa-se com o filho do advogado que a defendeu, e forma uma família. Este é o fim de sua jornada. Mas, para chegar até ali, ela precisou vagar por terras desconhecidas, terras más, tendo por companheiro um assassino, e até chegou a estar entre as nuvens.
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terça-feira, 31 de março de 2009
segunda-feira, 30 de março de 2009
The 1,000 Greatest Films
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Continuando minha saga de divulgação de listas de filmes e livros, trago para vocês hoje a do site They Shoot Pictures, Don't They?, que conta com um singelo ranking de 1000 filmes. Ao clicar no link vocês podem conferir a página com a lista geral, e clicando no menu logo em cima ter acesso a páginas com detalhes e imagens de cada filme. Como uma palhinha, fiquem com os atuais dez primeiros colocados do ranking, e os links para o que eu escrevi sobre alguns deles.
1. Cidadão Kane, Orson Welles
2. Um Corpo Que Cai, Alfred Hitchcock
3. A Regra do Jogo, Jean Renoir
4. 2001: Uma Odisséia no Espaço, Stanley Kubrick
5. 8 1/2, Federico Fellini
6. O Poderoso Chefão, Francis Ford Coppola
7. Rastros de Ódio, John Ford
8. O Encouraçado Potemkin, Sergei Eisenstein
9. Os Sete Samurais, Akira Kurosawa
10. Era Uma Vez Em Tóquio, Yasujiro Ozu
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Continuando minha saga de divulgação de listas de filmes e livros, trago para vocês hoje a do site They Shoot Pictures, Don't They?, que conta com um singelo ranking de 1000 filmes. Ao clicar no link vocês podem conferir a página com a lista geral, e clicando no menu logo em cima ter acesso a páginas com detalhes e imagens de cada filme. Como uma palhinha, fiquem com os atuais dez primeiros colocados do ranking, e os links para o que eu escrevi sobre alguns deles.
1. Cidadão Kane, Orson Welles
2. Um Corpo Que Cai, Alfred Hitchcock
3. A Regra do Jogo, Jean Renoir
4. 2001: Uma Odisséia no Espaço, Stanley Kubrick
5. 8 1/2, Federico Fellini
6. O Poderoso Chefão, Francis Ford Coppola
7. Rastros de Ódio, John Ford
8. O Encouraçado Potemkin, Sergei Eisenstein
9. Os Sete Samurais, Akira Kurosawa
10. Era Uma Vez Em Tóquio, Yasujiro Ozu
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sexta-feira, 27 de março de 2009
Citação de Sexta: Duas Cargas
“Na hora certa aconteceu exatamente o que Flask dissera. Assim como antes o ‘Pequod’ se inclinava abruptamente com a cabeça do cachalote, agora, com as duas cabeças a equilibrar o navio, o mesmo ficou na posição normal, embora extremamente pesado, bem podeis acreditá-lo. Assim, ao içar a um costado a cabeça de Locke, fica-se inclinado; mas agora com outra cabeça içada do outro lado, no caso a cabeça de Kant, volta-se ao estado anterior, embora em mísera situação. Assim alguns espíritos mantêm-se para sempre a equilibrar as cargas. Ó tolos! Lançai ao mar essas tempestuosas cabeças, e então será possível flutuar leves e direitos.”
-Herman Melville, Moby Dick
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quinta-feira, 26 de março de 2009
Adaptação
Logo que terminei de ver Adaptação, comecei a pensar sobre o que escreveria na crítica do filme. Com uma certa freqüência fico angustiado nessa situações, tentando compilar impressões e informações sobre o filme num modelo coeso de texto. Apesar disso, porém, sempre escrevo, saia o que sair desse esforço. Dessa vez, até que consegui um resumo interessante do filme. É um filme metalingüístico, que fala de adaptação em vários sentidos. A adaptação das espécies, darwinianamente falando, é só uma pontinha, uma citação, mas as adaptações que realmente importam nele são a dos seres humanos, capazes de mudar muito rapidamente, ainda que isso seja um processo doloroso; e a que de certa forma é a principal do filme, a condutora do enredo, a adaptação de um livro para as telas de cinema, por um roteirista passando por um bloqueio criativo.
Geralmente eu começo com uma introdução sobre o tema, e depois dou a sinopse. Então nada melhor do que construir minha própria sinopse, que não é exatamente a parte mais divertida da brincadeira, principalmente porque eu exagero, mas é necessário. Acho que posso usar essa aqui: Por sua construção fragmentada e circular, Adaptação é um pouco difícil de resumir cronologicamente, mas basicamente é a história de um roteirista, Charlie Kaufman, que é contratado para escrever a adaptação do livro O Ladrão de Orquídeas para o cinema. Charlie tem um irmão, Donald, que também deseja ser roteirista, mas, do ponto de vista de Charlie, só tem idéias óbvias. O problema é que Charlie está passando por um bloqueio criativo, e isso tem a ver com sua própria personalidade ultra-tímida e sua dificuldade em aceitá-la. À medida que lê o livro, ele começa a se sentir atraído pela autora, Susan Orlean, e a imaginar como foi o processo que a levou a escrever aquelas páginas, e o que ela sentiu ao fazê-lo. Atormentado por esses pensamentos, Charlie, após um revelador encontro com um professor de roteiros que ele antes abominava, decide contar, no roteiro, a história da adaptação, mostrando em paralelo sua própria vida, a vida de Susan e os acontecimentos contados no livro. Em resumo: o enredo do filme é a história de sua própria criação.
Eureka! Se o filme conta como ele mesmo foi concebido e criado, a resenha desse filme tem que ser igualmente original e inteligente, não? Desse modo, decidi que a resenha de Adaptação iria contar a história de como eu imaginei a resenha e as idéias que iria colocar nela. Assim tudo ficaria bem. O único problema é que eu comecei a lembrar de uns truquezinhos que o Kaufman, o verdadeiro gênio, usou no filme. A vida de Charlie, sendo o fracasso queria, só poderia render um roteiro ruim mesmo né? Daí ele encheu o filme de narrações em off, que o tio dos roteiros disse ser um crime. Tem também o fator humano da coisa, já que o filme, afinal de contas, é sobre isso. Eu poderia criar um irmão imaginário pra mim, que nem o Charlie fez, mas não acho que daria certo. Até porque uma resenha não é uma história. Eu poderia pedir uma ajudar pro Sr. Lobato Légio e ver o que ele me diria, mas ele não conversa muito comigo. Então resolvi me contentar com minha limitação e deixar o trabalho de gênio para os gênios.
Mas tem também, como normalmente acontece, umas idéias esparsas que eu penso em incluir na resenha mas nem sempre tem espaço para elas. Daí acontece que ou elas ficam deslocadas ou ficam de fora mesmo. Mas eu vou tentar encaixar elas em algum lugar, até porque não é muita coisa. Uma coisa é que esse é o segundo filme do Spike Jonze com o Kaufman. Outra é que o Donald Kaufman, “irmão” do Charlie, foi a primeira pessoa de mentira a ser indicada ao Oscar de Melhor Roteiro, o que com certeza significa alguma coisa – aliás, o filme é dedicado a ele. Outra é que, diferente de Quero Ser John Malkovich, a história desse filme não é surreal, mas plenamente possível de existir. O que há de original nesse filme é a estrutura e, claro, o tema. E a última é que, como em Quero Ser John Malkovich, o humano se sobressai ao “excessivamente criativo”, vulgo bizarro, e torna-se o mais importante, ou seja: embora os truques inteligentes de Kaufman sejam muito legais, o que realmente faz do filme algo significativo é a forma como ele lida com os dramas de Charlie e de Susan, e principalmente a delicadeza e sensibilidade com que trata de Donald, o único protagonista que não existe “de verdade” e ao mesmo tempo o mais carismático, a ponto de sentirmos profundamente a morte dele. Acho que é isso que eu vou ter que encaixar, mas talvez dê para fazer um parágrafo exclusivamente com essas “sobras”.
Dito isso, já tenho bastante coisa para escrever a resenha. Vou deixar bonitinho e bem organizado depois para postar no blog. E acaba de me ocorrer um parágrafo interessante para fechar a resenha:
A adaptação de Darwin acontece à nossa revelia, e a de Lamarck não tem nenhum efeito sobre outros seres. Nós humanos, porém, temos o dom de mudar, de nos adaptar, e esse dom é ao mesmo tempo uma sina e uma necessidade inescapável. Assim, nada mais natural que aceitarmos isso e fazermos de nossos percalços oportunidade para abandonarmos o que não nos serve mais e até mesmo construir a partir deles o caminho para o nosso futuro.
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Geralmente eu começo com uma introdução sobre o tema, e depois dou a sinopse. Então nada melhor do que construir minha própria sinopse, que não é exatamente a parte mais divertida da brincadeira, principalmente porque eu exagero, mas é necessário. Acho que posso usar essa aqui: Por sua construção fragmentada e circular, Adaptação é um pouco difícil de resumir cronologicamente, mas basicamente é a história de um roteirista, Charlie Kaufman, que é contratado para escrever a adaptação do livro O Ladrão de Orquídeas para o cinema. Charlie tem um irmão, Donald, que também deseja ser roteirista, mas, do ponto de vista de Charlie, só tem idéias óbvias. O problema é que Charlie está passando por um bloqueio criativo, e isso tem a ver com sua própria personalidade ultra-tímida e sua dificuldade em aceitá-la. À medida que lê o livro, ele começa a se sentir atraído pela autora, Susan Orlean, e a imaginar como foi o processo que a levou a escrever aquelas páginas, e o que ela sentiu ao fazê-lo. Atormentado por esses pensamentos, Charlie, após um revelador encontro com um professor de roteiros que ele antes abominava, decide contar, no roteiro, a história da adaptação, mostrando em paralelo sua própria vida, a vida de Susan e os acontecimentos contados no livro. Em resumo: o enredo do filme é a história de sua própria criação.
Eureka! Se o filme conta como ele mesmo foi concebido e criado, a resenha desse filme tem que ser igualmente original e inteligente, não? Desse modo, decidi que a resenha de Adaptação iria contar a história de como eu imaginei a resenha e as idéias que iria colocar nela. Assim tudo ficaria bem. O único problema é que eu comecei a lembrar de uns truquezinhos que o Kaufman, o verdadeiro gênio, usou no filme. A vida de Charlie, sendo o fracasso queria, só poderia render um roteiro ruim mesmo né? Daí ele encheu o filme de narrações em off, que o tio dos roteiros disse ser um crime. Tem também o fator humano da coisa, já que o filme, afinal de contas, é sobre isso. Eu poderia criar um irmão imaginário pra mim, que nem o Charlie fez, mas não acho que daria certo. Até porque uma resenha não é uma história. Eu poderia pedir uma ajudar pro Sr. Lobato Légio e ver o que ele me diria, mas ele não conversa muito comigo. Então resolvi me contentar com minha limitação e deixar o trabalho de gênio para os gênios.
Mas tem também, como normalmente acontece, umas idéias esparsas que eu penso em incluir na resenha mas nem sempre tem espaço para elas. Daí acontece que ou elas ficam deslocadas ou ficam de fora mesmo. Mas eu vou tentar encaixar elas em algum lugar, até porque não é muita coisa. Uma coisa é que esse é o segundo filme do Spike Jonze com o Kaufman. Outra é que o Donald Kaufman, “irmão” do Charlie, foi a primeira pessoa de mentira a ser indicada ao Oscar de Melhor Roteiro, o que com certeza significa alguma coisa – aliás, o filme é dedicado a ele. Outra é que, diferente de Quero Ser John Malkovich, a história desse filme não é surreal, mas plenamente possível de existir. O que há de original nesse filme é a estrutura e, claro, o tema. E a última é que, como em Quero Ser John Malkovich, o humano se sobressai ao “excessivamente criativo”, vulgo bizarro, e torna-se o mais importante, ou seja: embora os truques inteligentes de Kaufman sejam muito legais, o que realmente faz do filme algo significativo é a forma como ele lida com os dramas de Charlie e de Susan, e principalmente a delicadeza e sensibilidade com que trata de Donald, o único protagonista que não existe “de verdade” e ao mesmo tempo o mais carismático, a ponto de sentirmos profundamente a morte dele. Acho que é isso que eu vou ter que encaixar, mas talvez dê para fazer um parágrafo exclusivamente com essas “sobras”.
Dito isso, já tenho bastante coisa para escrever a resenha. Vou deixar bonitinho e bem organizado depois para postar no blog. E acaba de me ocorrer um parágrafo interessante para fechar a resenha:
A adaptação de Darwin acontece à nossa revelia, e a de Lamarck não tem nenhum efeito sobre outros seres. Nós humanos, porém, temos o dom de mudar, de nos adaptar, e esse dom é ao mesmo tempo uma sina e uma necessidade inescapável. Assim, nada mais natural que aceitarmos isso e fazermos de nossos percalços oportunidade para abandonarmos o que não nos serve mais e até mesmo construir a partir deles o caminho para o nosso futuro.
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quarta-feira, 25 de março de 2009
A Roda #16 - O Círculo, a Roda e o Giro
por Lobato Légio
O giro é um movimento fundamental do Universo. Dele todas as coisas se aproveitam, e mesmo nós, mortais conscientes, a ele nos curvamos. Qual não deve ter sido o assombro do primeiro homem que, após vagar maltrapilho por anos observando as formas do mundo e perceber como o arredondado, o círculo, era presente e significativo, pôde se valer de uma roda como instrumento. Nosso ancestral, pela primeira vez capaz de entender o mistério do giro, deve ter sido tomado por um Êxtase sagrado, o espanto fundamental da descoberta, o sentimento de intimidade com os segredos do Universo. Contemplou a obra de suas mãos, e sentiu que ali residia a Verdade do mundo. Baseado no círculo, forma das coisas, fora capaz de construir a roda, um instrumento, e agora poderia se utilizar dela para a prática do movimento que é o único movimento, o espiral, o helicoidal, o elipsoidal, o circular: o giro.
O Círculo. A origem de todas as coisas, a forma do Deus pitagórico, forma perfeita e representação da unidade absoluta, primordial. A forma impossível, oposta em todos os sentidos à limitação da reta, ao único e linear caminho que a reta traça no infinito. A reta se curvou, e Tudo se fez. Do círculo nasceu o Universo, e o Círculo nasceu no Universo. Não por acaso, o útero é antes arredondado que reto, as estrelas são esferas – círculos expandidos – e nossos olhos se constituem dessa mesma forma. O Círculo estava no mundo, e um círculo era o Mundo, e o Homem, tomado pela consciência, percebeu sua maravilha e seu mistério.
A Roda. A primeira ferramenta e o primeiro símbolo. Manifestação, através de mãos humanas, da forma primeva, a forma mãe. O Ancestral tomou a forma em sua mão, tomou a forma em sua mente, tomou a forma em seu espírito e, alinhando-os, reproduziu-a, por seu próprio esforço, a curva que escapa aos olhos e oferece perguntas mais do que respostas. Desde aquele instante de revelação, a eureka inicial, a Roda tem continuado seu translado, levando sobre si, impassível, toda a civilização.
O Giro. O movimento essencial do Universo. O único movimento. É nas revoluções, translações e rodopiar dos átomos que tudo se move, no giro inescapável do tempo e espaço, o movimento que não se esgota. As coisas são porque as coisas giram, e elas giram porque giro é movimento. A estagnação é atribuição do Vazio, e o movimento prerrogativa da existência. É próprio do haver esvair-se, movimentar-se lentamente em direção à anulação, vertiginosamente em direção ao fim. E o movimento utilizado para trilhar esse caminho é o Giro, o rodopiar das coisas, a valsa cósmica ao som da sinfonia silenciosa produzida pelo movimento imperceptível e constante dos elétrons e dos quarks que só pode ter por destino acabar quando os instrumentos pararem de tocar e as luzes se apagarem.
Eis a epítome do Universo: Nascido de Círculo, sendo Círculo, preenchido de Círculo, presencia a sapiência de seres conscientes a ponto de tomar emprestado do que já existia uma forma capaz de servir-lhes e criar uma ferramenta e um símbolo tornado então ubíquo por sua polivalência, a Roda, e sobre essa Roda e esses círculos movimenta-se, girando, na velocidade que lhe cabe, até que os círculos se sobreponham e se aproximem cada vez mais e por fim coincidam, o círculo final, o círculo que não é círculo, o ponto final onde todos os círculos se concentram e giram e rodam para, no instante posterior, após o fim do universo, serem capaz de expandir-se e darem novamente, BANG!, vazão à existência.
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terça-feira, 24 de março de 2009
Quero Ser John Malkovich
De que vale a inovação? Ela é, por si só, uma qualidade maior? Uma obra de arte inteiramente construída sobre a inovação pode ser considerada uma obra-prima? Essa discussão é freqüente nas rodinhas de amantes e estudiosos da arte, e pode até ser incluída entre aqueles temas polêmicos sem consenso à vista. No entanto, se o consenso geral não existe nem nunca vai existir, isso se deve principalmente ao fato de que, para pensar a arte, é sempre melhor analisar um objeto artístico do que ater-se a regras que, de resto, não contemplam integralmente obra alguma. Assim, pensar a arte é analisar a obra, e entender como ela é, e porque ela é daquele jeito.
Pois bem. O tema dessa resenha é o filme Quero Ser John Malkovich, dirigido por Spike Jonze e, mais importante, escrito por Charlie Kaufman, e o intróito serviu para apresentar um tema de relativa importância para o contexto desse filme. O tema do filme em si, entretanto, é outro: E se você pudesse ser outra pessoa? O que é “ser”, afinal? Vejamos: Craig Schwartz (John Cusack), um titereiro (manipulador de marionetes) desempregado, é casado com Lotte (Cameron Diaz) mulher apaixonada por animais que trabalha em um pet shop. Craig arranja trabalho como arquivista em uma empresa localizada no andar 7 ½ de um edifício, onde as pessoas têm de andar curvadas devido ao baixíssimo pé-direito. Lá, Craig encontra uma mulher misteriosa, Maxine, por quem começa a ter uma queda. Um belo dia, ao mover um arquivo, Craig encontra uma porta secreta, e, ao adentrá-la, tem acesso à mente de John Malkovich (o ator), onde permanece por 15 minutos antes de ser jogado às margens de uma auto-estrada. Fascinado pelo acontecimento, Craig decide compartilhá-lo com outras pessoas, e tendo Maxine por sócia passa a cobrar pelo acesso, durante os tais quinze minutos, à mente do ator.
No início do parágrafo anterior, disse que, mais importante do que o diretor, era o roteirista do filme, Charlie Kaufman. Explico: Kaufman, nos últimos anos, se tornou um caso raro na indústria cinematográfica. Em um meio onde a figura do autor reside no diretor, ele se firmou como uma exceção, um escritor de filmes que, até certo ponto, é mais importante que os diretores com quem trabalha. Não que os diretores de seus filmes não sejam importantes: são. Mas a criatividade dos roteiros de Kaufman continua o elemento mais importante. Quanto à marca dos diretores, é facilmente discernível, já que até hoje Kaufman só trabalhou com quatro diretores: Jonze, Michel Gondry, George Clooney e ele mesmo. Dois filmes com cada um dos primeiros e um com cada um dos últimos. Jonze, especialmente, é um contraponto que equilibra as maluquices divertidas de Kaufman. Quero Ser John Malkovich, pode-se dizer, é um registro realista de uma história surreal, assim como alguns filmes do Lynch são registros surreais de histórias realistas. Essa distensão ajuda muito a manter o equilíbrio do filme, causando estranhamento e surpresa, dois elementos importantes para a arte.
Mas voltemos: como se pode ver pela sinopse, o filme é completamente maluco, e sua graça vem principalmente dessa bizarrice. Mas é preciso cuidado: embora seja, em certos aspectos, uma comédia, o filme é na verdade bem depressivo, com personagens acabados e desesperados, a ponto de cometerem atos terríveis para sair do fosso. Isso porque a grande questão do filme é justamente a da busca da identidade. Só que essa busca, como bem ilustra o túnel que leva à mente de Malkovich, é um caminho sujo e escuro. E ao trilhar esse caminho, acabamos nos machucando, e mesmo que no final dele possamos encontrar prazer e rejúbilo, também podemos sentir-nos definitivamente deslocados, inadequados, e acabarmos tentando manipular a nós e aos outros para reorganizar o mundo, ou simplesmente desistir e afundarmos na melancolia. Desse jogo entre inveja, prazer, desejo e identidade o filme tira sua força e, embora a língua com que fale disso tudo nos seja estranha, conseguimos entender, de alguma maneira, o que ele quer dizer.
E então chegamos onde eu queria: a língua que o filme fala, a originalidade gigantesca deste que é um dos roteiros mais criativos que Hollywood já viu. Que o filme é incrivelmente original, isso não se discute, mas a pergunta é: isso basta para fazer dele – e somente dele; não estendo o argumento a mais ninguém – uma grande obra? E a resposta é: não. O filme é, sim, uma grande obra, mas não somente pela originalidade. O problema é que, às vezes, ao se ser original demais, não se sabe aonde ir com toda aquela inovação, e em alguns momentos o filme derrapa um pouco nesse sentido, embora não chegue a rodar. Mas é do elemento humano, do registro seco e da habilidade em conciliar ousadia e significância que o filme cresce para se tornar uma grande obra. A originalidade, aqui, não basta: é necessário fazer alguma com ela. E Kaufman e Jonze, juntos, conseguiram usar a originalidade e o estranhamento como uma caminho para o destino que tinham em mente, para falar da questão da identidade do ser humano - tema universal e atemporal - e, de quebra, tirar um sarrinho do mundo das celebridades.
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Pois bem. O tema dessa resenha é o filme Quero Ser John Malkovich, dirigido por Spike Jonze e, mais importante, escrito por Charlie Kaufman, e o intróito serviu para apresentar um tema de relativa importância para o contexto desse filme. O tema do filme em si, entretanto, é outro: E se você pudesse ser outra pessoa? O que é “ser”, afinal? Vejamos: Craig Schwartz (John Cusack), um titereiro (manipulador de marionetes) desempregado, é casado com Lotte (Cameron Diaz) mulher apaixonada por animais que trabalha em um pet shop. Craig arranja trabalho como arquivista em uma empresa localizada no andar 7 ½ de um edifício, onde as pessoas têm de andar curvadas devido ao baixíssimo pé-direito. Lá, Craig encontra uma mulher misteriosa, Maxine, por quem começa a ter uma queda. Um belo dia, ao mover um arquivo, Craig encontra uma porta secreta, e, ao adentrá-la, tem acesso à mente de John Malkovich (o ator), onde permanece por 15 minutos antes de ser jogado às margens de uma auto-estrada. Fascinado pelo acontecimento, Craig decide compartilhá-lo com outras pessoas, e tendo Maxine por sócia passa a cobrar pelo acesso, durante os tais quinze minutos, à mente do ator.
No início do parágrafo anterior, disse que, mais importante do que o diretor, era o roteirista do filme, Charlie Kaufman. Explico: Kaufman, nos últimos anos, se tornou um caso raro na indústria cinematográfica. Em um meio onde a figura do autor reside no diretor, ele se firmou como uma exceção, um escritor de filmes que, até certo ponto, é mais importante que os diretores com quem trabalha. Não que os diretores de seus filmes não sejam importantes: são. Mas a criatividade dos roteiros de Kaufman continua o elemento mais importante. Quanto à marca dos diretores, é facilmente discernível, já que até hoje Kaufman só trabalhou com quatro diretores: Jonze, Michel Gondry, George Clooney e ele mesmo. Dois filmes com cada um dos primeiros e um com cada um dos últimos. Jonze, especialmente, é um contraponto que equilibra as maluquices divertidas de Kaufman. Quero Ser John Malkovich, pode-se dizer, é um registro realista de uma história surreal, assim como alguns filmes do Lynch são registros surreais de histórias realistas. Essa distensão ajuda muito a manter o equilíbrio do filme, causando estranhamento e surpresa, dois elementos importantes para a arte.
Mas voltemos: como se pode ver pela sinopse, o filme é completamente maluco, e sua graça vem principalmente dessa bizarrice. Mas é preciso cuidado: embora seja, em certos aspectos, uma comédia, o filme é na verdade bem depressivo, com personagens acabados e desesperados, a ponto de cometerem atos terríveis para sair do fosso. Isso porque a grande questão do filme é justamente a da busca da identidade. Só que essa busca, como bem ilustra o túnel que leva à mente de Malkovich, é um caminho sujo e escuro. E ao trilhar esse caminho, acabamos nos machucando, e mesmo que no final dele possamos encontrar prazer e rejúbilo, também podemos sentir-nos definitivamente deslocados, inadequados, e acabarmos tentando manipular a nós e aos outros para reorganizar o mundo, ou simplesmente desistir e afundarmos na melancolia. Desse jogo entre inveja, prazer, desejo e identidade o filme tira sua força e, embora a língua com que fale disso tudo nos seja estranha, conseguimos entender, de alguma maneira, o que ele quer dizer.
E então chegamos onde eu queria: a língua que o filme fala, a originalidade gigantesca deste que é um dos roteiros mais criativos que Hollywood já viu. Que o filme é incrivelmente original, isso não se discute, mas a pergunta é: isso basta para fazer dele – e somente dele; não estendo o argumento a mais ninguém – uma grande obra? E a resposta é: não. O filme é, sim, uma grande obra, mas não somente pela originalidade. O problema é que, às vezes, ao se ser original demais, não se sabe aonde ir com toda aquela inovação, e em alguns momentos o filme derrapa um pouco nesse sentido, embora não chegue a rodar. Mas é do elemento humano, do registro seco e da habilidade em conciliar ousadia e significância que o filme cresce para se tornar uma grande obra. A originalidade, aqui, não basta: é necessário fazer alguma com ela. E Kaufman e Jonze, juntos, conseguiram usar a originalidade e o estranhamento como uma caminho para o destino que tinham em mente, para falar da questão da identidade do ser humano - tema universal e atemporal - e, de quebra, tirar um sarrinho do mundo das celebridades.
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segunda-feira, 23 de março de 2009
10 filmes
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Minha lista de filmes preferidos é, de certa maneira, muito especial. Embora goste muito de listas em geral e as faça com frequência, particularmente em relação aos filmes tenho uma postura mais contida. Isso significa que um número muito pequeno de filmes está de fato entre as minhas preferências. São poucos os que considero como meus preferidos, como os mais amados. E isso se deve a um fato muito bem definido: os únicos filmes que eu coloco no meu rol de prediletos são aqueles que me causam assombro. Aqueles, dentre todos, que perseveram na memória, que espantam, surpreendem, mexem com minhas emoções de uma maneira única. Os que são capazes, enfim, de me induzir a uma catarse sensorial, a um estado de prazer e graça, de bem-estar e reconhecimento.
Assim, posto aqui pela primeira vez uma lista de filmes preferidos. Já fiz listas parecidas, mas essa é a primeira vez que realmente coloco os filmes que, dentre todos, mais me comovem. Alguns, como os primeiros, arrebataram-me logo na primeira vez que os vi. Alguns outros, porém, precisaram amadurecer para serem plenamente compreendidos. O que eles têm em comum, no entanto, é o sentimento indefinível e variável que só a arte é capaz de produzir, aquele reconhecimento espiritual que une, após uma longa separação, dois seres no espaço e no tempo.
Hoje, são esses dez. Amanhã, talvez sejam outros. Mas a paixão pelo cinema continua a mesma. (A diagramação desse top é inspirada pela dos tops do Filmes do Chico)
Minha lista de filmes preferidos é, de certa maneira, muito especial. Embora goste muito de listas em geral e as faça com frequência, particularmente em relação aos filmes tenho uma postura mais contida. Isso significa que um número muito pequeno de filmes está de fato entre as minhas preferências. São poucos os que considero como meus preferidos, como os mais amados. E isso se deve a um fato muito bem definido: os únicos filmes que eu coloco no meu rol de prediletos são aqueles que me causam assombro. Aqueles, dentre todos, que perseveram na memória, que espantam, surpreendem, mexem com minhas emoções de uma maneira única. Os que são capazes, enfim, de me induzir a uma catarse sensorial, a um estado de prazer e graça, de bem-estar e reconhecimento.
Assim, posto aqui pela primeira vez uma lista de filmes preferidos. Já fiz listas parecidas, mas essa é a primeira vez que realmente coloco os filmes que, dentre todos, mais me comovem. Alguns, como os primeiros, arrebataram-me logo na primeira vez que os vi. Alguns outros, porém, precisaram amadurecer para serem plenamente compreendidos. O que eles têm em comum, no entanto, é o sentimento indefinível e variável que só a arte é capaz de produzir, aquele reconhecimento espiritual que une, após uma longa separação, dois seres no espaço e no tempo.
Hoje, são esses dez. Amanhã, talvez sejam outros. Mas a paixão pelo cinema continua a mesma. (A diagramação desse top é inspirada pela dos tops do Filmes do Chico)
1
Apocalypse Now
Apocalypse Now
Francis Ford Coppola, 1979
2
Cinema Paradiso
Nuovo Cinema Paradiso
Giuseppe Tornatore, 1988
3
Oito e Meio
Otto e Mezzo
Federico Fellini, 1963
4
A Felicidade Não Se Compra
It's a Wonderful Life
Frank Capra,1946
5
Cidade dos Sonhos
Mulholland Drive
David Lynch, 2001
6
São Paulo, Sociedade Anônima
São Paulo, Sociedade Anônima
Luiz Sergio Person, 1965
7
Ran
Ran
Akira Kurosawa, 1985
8
O Sacrifício
Offret
Andrei Tarkovski, 1986
9
A Fraternidade é Vermelha
Trois Couleurs: Rouge
Krzysztof Kieslowski, 1994
10
Um Homem Com Uma Câmera
Chelovek s kino-apparatom
Dziga Vertov, 1929
.
Apocalypse Now
Apocalypse Now
Francis Ford Coppola, 1979
2
Cinema Paradiso
Nuovo Cinema Paradiso
Giuseppe Tornatore, 1988
3
Oito e Meio
Otto e Mezzo
Federico Fellini, 1963
4
A Felicidade Não Se Compra
It's a Wonderful Life
Frank Capra,1946
5
Cidade dos Sonhos
Mulholland Drive
David Lynch, 2001
6
São Paulo, Sociedade Anônima
São Paulo, Sociedade Anônima
Luiz Sergio Person, 1965
7
Ran
Ran
Akira Kurosawa, 1985
8
O Sacrifício
Offret
Andrei Tarkovski, 1986
9
A Fraternidade é Vermelha
Trois Couleurs: Rouge
Krzysztof Kieslowski, 1994
10
Um Homem Com Uma Câmera
Chelovek s kino-apparatom
Dziga Vertov, 1929
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sexta-feira, 20 de março de 2009
A Roda #15 - Tratado Universalizante da Xurepa, Parte 1: O Significado da Xurepa - Concepções Xur-Épicas dos Poemas-Mundo
por Lobato Légio
No mundo que nos rodeia, aquele que vemos, que ouvimos, que apreendemos com nossos sentidos; nesse mundo está a Xurepa. Se no capítulo anterior entendemos a manifestação da Xurepa mais próxima a nós, a partir destas letras que se inscrevem diante de vossos olhos passaremos a compreender que nossa percepção das relações xurépicas estão divididas em duas categorias. Para que esse conceito se torne mais claro, no entanto, é necessário um pequeno artifício. Imaginemos que a Xurepa, o relacionamento entre as coisas, seja representado por uma linha ligando essas coisas. Assim, todas as coisas estão ligadas umas às outras por linhas imaginárias (ou invisíveis) que são a manifestação alegórica da Xurepa. Ora, um ser consciente – no nosso caso, humano – que se coloque diante do Mundo e O veja “enxerga”, de maneira indireta, essas linhas. Mas, como já mencionado, existem dois tipos de linha, do ponto de vista do ser consciente: as que saem de si próprio e alcançam os outros entes, e as que não o tocam, mas envolvem as coisas do Mundo que o rodeia. A percepção das linhas do primeiro tipo é chamada pelos estudiosos de Xur-Lírica, enquanto a das linhas do segundo tipo é conhecida por Xur-Épica. Neste capítulo, trataremos de analisar esta última.
Em última análise, todo ser consciente tem, ainda que subconscientemente, uma concepção paranóica da realidade, ou seja: vê relações entre todas as coisas. No entanto, como já sabe quem conhece a Xurepa, todas as coisas estão de fato ligadas umas às outras, e portanto a realidade é, de certa maneira, “paranóica” em si própria. Para o ser consciente comum, não inquisitivo, amortecido talvez pelos anos que o separam do assombramento permanente da infância, somente algumas das relações Xur-Épicas interessam. Há aqueles, porém, que questionam a realidade, desejam conhecer as relações entre cada coisa. São, enfim, seres conscientes ávidos de entendimento Xur-Épico, usualmente conhecidos como cientistas, filósofos, ou simplesmente curiosos. A esses seres, as linhas que ligam as coisas são de suma importância, o conhecimento do que elas representam é essencial, e faz parte da vida entender essas relações.
Como veremos mais detalhadamente adiante, uma das primeiras manifestações da Xurepa, e, mais especificamente, da Xur-Épica, foram os chamados Poemas-Mundo. Nestas obras, desenvolvidas por seitas xurépicas primordiais, buscava-se descrever, pormenorizadamente, as relações das coisas do mundo. Com os olhos livres, os asseclas xurépicos olhavam para o mundo e viam, com clareza e discernimento únicos, as linhas que ligavam as coisas umas às outras, para então, usando da conjunção entre a mente, os sentidos e o espírito, transformar aquele entendimento em linguagem, e imprimir essa linguagem em documentos e obras das quais hoje conhecemos somente alguns exemplares.
Esses asseclas foram os ancestrais do que hoje conhecemos como cientistas ou filósofos, seres conscientes que religiosamente buscavam nas relações entre as coisas respostas para as perguntas que espontaneamente surgiam ao darem-se conta de sua própria existência e da existência das coisas ao seu redor.
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quinta-feira, 19 de março de 2009
Pílulas Cinematográficas, Edição 14: Especial Trilogia das Cores de Kieslowski
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Nos 200 anos da Revolução francesa, o cineasta polonês Krzysztof Kieslowski resolveu filmar o que os velhos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade representavam no mundo de hoje (ou melhor, de 1990). Bem ao seu estilo, porém, o foco que ele deu nessas três abstrações foi pessoal, humano, e não político ou social. Embora possam se extrair interpretações dessa estirpe de sua obra, o que realmente importa aqui são os seres humanos.
De forma absurdamente criativa, ele ligou cada ideal à sua cor respectiva, e fez filmes permeados pelo Azul, pelo Branco e pelo Vermelho. Mais do que predominarem, essa cores pontuam o mise-en-scène, imprimindo significado e chamado atenção onde aparecem. O trabalho que Kieslowski faz com o ritmo e o estilo de cada filme também é sublime. Se o primeiro filme é mais reflexivo e poético, o segundo é ao mesmo tempo melodramático e cômico, e o terceiro é discursivo e cálido.
Como uma trilogia que se preze, a das Cores, embora não conte exatamente uma história contínua, só faz sentido totalmente ao ser vista por completo. Com as histórias tão humanas e próximas que conta, Kieslowski transmite a Dor e o Sentimento no nosso mundo pós-revolucionário, assim como os aspectos que aqueles velhos ideais têm quando encarados de frente por homens e mulheres solitários, desarmados e vivos. Mas não só: também questiona a presença da Lei, do estado de direito, herança daquela revolução, na vida das pessoas.
Na pílula de cada filme, apresentarei seus aspectos próprios e como eles contribuem para o quadro geral.
________________
A Liberdade é Azul (Trois Couleurs: Bleu, 1993): A gente precisa se agarrar a algo, diz um flautista de rua para Julie, personagem de Juliette Binoche, em determinado momento de Azul. Tons frios - das ruas no inverno, de um apartamento escuro, da piscina em que nada sempre – circundam Julie. Após perder o marido e a filha em um acidente de carro, ela percebe que perdeu esse algo e começou a afundar. Então, ela inicia sua “expiação”, livrando-se de tudo que a prenda ao passado para poder flutuar novamente. A Liberdade, ela aprende, esse estado místico em que se não está ligado a nada, passa pela dor. A dor é instrumento, causa e aspecto da liberdade. Aos poucos, porém, outras coisas começarão a aderir a ela, e Julie não terá alternativa senão voltar para o chão. Julie, isso fica claro, é como os praticantes de esportes radicais que sua mãe vê pela televisão do asilo: alguém que caminha sobre uma corda bamba, que salta no espaço, livre de quase tudo. Mas, por ser humana, Julie permanece presa, ou, em outra visão, protegida, sustentada por algo, assim como os atletas da TV têm a corda amarrada aos pés e uma rede onde cair. Na medida em que ela reencontra o amor e o calor humano nas pessoas que a cercam, Julie retorna para o seio da terra. Bem longe do céu infinito ou das profundezas azuis e dolorosas do oceano.
_______________
A Igualdade é Branca (Trois Couleurs: Blanc, 1994): Em Branco, a igualdade aparece sob muitas formas, não só nos direitos individuais, mas também no sofrimento. Se Karol, sem falar francês, é confrontado com um sistema legal em que essa língua é o padrão, acaba tendo que fugir da polícia, e passa por maus bocados para voltar à Polônia, sua terra natal, ele fará de tudo para que Dominique, a causa de seu sofrimento, passe pelas mesmas coisas. Olho por olho, dente por dente, Karol e Dominique se fazem iguais, “no amor e na dor”. Embora seja mais físico, cômico e cruel que os outros dois filmes, Branco também é muito bonito, e também delicado. Se aproxima de seus personagens sem meias palavras, sem pisar em ovos, mas também sem julgá-los ou condená-los a algum castigo. Simplesmente os acompanha, e os entende, e os penetra, e acaba por envolvê-los na igualdade suprema do branco absoluto, antes de soltá-los de novo no mundo frio e desigual.
________________
A Fraternidade é Vermelha (Trois Couleurs: Rouge, 1994): Meu preferido entre os três, é o mais tocante e significativo, o mais, digamos, universal, que imprime novos sentidos aos anteriores e os abraça, enchendo de calor a história dos personagens e talvez de lágrimas os olhos expectadores. De modo irretocável, o tema da fraternidade é exposto e defendido, e finalmente compreendemos por que a Fraternidade vem por último, e o que ela tem a ver com as outras duas coisas. Mas antes, vamos dar uma olhada rápida na questão da Lei que se imiscui na vida pessoal. Como já dito, uma obra-prima como essa Trilogia das Cores permite muitos olhares e interpretações, dentre os quais escolhi o que me pareceu mais significativo. Entretanto, considerando o lado político da Revolução Francesa, não é excesso enxergar em certas passagens de cada filme paralelos com a situação do povo, dos seres humanos, em relação à Lei como se tornou após o evento que a Trilogia relembra. Em Azul, a amante do marido de Julie é advogada, e está grávida dele. Esse é um dos principais acontecimentos que traz Julie dos ares de volta à terra. Em Branco, Karol e Dominique acabam tendo que enfrentar a Lei, simplesmente por não conseguirem resolver seus problemas pessoais nesse âmbito. Ou seja: a Lei é um instrumento imparcial usado pelos dois, pelos indivíduos, para resolver os problemas individuais de que eles, sozinhos, não dão conta. Finalmente, em Vermelho, a lei se torna ainda mais presente e significativa. O homem que “espiona” os vizinhos escutando suas conversas é, afinal, um Juiz aposentado, e tem várias conversas com Valentine a respeito de sua profissão. Em uma dessas conversas, ele diz que, quando ainda trabalhava, não sabia se estava do lado do bem ou do mal, e ao ouvir as conversas alheias, pelo menos, sabia onde estava a verdade. É a figura da Lei que, paradoxalmente, não sabe julgar, e só ao findar-se como Lei (ou seja, o Juiz que deixa de sê-lo) é capaz de discernir a verdade. O sentimento humano em lugar do institucional, a compreensão ao invés do julgamento.
E tudo isso dá lugar ao tem principal do filme, das vidas humanas que correm em paralelo mas fazem mais sentido quando juntas, de como, enfim, duas vidas fazem mais sentido que uma. Nos três filmes, há uma cena em que o protagonista observa uma velhinha tentando com muita dificuldade jogar uma garrafa em um lixo alto. Mas, dos três, somente Valentine a ajuda. Por quê? Oras, claro que os personagens não se reduzem a alegorias, mas se tomarmos o conceito de cada filme, veremos que só o último daria motivo para ajuda. Ajudar a velhinha seria como estar preso a algum “imperativo moral”, o que vai de encontro à Liberdade. De maneira semelhante, seria contrariar a Igualdade ajudá-la, visto que todos devem ter as mesmas condições de jogar a garrafa fora... Assim, somente a Fraternidade é que ajuda as pessoas a jogarem seu lixo fora. Foi a ação dos que insistiam em puxá-la para a terra que impediu Julie de desaparecer no espaço. Foi graças à ajuda de Mikolaj que Karol voltou para a Polônia, e graças à ajuda de Karol que Mikolaj recuperou a vontade de viver. Assim, vemos como a Fraternidade se sobressai, como ela é importante.
Ela não é fácil, com certeza, mas é essencial. Se a vida de Auguste corre em paralelo à de Valentine, isso não significa que elas não chegarão a se encontrar. São duas vidas diferentes, mas igualmente belas e significativas. Se o Juiz ouve as conversas dos vizinhos, é justamente porque deseja ter consciência das vidas que o cercam, porque quer conhecer o ritmo e o caminho daquelas vidas. Perto do fim do filme, Valentine diz ao Juiz “Ao Meu redor coisas importantes acontecem, por isso eu tenho medo”. Essa frase resume magnificamente o sentido da Fraternidade: filme e conceito. Ao redor de cada vida, outras vidas acontecem, e, vidas que são, são tão importantes quanto qualquer outra. No entanto, pelas nossas próprias dores, e pela enormidade das outras vidas, ficamos amedrontados ao pensar nisso, nos bilhões de outros caminhos trilhados diariamente sobre o planeta. Mas essa enormidade não impede as pessoas de ajudarem umas às outras, de se importarem com as outras, de sentirem que as outras vidas lhe dizem respeito. Ao final do filme, com o sublime trecho que o encerra, os traços das vidas que Kieslowski representou convergem, e então sentimos que, mesmo sob a pior das tempestades, a Fraternidade pode salvar-nos do naufrágio.
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Nos 200 anos da Revolução francesa, o cineasta polonês Krzysztof Kieslowski resolveu filmar o que os velhos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade representavam no mundo de hoje (ou melhor, de 1990). Bem ao seu estilo, porém, o foco que ele deu nessas três abstrações foi pessoal, humano, e não político ou social. Embora possam se extrair interpretações dessa estirpe de sua obra, o que realmente importa aqui são os seres humanos.
De forma absurdamente criativa, ele ligou cada ideal à sua cor respectiva, e fez filmes permeados pelo Azul, pelo Branco e pelo Vermelho. Mais do que predominarem, essa cores pontuam o mise-en-scène, imprimindo significado e chamado atenção onde aparecem. O trabalho que Kieslowski faz com o ritmo e o estilo de cada filme também é sublime. Se o primeiro filme é mais reflexivo e poético, o segundo é ao mesmo tempo melodramático e cômico, e o terceiro é discursivo e cálido.
Como uma trilogia que se preze, a das Cores, embora não conte exatamente uma história contínua, só faz sentido totalmente ao ser vista por completo. Com as histórias tão humanas e próximas que conta, Kieslowski transmite a Dor e o Sentimento no nosso mundo pós-revolucionário, assim como os aspectos que aqueles velhos ideais têm quando encarados de frente por homens e mulheres solitários, desarmados e vivos. Mas não só: também questiona a presença da Lei, do estado de direito, herança daquela revolução, na vida das pessoas.
Na pílula de cada filme, apresentarei seus aspectos próprios e como eles contribuem para o quadro geral.
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A Liberdade é Azul (Trois Couleurs: Bleu, 1993): A gente precisa se agarrar a algo, diz um flautista de rua para Julie, personagem de Juliette Binoche, em determinado momento de Azul. Tons frios - das ruas no inverno, de um apartamento escuro, da piscina em que nada sempre – circundam Julie. Após perder o marido e a filha em um acidente de carro, ela percebe que perdeu esse algo e começou a afundar. Então, ela inicia sua “expiação”, livrando-se de tudo que a prenda ao passado para poder flutuar novamente. A Liberdade, ela aprende, esse estado místico em que se não está ligado a nada, passa pela dor. A dor é instrumento, causa e aspecto da liberdade. Aos poucos, porém, outras coisas começarão a aderir a ela, e Julie não terá alternativa senão voltar para o chão. Julie, isso fica claro, é como os praticantes de esportes radicais que sua mãe vê pela televisão do asilo: alguém que caminha sobre uma corda bamba, que salta no espaço, livre de quase tudo. Mas, por ser humana, Julie permanece presa, ou, em outra visão, protegida, sustentada por algo, assim como os atletas da TV têm a corda amarrada aos pés e uma rede onde cair. Na medida em que ela reencontra o amor e o calor humano nas pessoas que a cercam, Julie retorna para o seio da terra. Bem longe do céu infinito ou das profundezas azuis e dolorosas do oceano.
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A Igualdade é Branca (Trois Couleurs: Blanc, 1994): Em Branco, a igualdade aparece sob muitas formas, não só nos direitos individuais, mas também no sofrimento. Se Karol, sem falar francês, é confrontado com um sistema legal em que essa língua é o padrão, acaba tendo que fugir da polícia, e passa por maus bocados para voltar à Polônia, sua terra natal, ele fará de tudo para que Dominique, a causa de seu sofrimento, passe pelas mesmas coisas. Olho por olho, dente por dente, Karol e Dominique se fazem iguais, “no amor e na dor”. Embora seja mais físico, cômico e cruel que os outros dois filmes, Branco também é muito bonito, e também delicado. Se aproxima de seus personagens sem meias palavras, sem pisar em ovos, mas também sem julgá-los ou condená-los a algum castigo. Simplesmente os acompanha, e os entende, e os penetra, e acaba por envolvê-los na igualdade suprema do branco absoluto, antes de soltá-los de novo no mundo frio e desigual.
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A Fraternidade é Vermelha (Trois Couleurs: Rouge, 1994): Meu preferido entre os três, é o mais tocante e significativo, o mais, digamos, universal, que imprime novos sentidos aos anteriores e os abraça, enchendo de calor a história dos personagens e talvez de lágrimas os olhos expectadores. De modo irretocável, o tema da fraternidade é exposto e defendido, e finalmente compreendemos por que a Fraternidade vem por último, e o que ela tem a ver com as outras duas coisas. Mas antes, vamos dar uma olhada rápida na questão da Lei que se imiscui na vida pessoal. Como já dito, uma obra-prima como essa Trilogia das Cores permite muitos olhares e interpretações, dentre os quais escolhi o que me pareceu mais significativo. Entretanto, considerando o lado político da Revolução Francesa, não é excesso enxergar em certas passagens de cada filme paralelos com a situação do povo, dos seres humanos, em relação à Lei como se tornou após o evento que a Trilogia relembra. Em Azul, a amante do marido de Julie é advogada, e está grávida dele. Esse é um dos principais acontecimentos que traz Julie dos ares de volta à terra. Em Branco, Karol e Dominique acabam tendo que enfrentar a Lei, simplesmente por não conseguirem resolver seus problemas pessoais nesse âmbito. Ou seja: a Lei é um instrumento imparcial usado pelos dois, pelos indivíduos, para resolver os problemas individuais de que eles, sozinhos, não dão conta. Finalmente, em Vermelho, a lei se torna ainda mais presente e significativa. O homem que “espiona” os vizinhos escutando suas conversas é, afinal, um Juiz aposentado, e tem várias conversas com Valentine a respeito de sua profissão. Em uma dessas conversas, ele diz que, quando ainda trabalhava, não sabia se estava do lado do bem ou do mal, e ao ouvir as conversas alheias, pelo menos, sabia onde estava a verdade. É a figura da Lei que, paradoxalmente, não sabe julgar, e só ao findar-se como Lei (ou seja, o Juiz que deixa de sê-lo) é capaz de discernir a verdade. O sentimento humano em lugar do institucional, a compreensão ao invés do julgamento.
E tudo isso dá lugar ao tem principal do filme, das vidas humanas que correm em paralelo mas fazem mais sentido quando juntas, de como, enfim, duas vidas fazem mais sentido que uma. Nos três filmes, há uma cena em que o protagonista observa uma velhinha tentando com muita dificuldade jogar uma garrafa em um lixo alto. Mas, dos três, somente Valentine a ajuda. Por quê? Oras, claro que os personagens não se reduzem a alegorias, mas se tomarmos o conceito de cada filme, veremos que só o último daria motivo para ajuda. Ajudar a velhinha seria como estar preso a algum “imperativo moral”, o que vai de encontro à Liberdade. De maneira semelhante, seria contrariar a Igualdade ajudá-la, visto que todos devem ter as mesmas condições de jogar a garrafa fora... Assim, somente a Fraternidade é que ajuda as pessoas a jogarem seu lixo fora. Foi a ação dos que insistiam em puxá-la para a terra que impediu Julie de desaparecer no espaço. Foi graças à ajuda de Mikolaj que Karol voltou para a Polônia, e graças à ajuda de Karol que Mikolaj recuperou a vontade de viver. Assim, vemos como a Fraternidade se sobressai, como ela é importante.
Ela não é fácil, com certeza, mas é essencial. Se a vida de Auguste corre em paralelo à de Valentine, isso não significa que elas não chegarão a se encontrar. São duas vidas diferentes, mas igualmente belas e significativas. Se o Juiz ouve as conversas dos vizinhos, é justamente porque deseja ter consciência das vidas que o cercam, porque quer conhecer o ritmo e o caminho daquelas vidas. Perto do fim do filme, Valentine diz ao Juiz “Ao Meu redor coisas importantes acontecem, por isso eu tenho medo”. Essa frase resume magnificamente o sentido da Fraternidade: filme e conceito. Ao redor de cada vida, outras vidas acontecem, e, vidas que são, são tão importantes quanto qualquer outra. No entanto, pelas nossas próprias dores, e pela enormidade das outras vidas, ficamos amedrontados ao pensar nisso, nos bilhões de outros caminhos trilhados diariamente sobre o planeta. Mas essa enormidade não impede as pessoas de ajudarem umas às outras, de se importarem com as outras, de sentirem que as outras vidas lhe dizem respeito. Ao final do filme, com o sublime trecho que o encerra, os traços das vidas que Kieslowski representou convergem, e então sentimos que, mesmo sob a pior das tempestades, a Fraternidade pode salvar-nos do naufrágio.
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quarta-feira, 18 de março de 2009
Tentativa
Escrito para o certame literário da revista piauí, que acontece mensalmente pela internet. Eles dão a frase - no caso, de Antonio Muñoz Molina, em Beatus Ille: "Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite." - e tem-se que escrever, com ela no meio, um texto de no máximo 3.160 caracteres. Acabou saindo isso.
_____
Sob o rumorejar intermitente da chuva cadente, do vento soprando e da casa que gemia, ouvi com clareza o estrépito de seus passos. O barulho aproximou-se sem pressa, cadenciado, até o súbito obscurecimento da luz que vazava por entre a soleira e a porta revelar a presença de algo atrás da minha passagem para o mundo exterior.
Pensei por um segundo em erguer-me na cama, mas o estalo da maçaneta rodando me impediu, e acompanhei deitado o longo rangido que se seguiu. E então, recortada contra a luz que emanava da luminária do corredor, eu a vi. Toda de preto, desde os sapatos delicados até a longa cabeleira presa por uma presilha de prata sobre a orelha direita. Ela falou: Cheguei. Logo respondi: Mas já?
- Está na hora.
- Mas eu não estou pronto.
Silêncio.
- Não pode me dar mais um tempo, para eu me preparar?
- Desculpe, tem que ser agora. Venha assim mesmo.
- Mas eu estou de pijama!
- Não importa, eles não se importam com isso lá.
- Mas...
- Vamos.
- Certo, estou indo.
Ergui-me para acompanhá-la, mas assim que meus pés tocaram o chão um calafrio trespassou meu peito, e eu cambaleei. Questão de segundos, meu corpo voltou a cair na cama, e um silêncio mórbido se instaurou. Fiquei meio caído na cama, com os olhos arregalados, mas alheio ao que acontecia fora de mim, e afundava lentamente nas lembranças inclementes que me rodeavam.
Com as nuvens enormes de tempestade por pano de fundo, Joana sorria para mim seu sorriso límpido, emoldurado pela alvura viva de sua pele. Os cabelos pretos eram revolvidos pelo vento e se intrometiam na composição delicada de seus traços, mas acabavam por torná-la surpreendentemente mais bonita, como se aquele desarranjo, aquele descontrole momentâneo contivesse mais graça e beleza do que a milimétrica e exata composição que seu rosto sempre apresentava.
Caminhamos até a areia e, ao alcançá-la, Joana tirou os chinelos e começou a correr de mim. Persegui-a até a água, mas ela, com sua agilidade graciosa, se esquivou e voltou a fugir, até parar, triunfante, no topo da escada que descia até a areia. Sorri e a alcancei, para logo depois envolvê-la em meus braços e beijá-la, despejando nela todo o sentimento, a mistura de alegria, prazer e, é claro, amor que eu sentia naquele instante.
Mas começou a chover, e as gotas que lavaram o sangue dela da calçada naquele dia eram da mesma estirpe dessas que se lançavam contra a minha janela. Emergi ofegante do pesadelo-átimo e, apertando os olhos, disse para ela.
- Eu não consigo.
Sem responder, virou-se para a luz do corredor. Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite. Coloquei os pés de volta na cama e puxei o edredom para cobrir-me, ficando assim protegido do frio que oprimia. Esforçando-me para esquecer aquele meu fracasso, mordi o dedo bem forte e deixei que a dor se esvaísse lentamente, junto com a minha consciência que se apagava para a longa noite.
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Sob o rumorejar intermitente da chuva cadente, do vento soprando e da casa que gemia, ouvi com clareza o estrépito de seus passos. O barulho aproximou-se sem pressa, cadenciado, até o súbito obscurecimento da luz que vazava por entre a soleira e a porta revelar a presença de algo atrás da minha passagem para o mundo exterior.
Pensei por um segundo em erguer-me na cama, mas o estalo da maçaneta rodando me impediu, e acompanhei deitado o longo rangido que se seguiu. E então, recortada contra a luz que emanava da luminária do corredor, eu a vi. Toda de preto, desde os sapatos delicados até a longa cabeleira presa por uma presilha de prata sobre a orelha direita. Ela falou: Cheguei. Logo respondi: Mas já?
- Está na hora.
- Mas eu não estou pronto.
Silêncio.
- Não pode me dar mais um tempo, para eu me preparar?
- Desculpe, tem que ser agora. Venha assim mesmo.
- Mas eu estou de pijama!
- Não importa, eles não se importam com isso lá.
- Mas...
- Vamos.
- Certo, estou indo.
Ergui-me para acompanhá-la, mas assim que meus pés tocaram o chão um calafrio trespassou meu peito, e eu cambaleei. Questão de segundos, meu corpo voltou a cair na cama, e um silêncio mórbido se instaurou. Fiquei meio caído na cama, com os olhos arregalados, mas alheio ao que acontecia fora de mim, e afundava lentamente nas lembranças inclementes que me rodeavam.
Com as nuvens enormes de tempestade por pano de fundo, Joana sorria para mim seu sorriso límpido, emoldurado pela alvura viva de sua pele. Os cabelos pretos eram revolvidos pelo vento e se intrometiam na composição delicada de seus traços, mas acabavam por torná-la surpreendentemente mais bonita, como se aquele desarranjo, aquele descontrole momentâneo contivesse mais graça e beleza do que a milimétrica e exata composição que seu rosto sempre apresentava.
Caminhamos até a areia e, ao alcançá-la, Joana tirou os chinelos e começou a correr de mim. Persegui-a até a água, mas ela, com sua agilidade graciosa, se esquivou e voltou a fugir, até parar, triunfante, no topo da escada que descia até a areia. Sorri e a alcancei, para logo depois envolvê-la em meus braços e beijá-la, despejando nela todo o sentimento, a mistura de alegria, prazer e, é claro, amor que eu sentia naquele instante.
Mas começou a chover, e as gotas que lavaram o sangue dela da calçada naquele dia eram da mesma estirpe dessas que se lançavam contra a minha janela. Emergi ofegante do pesadelo-átimo e, apertando os olhos, disse para ela.
- Eu não consigo.
Sem responder, virou-se para a luz do corredor. Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite. Coloquei os pés de volta na cama e puxei o edredom para cobrir-me, ficando assim protegido do frio que oprimia. Esforçando-me para esquecer aquele meu fracasso, mordi o dedo bem forte e deixei que a dor se esvaísse lentamente, junto com a minha consciência que se apagava para a longa noite.
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terça-feira, 17 de março de 2009
La Jetée
Definir as coisas talvez seja a tarefa filosófica mais complexa que existe. Isso porque uma definição deve abarcar todas as variáveis existentes, sendo não uma regra com exceções, mas um fator comum a todos os elementos que pertençam a um grupo. Por isso, sempre que surge um elemento que ultrapassa os “limites” da definição, a definição deve ser revista, para abarcar esse novo elemento, visto que, como já dito, ela não é uma regra que molda a realidade, mas uma explicação que se molda à realidade.
A arte, tradicionalmente, é um dos meios mais avessos a definições, dada a constante reinvenção de seus modos de expressão. Ainda assim, não é inútil tentar definir os tipos de arte a partir de uma avaliação geral, mesmo que seja necessário reinventar essa definição sempre que um novo objeto artístico leve adiante os limites da arte. Dito isso, pergunta-se: o que é cinema? A motion (um movimento) ou emotion (emoção)? Imagens em movimento ou o movimento das imagens? Teóricos da sétima arte já se bateram por muito tempo com essa questão, e uma das teses mais abrangentes postula que o que define o cinema é sua peculiar manipulação do tempo. Para defender essa idéia, contra os que dizem ser o movimento a característica peculiar do cinema, um dos argumentos mais fortes é o exemplo de La Jetée (O Píer, O Terminal, A Plataforma, de aeroporto mesmo, em francês), curta de 26 minutos e obra das mais importantes do diretor francês Chris Marker.
A rigor, La Jetée (não foi lançado no Brasil, logo não tem tradução oficial do título. Mantenho o original, portanto, que aprecio muito.) é exatamente o que qualquer outro filme é: uma sucessão de fotogramas, ou frames. A diferença é que, se nos filmes em geral esses frames se sucedem vertiginosamente no ritmo de 24 deles por segundo, em La Jetée cada frame permanece vários segundos, até minutos, na tela. É uma sucessão de fotografias belíssimas, e dessa sucessão, em conjunto com a voz do narrador, se extrai uma história. Não se engane: continua havendo alguns efeitos sonoros, movimentos de câmera e closes, mas a imagem permanece estática, sua beleza durando um tempo incomum diante de nossos olhos.
Nos créditos, o filme aparece como um “foto-romance” do diretor, uma definição interessante, mas que não deixa de fazer parte do âmbito cinematográfico. O que Marker fez, então, foi justamente expandir os limites do cinema, acrescentando aos anais algo que antes não existia, não fora pensado, ou ao menos não fora feito. Justamente aí reside o argumento supracitado, a teoria da definição de cinema. La Jetée não deixa de ser uma sucessão (logo, um movimento) de imagens, mas é o lugar que essas imagens ocupam no tempo que importa. É a duração de cada fotograma na nossa retina que diferencia o longa, mas ao mesmo tempo ajuda a entender que isso, essa manipulação do tempo por meio de imagens, ou manipulação de imagens que exprimem uma noção de tempo, é o que faz do cinema o que ele é.
Como se não bastasse, essa questão do tempo é, justamente, o tema do filme. Narrativa de ficção-científica, como apetece a Marker, La Jetée é a história de um homem que, prisioneiro num mundo pós-apocalipse nuclear, é submetido a uma experiência de viagem no tempo, e encontra uma mulher cuja imagem marcou sua infância. O filme está cheio de referências visuais e temáticas, e influenciou muita gente. A primeira aparição das pessoas do futuro remete à capa de um disco dos Beatles, e num dado momento ocorre uma cena semelhante a uma outra de Um Corpo Que Cai, de Hitchcock, que também seria referenciado num outro filme do diretor, o documentário Sans Soleil (Sem Sol). O filme Os 12 Macacos, do diretor Terry Gilliam, é fortemente inspirado pelo enredo de La Jetée. Mas o mais importante aqui é a narrativa e o drama profundo do protagonista, que se confronta e se conforta com a própria memória, com o tempo de sua mente, que se esvai, se transforma, surge e some de repente, descontrolado.
Da sucessão de fotos, Marker faz um filme, mas mais do que isso constrói uma obra de alcance e visão, uma narrativa profunda e triste, uma belíssima meditação sobre o tempo e a memória (sempre eles), um objeto artístico único que, por sua singularidade, beleza e profundidade, merece ser visto, revisto, louvado. E imitado, também, se possível.
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A arte, tradicionalmente, é um dos meios mais avessos a definições, dada a constante reinvenção de seus modos de expressão. Ainda assim, não é inútil tentar definir os tipos de arte a partir de uma avaliação geral, mesmo que seja necessário reinventar essa definição sempre que um novo objeto artístico leve adiante os limites da arte. Dito isso, pergunta-se: o que é cinema? A motion (um movimento) ou emotion (emoção)? Imagens em movimento ou o movimento das imagens? Teóricos da sétima arte já se bateram por muito tempo com essa questão, e uma das teses mais abrangentes postula que o que define o cinema é sua peculiar manipulação do tempo. Para defender essa idéia, contra os que dizem ser o movimento a característica peculiar do cinema, um dos argumentos mais fortes é o exemplo de La Jetée (O Píer, O Terminal, A Plataforma, de aeroporto mesmo, em francês), curta de 26 minutos e obra das mais importantes do diretor francês Chris Marker.
A rigor, La Jetée (não foi lançado no Brasil, logo não tem tradução oficial do título. Mantenho o original, portanto, que aprecio muito.) é exatamente o que qualquer outro filme é: uma sucessão de fotogramas, ou frames. A diferença é que, se nos filmes em geral esses frames se sucedem vertiginosamente no ritmo de 24 deles por segundo, em La Jetée cada frame permanece vários segundos, até minutos, na tela. É uma sucessão de fotografias belíssimas, e dessa sucessão, em conjunto com a voz do narrador, se extrai uma história. Não se engane: continua havendo alguns efeitos sonoros, movimentos de câmera e closes, mas a imagem permanece estática, sua beleza durando um tempo incomum diante de nossos olhos.
Nos créditos, o filme aparece como um “foto-romance” do diretor, uma definição interessante, mas que não deixa de fazer parte do âmbito cinematográfico. O que Marker fez, então, foi justamente expandir os limites do cinema, acrescentando aos anais algo que antes não existia, não fora pensado, ou ao menos não fora feito. Justamente aí reside o argumento supracitado, a teoria da definição de cinema. La Jetée não deixa de ser uma sucessão (logo, um movimento) de imagens, mas é o lugar que essas imagens ocupam no tempo que importa. É a duração de cada fotograma na nossa retina que diferencia o longa, mas ao mesmo tempo ajuda a entender que isso, essa manipulação do tempo por meio de imagens, ou manipulação de imagens que exprimem uma noção de tempo, é o que faz do cinema o que ele é.
Como se não bastasse, essa questão do tempo é, justamente, o tema do filme. Narrativa de ficção-científica, como apetece a Marker, La Jetée é a história de um homem que, prisioneiro num mundo pós-apocalipse nuclear, é submetido a uma experiência de viagem no tempo, e encontra uma mulher cuja imagem marcou sua infância. O filme está cheio de referências visuais e temáticas, e influenciou muita gente. A primeira aparição das pessoas do futuro remete à capa de um disco dos Beatles, e num dado momento ocorre uma cena semelhante a uma outra de Um Corpo Que Cai, de Hitchcock, que também seria referenciado num outro filme do diretor, o documentário Sans Soleil (Sem Sol). O filme Os 12 Macacos, do diretor Terry Gilliam, é fortemente inspirado pelo enredo de La Jetée. Mas o mais importante aqui é a narrativa e o drama profundo do protagonista, que se confronta e se conforta com a própria memória, com o tempo de sua mente, que se esvai, se transforma, surge e some de repente, descontrolado.
Da sucessão de fotos, Marker faz um filme, mas mais do que isso constrói uma obra de alcance e visão, uma narrativa profunda e triste, uma belíssima meditação sobre o tempo e a memória (sempre eles), um objeto artístico único que, por sua singularidade, beleza e profundidade, merece ser visto, revisto, louvado. E imitado, também, se possível.
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segunda-feira, 16 de março de 2009
100 livros essenciais da literatura mundial
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Em 2007, a revista Bravo! publicou uma edição especial com 100 das obras mais importantes da literatura, não se limitando a somente um gênero mas incluindo poemas, romances, peças de teatro e misturas disso tudo. Como principal referência, adotou a obra do crítico Harold Bloom, que em livros como O Cânone Ocidental e Gênio, Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura definiu as mais importantes peças literárias da nossa história, mas serviu-se também de outras fontes, como listas análogas e obras de referência em geral. No fim, a edição especial acaba sendo uma valorosa fonte de consulta. Embora apresente algumas injustiças e incoerências no que tange aos "melhores" livros, é compreensível que esse tipo de desvio aconteça numa lista com tantas fonte. E além disso, a diversificação daí advinda é um ponto a mais no quesito de inovação, de apresentação de obras que do contrário permaneceriam obscuras, mesmo aos bibliófilos mais constantes.
De minha parte, gosto muito da revista e sempre a consulto quando leio algum dos livros lá presentes. Embora a qualidade dos textos de apresentação seja irregular, eles apresentam muitas informações, que acabam ajudando na hora de formar uma opinião contextualizada sobre uma obra. Dos cem, li vinte e cinco, o que não chega a uma número vultuoso mas é, de qualquer maneira, um bom começo. O tempo se encarregará se trazer os demais aos meus olhos (ou não). Fiquem então com a lista completa (os que eu li estão marcados em negrito).
1) Ilíada - Homero
2) Odisséia – Homero
3) Hamlet – William Shakespeare
4) Dom Quixote – Miguel de Cervantes
5) A Divina Comédia – Dante Alighieri
6) Em Busca do Tempo Perdido – Marcel Proust
7) Ulisses – James Joyce
8) Guerra e Paz – Leon Tolstoi
9) Crime e Castigo – Dostoievski
10) Ensaios – Michel de Montaigne
11) Édipo Rei - Sófocles
12) Otelo - William Shakespeare
13) Madame Bovary – Gustave Flaubert
14) Fausto – Goethe
15) O Processo – Franz Kafka
16) Doutor Fausto – Thomas Mann
17) As Flores do Mal – Charles Baudelaire
18) Som e a Fúria – William Faulkner
19) A Terra Desolada – T. S. Eliot
20) Teogonia – Hesíodo
21) As Metamorfoses - Ovídio
22) O Vermelho e o Negro – Stendhal
23) O Grande Gatsby – F. Scott Fitzgerald
24) Uma Estação no Inferno - Arthur Rimbaud
25) Os Miseráveis - Victor Hugo
26) O Estrangeiro - Albert Camus
27) Medéia - Eurípides
28) A Eneida - Virgílio
29) Noite de Reis - William Shakespeare
30) Adeus às Armas - Ernest Hemingway
31) Coração das Trevas - Joseph Conrad
32) Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley
33) Mrs. Dalloway - Virginia Woolf
34) Moby Dick - Herman Melville
35) Histórias Extraordinárias - Edgar Allan Poe
36) A Comédia Humana - Balzac
37) Grandes Esperanças - Charles Dickens
38) O Homem Sem Qualidades - Robert Musil
39) As Viagens de Gulliver - Jonathan Swift
40) Finnegans Wake - James Joyce
41) Os Lusíadas - Luís de Camões
42) Os Três Mosqueteiros - Alexandre Dumas
43) Retrato de Uma Senhora - Henry James
44) Decameron - Bocaccio
45) Esperando Godot - Samuel Beckett
46) 1984 - George Orwell
47) Galileu Galilei - Bertolt Brecht
48) Os Cantos de Maldoror - Lautréamont
49) A Tarde de um Fauno - Mallarmé
50) Lolita - Vladimir Nabokov
51) Tartufo - Molière
52) As Três Irmãs - Anton Tcheckov
53) O Livro das Mil e Uma Noites
54) Don Juan - Tirso de Molina
55) Mensagem - Fernando Pessoa
56) Paraíso Perdido - Jonh Milton
57) Robinson Crusoé - Daniel Defoe
58) Os Moedeiros Falsos - André Gide
59) Memórias Póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis
60) O Retrato de Dorian Gray - Oscar Wilde
61) Seis Personagens em Busca de um Autor - Luigi Pirandello
62) Alice no País das Maravilhas - Lewis Carrol
63) A Náusea - Jean-Paul Sartre
64) A Consciência de Zeno - Ítalo Svevo
65) Longa Jornada Noite Adentro - Eugene O'Neill
66) A Condição Humana - André Malraux
67) Os Cantos - Ezra Pound
68) Canções da Inocência /Canções do Exílio - William Blake
69) Um Bonde Chamado Desejo - Tennessee Williams
70) Ficções - Jorge Luis Borges
71) O Rinoceronte - Eugène Ionesco
72) A Morte de Virgílio - Herman Broch
73) As Folhas da Relva - Walt Whitman
74) Deserto dos Tártaros - Dino Buzatti
75) Cem Anos de Solidão - Gabriel García Márquez
76) Viagem ao Fim da Noite - Louis-Ferdinand Céline
77) A Ilustre Casa de Ramires - Eça de Queirós
78) Jogo da Amarelinha - Júlio Cortázar
79) As Vinhas da Ira - John Steinbeck
80) Memórias de Adriano - Marguerite Yourcenar
81) O Apanhador no Campo de Centeio - J.D. Salinger
82) Huckleberry Finn - Mark Twain
83) Contos de Hans Christian Andersen
84) O Leopardo - Tomaso di Lampedusa
85) Vida e Opiniões do Cavaleiro Tristam Shandy - Laurence Sterne
86) Passagem Para a Índia - E.M Forster
87) Orgulho e Preconceito - Jane Austen
88) Trópico de Câncer - Henry Miller
89) Pais e Filhos - Ivan Turgueniev
90) O Náufrago - Thomas Bernhard
91) A Epopéia de Gilgamesh
92) O Mahabharata
93) As Cidades Invisíveis - Italo Calvino
94) On The Road - Jack Kerouac
95) Lobo da Estepe - Hermann Hesse
96) Complexo de Portnoy - Philip Roth
97) Reparação - Ian MacEwan
98) Desonra - J.M. Coetzee
99) As Irmãs Makioka - Junichiro Tanizaki
100) Pedro Páramo - Juan Rulfo
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Em 2007, a revista Bravo! publicou uma edição especial com 100 das obras mais importantes da literatura, não se limitando a somente um gênero mas incluindo poemas, romances, peças de teatro e misturas disso tudo. Como principal referência, adotou a obra do crítico Harold Bloom, que em livros como O Cânone Ocidental e Gênio, Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura definiu as mais importantes peças literárias da nossa história, mas serviu-se também de outras fontes, como listas análogas e obras de referência em geral. No fim, a edição especial acaba sendo uma valorosa fonte de consulta. Embora apresente algumas injustiças e incoerências no que tange aos "melhores" livros, é compreensível que esse tipo de desvio aconteça numa lista com tantas fonte. E além disso, a diversificação daí advinda é um ponto a mais no quesito de inovação, de apresentação de obras que do contrário permaneceriam obscuras, mesmo aos bibliófilos mais constantes.
De minha parte, gosto muito da revista e sempre a consulto quando leio algum dos livros lá presentes. Embora a qualidade dos textos de apresentação seja irregular, eles apresentam muitas informações, que acabam ajudando na hora de formar uma opinião contextualizada sobre uma obra. Dos cem, li vinte e cinco, o que não chega a uma número vultuoso mas é, de qualquer maneira, um bom começo. O tempo se encarregará se trazer os demais aos meus olhos (ou não). Fiquem então com a lista completa (os que eu li estão marcados em negrito).
1) Ilíada - Homero
2) Odisséia – Homero
3) Hamlet – William Shakespeare
4) Dom Quixote – Miguel de Cervantes
5) A Divina Comédia – Dante Alighieri
6) Em Busca do Tempo Perdido – Marcel Proust
7) Ulisses – James Joyce
8) Guerra e Paz – Leon Tolstoi
9) Crime e Castigo – Dostoievski
10) Ensaios – Michel de Montaigne
11) Édipo Rei - Sófocles
12) Otelo - William Shakespeare
13) Madame Bovary – Gustave Flaubert
14) Fausto – Goethe
15) O Processo – Franz Kafka
16) Doutor Fausto – Thomas Mann
17) As Flores do Mal – Charles Baudelaire
18) Som e a Fúria – William Faulkner
19) A Terra Desolada – T. S. Eliot
20) Teogonia – Hesíodo
21) As Metamorfoses - Ovídio
22) O Vermelho e o Negro – Stendhal
23) O Grande Gatsby – F. Scott Fitzgerald
24) Uma Estação no Inferno - Arthur Rimbaud
25) Os Miseráveis - Victor Hugo
26) O Estrangeiro - Albert Camus
27) Medéia - Eurípides
28) A Eneida - Virgílio
29) Noite de Reis - William Shakespeare
30) Adeus às Armas - Ernest Hemingway
31) Coração das Trevas - Joseph Conrad
32) Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley
33) Mrs. Dalloway - Virginia Woolf
34) Moby Dick - Herman Melville
35) Histórias Extraordinárias - Edgar Allan Poe
36) A Comédia Humana - Balzac
37) Grandes Esperanças - Charles Dickens
38) O Homem Sem Qualidades - Robert Musil
39) As Viagens de Gulliver - Jonathan Swift
40) Finnegans Wake - James Joyce
41) Os Lusíadas - Luís de Camões
42) Os Três Mosqueteiros - Alexandre Dumas
43) Retrato de Uma Senhora - Henry James
44) Decameron - Bocaccio
45) Esperando Godot - Samuel Beckett
46) 1984 - George Orwell
47) Galileu Galilei - Bertolt Brecht
48) Os Cantos de Maldoror - Lautréamont
49) A Tarde de um Fauno - Mallarmé
50) Lolita - Vladimir Nabokov
51) Tartufo - Molière
52) As Três Irmãs - Anton Tcheckov
53) O Livro das Mil e Uma Noites
54) Don Juan - Tirso de Molina
55) Mensagem - Fernando Pessoa
56) Paraíso Perdido - Jonh Milton
57) Robinson Crusoé - Daniel Defoe
58) Os Moedeiros Falsos - André Gide
59) Memórias Póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis
60) O Retrato de Dorian Gray - Oscar Wilde
61) Seis Personagens em Busca de um Autor - Luigi Pirandello
62) Alice no País das Maravilhas - Lewis Carrol
63) A Náusea - Jean-Paul Sartre
64) A Consciência de Zeno - Ítalo Svevo
65) Longa Jornada Noite Adentro - Eugene O'Neill
66) A Condição Humana - André Malraux
67) Os Cantos - Ezra Pound
68) Canções da Inocência /Canções do Exílio - William Blake
69) Um Bonde Chamado Desejo - Tennessee Williams
70) Ficções - Jorge Luis Borges
71) O Rinoceronte - Eugène Ionesco
72) A Morte de Virgílio - Herman Broch
73) As Folhas da Relva - Walt Whitman
74) Deserto dos Tártaros - Dino Buzatti
75) Cem Anos de Solidão - Gabriel García Márquez
76) Viagem ao Fim da Noite - Louis-Ferdinand Céline
77) A Ilustre Casa de Ramires - Eça de Queirós
78) Jogo da Amarelinha - Júlio Cortázar
79) As Vinhas da Ira - John Steinbeck
80) Memórias de Adriano - Marguerite Yourcenar
81) O Apanhador no Campo de Centeio - J.D. Salinger
82) Huckleberry Finn - Mark Twain
83) Contos de Hans Christian Andersen
84) O Leopardo - Tomaso di Lampedusa
85) Vida e Opiniões do Cavaleiro Tristam Shandy - Laurence Sterne
86) Passagem Para a Índia - E.M Forster
87) Orgulho e Preconceito - Jane Austen
88) Trópico de Câncer - Henry Miller
89) Pais e Filhos - Ivan Turgueniev
90) O Náufrago - Thomas Bernhard
91) A Epopéia de Gilgamesh
92) O Mahabharata
93) As Cidades Invisíveis - Italo Calvino
94) On The Road - Jack Kerouac
95) Lobo da Estepe - Hermann Hesse
96) Complexo de Portnoy - Philip Roth
97) Reparação - Ian MacEwan
98) Desonra - J.M. Coetzee
99) As Irmãs Makioka - Junichiro Tanizaki
100) Pedro Páramo - Juan Rulfo
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sexta-feira, 13 de março de 2009
A Roda #14 - Tratado Universalizante da Xurepa, Parte 1: O Significado da Xurepa - A Língua da Palavra Sagrada
por Lobato Légio
Já se entende, estando nesse ponto, de que natureza a Xurepa é, e a que classe de coisas ela “pertence”. Em termos: a Xurepa é a linguagem de que os entes se valem para relacionar-se com outros entes e o espaço ao redor. Decerto, é por demais ambicioso procurar descrever todas as relações existentes no Universo. Por isso, como já mencionado anteriormente, ateremo-nos, neste tratado, a analisar o aspecto da comunicação consciente que emana da Xurepa, a mais propriamente conhecida linguagem do ser humano, de que ele se vale para expressar-se funcional, filosófica e artisticamente.
Antes, porém, é válido sondar algumas das outras possibilidades de relação que a Xurepa configura. A Xurepa é, pois, a fonte das relações, o centro donde emanam as justificativas da existência. Algumas agremiações religiosas e filosóficas humanas já se dispuseram, ao longo dos séculos, a listar e catalogar todas as formas de relações possíveis, e então tentar encaixá-las em grupos gerais. No entanto, obviamente, seus intentos nunca chegaram a um termo e, conquanto tenham nos legado uma valorosa herança, é por demais ingênuo buscar nos tomos e livros secretos uma descrição da ordem das coisas. Se quer-se descobrir que espécies de relações a Xurepa constitui, ou ainda, que espécies de relações existem, basta olhar para o mundo, e num único quadro poderão ser observadas as mais diversas relações.
Exemplifiquemos com a clássica paisagem idílica, um gramado verdejante que encobre colinas baixas até onde a vista alcança, num dia de sol forte e algumas nuvens no céu, quando o vento está soprando e, ao lado de uma árvore, um casal de namorados faz um piquenique, enquanto uma criança corre atrás de uma bola e passa por uma pedra. O vento fustiga o mato, fustiga a pedra, fustiga os rostos dos amantes e da criança. Os rostos, o mato, a pedra, todos recebem o vento, impotentes, mas com prazer. A pedra se apóia no chão, e esmaga a grama, e impede a luz solar de atingir o solo abaixo de si, absorvendo-a toda em sua superfície acidentada, acinzentada. A árvore vive, puxa a água do solo, recebe o sol em suas folhas, lança sombras sobre os namorados. A bola rola sobre o chão, foge da criança, corta o ar. A criança move suas pernas, pisa nas folhas, sorve o ar, ofegante. As nuvens lançam-se no vazio, movem-se lentamente, unem-se, dividem-se e multiplicam-se. Os amantes dão-se as mãos, e se amam. O sol, constante, a tudo ilumina.
Destarte descrita foi uma grande variedade de relações xurépicas, de toda natureza, mas não o bastante. Foi antes um pequeno fragmento, e mesmo a pedra quieta sobre o solo arenoso relaciona-se de mais maneiras do que a soma de todas as apresentadas no parágrafo anterior. Como se vê, a Xurepa está em toda parte, e assim permanece infinita, insaciável de ser novas relações.
A nós mortais, contudo, a nós solitárias marmotas, filhas da terra e da escuridão, a percepção de todas as existências e de suas relações é um atributo sobremaneira imenso, demasiado superior às nossas forças e ao tempo de que dispomos. Por isso, notamos a Xurepa em seu aspecto mais capaz de despertar em nós uma reação. Se a Xurepa, de seu absoluto original, ramificou-se, dividiu-se, formando toda uma árvore, todo um caminho de novas relações, foi pelo caminho da linguagem e da comunicação que ela nos alcançou. Com a palavra sagrada que nos fala ao espírito, a Xurepa falou, e desde então nós ouvimos. A poesia, a dança, a beleza, a magia, a oração... todas as manifestações artísticas, religiosas ou espirituais de maneira geral são em verdade manifestações da Xurepa, canções e versos proferidos na língua primordial, a língua mãe que somente o coração pode entender, e que o corpo, a mente e a boca traduzem para melhor apreensão dos nossos sentidos.
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quinta-feira, 12 de março de 2009
Hiroshima Meu Amor
As cinzas que caem sobre os corpos entrelaçados dos amantes nos momentos iniciais de Hiroshima Meu Amor são os restos da cidade que, destruída, paira sobre a história deles, e os envolve, e os encobre. Mas, à medida que o ato sexual avança, as cinzas se convertem em suor, e depois vemos os corpos, limpos, parciais, e uma mão de mulher de mulher que se agarra nas costas de seu amante. Essa relação entre o homem e a mulher, entrecortada com o “documentário” que abre o filme, é signo das transformações e do discurso promovidos no filme de estréia do diretor francês Alain Resnais.
Hiroshima Meu Amor é, sem dúvida, um filme dialético, de imagens que dialogam, que se transformam, que se fundem. Faz parte da sua proposta encher-se de dicotomias, de aspectos opostos das coisas. Temos o ver e o não-ver, a memória e o esquecimento, o homem e a mulher, o ocidente e o oriente, o amor e a guerra. Justamente por sua estrutura dialética, aliada ao seu discurso, vemos como uma coisa dá lugar a outra, como uma coisa leva a outra. Em primeiro plano, há a atriz francesa casada e o arquiteto japonês casado que, sozinhos, acabam se envolvendo numa viagem de trabalho que a primeira faz ao Japão. Atrás deles, ou sobre eles, dependendo de onde você olhe, está Hiroshima, ou o horror e a guerra, e a constante lembrança do horror da guerra e do horror maior de seu esquecimento.
No presente, junto ao amante ocasional, ela se lembra de um amor passado, um estrangeiro, como ele, e do exército inimigo, como ele um dia foi. E ele ouve, tentando entendê-la, ajudá-la, atraí-la. Mas ela se perde cada vez mais no esquecimento. Dialética. Uma coisa leva a outra. Os dedos japoneses que se movem na cama remetem aos dedos alemães que se fecham, às portas da morte, sob o olhar desesperado dela. Mais uma vez, ela está sozinha, às margens de um rio, seja o Ota, o Loire, ou, mais importante, o tempo, que arrasta a memória, que lava as cinzas do amor e da guerra e leva embora as memórias para não mais serem encontradas. E no entanto, ela se agarra. E no entanto, ela quer lembrar. Agarra-se nas paredes de pedra da masmorra em que a própria família a prende por flertar com o inimigo, desesperada para manter as reminiscências de seu amado. Agarra-se às costas dele, seu novo amante, na cena inicial, enquanto das cinzas vai-se ao suor, enquanto imagens do horror de Hiroshima intercalam os espasmos de seu amor tórrido.
E fala, e fala, e fala. Marguerite Duras concedeu poesia ao roteiro, e o encheu de monólogos, que brotam do aspecto por vezes falso, por vezes triste, por vezes destruído de Emmanuelle Riva, e atingem os ouvidos de Eiji Okada, que os acolhe, e acabam enlaçando-os, com laços que pouco a pouco vão sendo desfeitos e levados embora pela corrente ininterrupta do tempo e da memória. Em sua estréia nos longas metragens, Resnais não estava de brincadeira, e fez um dos filmes mais dificilmente belos já transmitidos a 24 frames por segundo em uma sala de cinema.
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Hiroshima Meu Amor é, sem dúvida, um filme dialético, de imagens que dialogam, que se transformam, que se fundem. Faz parte da sua proposta encher-se de dicotomias, de aspectos opostos das coisas. Temos o ver e o não-ver, a memória e o esquecimento, o homem e a mulher, o ocidente e o oriente, o amor e a guerra. Justamente por sua estrutura dialética, aliada ao seu discurso, vemos como uma coisa dá lugar a outra, como uma coisa leva a outra. Em primeiro plano, há a atriz francesa casada e o arquiteto japonês casado que, sozinhos, acabam se envolvendo numa viagem de trabalho que a primeira faz ao Japão. Atrás deles, ou sobre eles, dependendo de onde você olhe, está Hiroshima, ou o horror e a guerra, e a constante lembrança do horror da guerra e do horror maior de seu esquecimento.
No presente, junto ao amante ocasional, ela se lembra de um amor passado, um estrangeiro, como ele, e do exército inimigo, como ele um dia foi. E ele ouve, tentando entendê-la, ajudá-la, atraí-la. Mas ela se perde cada vez mais no esquecimento. Dialética. Uma coisa leva a outra. Os dedos japoneses que se movem na cama remetem aos dedos alemães que se fecham, às portas da morte, sob o olhar desesperado dela. Mais uma vez, ela está sozinha, às margens de um rio, seja o Ota, o Loire, ou, mais importante, o tempo, que arrasta a memória, que lava as cinzas do amor e da guerra e leva embora as memórias para não mais serem encontradas. E no entanto, ela se agarra. E no entanto, ela quer lembrar. Agarra-se nas paredes de pedra da masmorra em que a própria família a prende por flertar com o inimigo, desesperada para manter as reminiscências de seu amado. Agarra-se às costas dele, seu novo amante, na cena inicial, enquanto das cinzas vai-se ao suor, enquanto imagens do horror de Hiroshima intercalam os espasmos de seu amor tórrido.
E fala, e fala, e fala. Marguerite Duras concedeu poesia ao roteiro, e o encheu de monólogos, que brotam do aspecto por vezes falso, por vezes triste, por vezes destruído de Emmanuelle Riva, e atingem os ouvidos de Eiji Okada, que os acolhe, e acabam enlaçando-os, com laços que pouco a pouco vão sendo desfeitos e levados embora pela corrente ininterrupta do tempo e da memória. Em sua estréia nos longas metragens, Resnais não estava de brincadeira, e fez um dos filmes mais dificilmente belos já transmitidos a 24 frames por segundo em uma sala de cinema.
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quarta-feira, 11 de março de 2009
A Roda #13 - Panorama do Vale de Legium, parte 6
por Lobato Légio
Perto de Akurdati, cidade encravada nas cordilheiras da região mais setentrional do Império, lá onde os picos emergem do solo por vontade própria, implorando por alcançar o céu, e as aves carniceiras devoram suas companheiras moribundas em pleno vôo e não tocam o chão a não ser a cada um ano e um dia, há um pequeno vilarejo de choupanas de palha e gente simples, chamado pela tradição Panaita mas conhecido nos mapas dos desbravadores por Atulana.
O caminho que leva ao vilarejo começa num dos portões de Akurdati, e vai singrando a encosta das montanhas, tornando-se mais sinuoso e estreito a medida que se aproxima do topo do mundo. Grandes rochas e desfiladeiros tangem-no pelas beiradas, mas não se atrevem a invadi-lo, amedrontados de postar-se no caminho dos braços que todos os dias caminham montanha acima ou abaixo entre a cidade e o vilarejo.
Um desses viajantes constantes, da gente de sangue forte das alturas, percorria toda semana a trilha de Akurdati até Panaita, levando tecidos bordados e algumas garrafas de bebida forte, para agradar os homens e as mulheres. Chegava ao centro da aldeia no meio da manhã e sem estardalhaço atraía os vilãos para comprar seus produtos e descobrir novidades. Assim era e assim foi por muito tempo, e assim continuava sendo quando, num dia nublado, o vendedor de panos e águas chegou à aldeia.
Um pequeno grupo de pessoas logo se reuniu ao seu redor e muitos tecidos e bebidas foram vendidos. Os homens discutiam entre si o sabor e o aroma dos líquidos e as mulheres elogiavam com parcimônia o aspecto dos sólidos. Não demorou que um dos clientes mais contumazes do vendedor, como comumente acontecia, o convidasse para almoçar. Sorrindo, o vendedor aceitou, e acompanhou o cliente e a esposa até a cabana em que moravam, um aconchegante lar para o casal e seus quatro filhos. Refestelaram-se de comida e da bebida que o vendedor trouxera, e após a refeição aproveitaram o tempo fresco para cochilar nos almofadões que se espalhavam pelo chão.
Quando acordou com o barulho do vento, a primeira coisa que o vendedor viu foi a dificuldade de ver: o lusco-fusco que tomava conta do ambiente e a brancura que vazava pelas frestas das paredes. Notou que o resto da família ainda dormia, e preferiu não acordá-los. Levantou-se em silêncio e foi até a porta, que abriu com dificuldade. Lá fora, nevava intensamente, e mal se enxergava o próprio chão da rua, já coberto pela neve. Movido por um impulso desafiador, típico de sua juventude, o vendedor lançou um último olhar para os panos e garrafas que trouxera consigo e não vendera, e entrou na nevasca, fechando sem estrondo a porta atrás de si.
Ao acordar, já após o fim da nevasca, o chefe da família notou as pegadas do vendedor, e as seguiu por poucos metros, somente até onde a proteção do telhado cedia e os vestígios haviam sido encobertos pela neve.
O jovem vendedor não mais foi visto.
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terça-feira, 10 de março de 2009
Jules e Jim
Adaptado de um romance de Henri-Pierre Roché, Jules e Jim, para que sua linguagem seja compreendida, precisa necessariamente ser encarado como uma adaptação literária. Se o encararmos como um filme, simplesmente, acabaremos atribuindo-lhe defeitos que, na verdade, são parte de sua proposta e expressão. O principal deles, no caso, é a narração em off que percorre toda a narrativa, e, como é criticado frequentemente, acaba por explicitar coisas que poderiam ficar implícitas, ou confirmar o que poderia ficar em aberto. Mas isso é uma opção de Truffaut, que optou por não transformar a linguagem literária em linguagem cinematográfica, e sim transpor a literariedade para a tela.
Isso, aliado à montagem inovadora do diretor francês, deu ao filme uma agilidade quase vertiginosa, capaz de dar conta, em sua uma hora e cinqüenta minutos, de uma gama enorme de acontecimentos e situações. Afinal de contas, é a adaptação de um romance, e Truffaut, para conseguir adaptar uma narrativa longa, fez um filme picotado, com cenas curtas, rápidas e numerosas. Esse, mais do que a narração é o que eu considero o problema do filme: o ritmo. A edição é estranha, por vezes até incômoda, em sua maneira de apresentar as situações. A fotografia, por sua vez, é belíssima, e não por acaso, claro. Mas o que realmente se destaca, formalmente falando, é a tal da narração.
Como já dito, a narração é justificada. Truffaut, assim como outros diretores da Nouvelle Vague, queria aproximar o cinema da literatura, e para isso enchia as imagens de palavras. Embora se utilize de algumas técnicas inovadoras no filme, o principal recurso narrativo de Truffaut em Jules e Jim é mesmo a narração, como se o diretor lesse para nós o romance e o ilustrasse com imagens. Particularmente, não gosto desse artifício. Sou mais adepto de um cinema que se aproxime do de Vertov, que tente se assumir como arte singular, com seus próprios processos e técnicas. Não abomino a narração em si, mas prefiro que ela seja complementar ás imagens, e não explicativa. Jules e Jim não tem uma narração idiota, que fica contando o que já estamos vendo, mas às vezes tende para isso, explicando talvez fatos que não daria tempo de mostrar, numa ânsia de fidelidade típica da maioria das adaptações.
E tudo isso para quê? Que idéias Truffaut quer expressar? Aí sim a resposta se complica, e o filme ganha em conteúdo e complexidade. Basicamente, o longa é a história de dois grandes amigos, alemão e francês, no início do século XX, que acabam se apaixonando pela mesma mulher. Um deles se casa com ela, mas descobre que o temperamento e o espírito da amada são inconstantes, ansiosos, e que é difícil conviver com ela. O outro vai visitá-los e começa a se envolver com a mulher que já admirava, tudo isso com a conivência de seu grande amigo. Como se vê, é o tipo de história que dá margem a muita tragédia, mas Truffaut (ou antes o autor do romance) prefere tratar as coisas de maneira mais “leve”. Reparem que “leve” não significa “boba”, significa simplesmente que as coisas são mostradas com a maior naturalidade possível, sem que muito peso dramático seja colocado sobre elas. Nessa toada, Truffaut fala sobre amizade, sobre amor, sobre relações humanas em geral, e sonda nossos espíritos e sentimentos para descobrir como eles funcionam, principalmente quando confrontado com as amarras sociais/civilizatórias. É, em essência, um filme libertário, mas nunca deixa que nos abandone a incômoda sensação de que deixar pra trás as “convenções” das relações humanas, mesmo que a “sociedade” não diga nada, é um processo confuso e doloroso, que se dá não entre nossos desejos e os limites coletivos, mas entre os sentimentos antagônicos que disputam nosso coração.
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Isso, aliado à montagem inovadora do diretor francês, deu ao filme uma agilidade quase vertiginosa, capaz de dar conta, em sua uma hora e cinqüenta minutos, de uma gama enorme de acontecimentos e situações. Afinal de contas, é a adaptação de um romance, e Truffaut, para conseguir adaptar uma narrativa longa, fez um filme picotado, com cenas curtas, rápidas e numerosas. Esse, mais do que a narração é o que eu considero o problema do filme: o ritmo. A edição é estranha, por vezes até incômoda, em sua maneira de apresentar as situações. A fotografia, por sua vez, é belíssima, e não por acaso, claro. Mas o que realmente se destaca, formalmente falando, é a tal da narração.
Como já dito, a narração é justificada. Truffaut, assim como outros diretores da Nouvelle Vague, queria aproximar o cinema da literatura, e para isso enchia as imagens de palavras. Embora se utilize de algumas técnicas inovadoras no filme, o principal recurso narrativo de Truffaut em Jules e Jim é mesmo a narração, como se o diretor lesse para nós o romance e o ilustrasse com imagens. Particularmente, não gosto desse artifício. Sou mais adepto de um cinema que se aproxime do de Vertov, que tente se assumir como arte singular, com seus próprios processos e técnicas. Não abomino a narração em si, mas prefiro que ela seja complementar ás imagens, e não explicativa. Jules e Jim não tem uma narração idiota, que fica contando o que já estamos vendo, mas às vezes tende para isso, explicando talvez fatos que não daria tempo de mostrar, numa ânsia de fidelidade típica da maioria das adaptações.
E tudo isso para quê? Que idéias Truffaut quer expressar? Aí sim a resposta se complica, e o filme ganha em conteúdo e complexidade. Basicamente, o longa é a história de dois grandes amigos, alemão e francês, no início do século XX, que acabam se apaixonando pela mesma mulher. Um deles se casa com ela, mas descobre que o temperamento e o espírito da amada são inconstantes, ansiosos, e que é difícil conviver com ela. O outro vai visitá-los e começa a se envolver com a mulher que já admirava, tudo isso com a conivência de seu grande amigo. Como se vê, é o tipo de história que dá margem a muita tragédia, mas Truffaut (ou antes o autor do romance) prefere tratar as coisas de maneira mais “leve”. Reparem que “leve” não significa “boba”, significa simplesmente que as coisas são mostradas com a maior naturalidade possível, sem que muito peso dramático seja colocado sobre elas. Nessa toada, Truffaut fala sobre amizade, sobre amor, sobre relações humanas em geral, e sonda nossos espíritos e sentimentos para descobrir como eles funcionam, principalmente quando confrontado com as amarras sociais/civilizatórias. É, em essência, um filme libertário, mas nunca deixa que nos abandone a incômoda sensação de que deixar pra trás as “convenções” das relações humanas, mesmo que a “sociedade” não diga nada, é um processo confuso e doloroso, que se dá não entre nossos desejos e os limites coletivos, mas entre os sentimentos antagônicos que disputam nosso coração.
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François Truffaut
segunda-feira, 9 de março de 2009
Listas do American Film Institute
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O AFI, American Film Institute, quando dos cem anos do cinema americano, divulgou uma lista, fruto de eleição com diversos artistas do meio cinematográfico, com os 100 melhores filmes em língua inglesa de todos os tempos. Isso foi em 1998. Nos anos seguintes, outras listas, mais específicas, foram divulgadas, contemplando Comédias, Falas, Filmes Edificantes, de Suspense, etc., até que em 2007, para comemorar os 10 anos da lista inaugural, foi divulgada uma outra, atualizada, com os "novos" melhores longa-metragens de sempre.
Todo esse material está disponível na Wikipédia, e é uma fonte valiosíssima de consulta. Confiram!
Série de listas dos 100 anos do AFI.
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O AFI, American Film Institute, quando dos cem anos do cinema americano, divulgou uma lista, fruto de eleição com diversos artistas do meio cinematográfico, com os 100 melhores filmes em língua inglesa de todos os tempos. Isso foi em 1998. Nos anos seguintes, outras listas, mais específicas, foram divulgadas, contemplando Comédias, Falas, Filmes Edificantes, de Suspense, etc., até que em 2007, para comemorar os 10 anos da lista inaugural, foi divulgada uma outra, atualizada, com os "novos" melhores longa-metragens de sempre.
Todo esse material está disponível na Wikipédia, e é uma fonte valiosíssima de consulta. Confiram!
Série de listas dos 100 anos do AFI.
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domingo, 8 de março de 2009
Citação de Sexta: Sombras elétricas
“Quando a derradeira e trêmula imagem de uma sequência de cenas se desvanecia e se fazia luz na sala, exibindo à multidão o campo das visões em forma de uma tela vazia, faltava até uma oportunidade para bater palmas. Não estava presente ninguém que se pudesse aplaudir e admirar, graças à arte por ele demonstrada. Os artistas que se haviam reunido para dar o espetáculo que o público acabava de desfrutar, fazia muito que se tinham dispersado. O que se vira eram apenas as sombras das suas façanhas, milhões de imagens, brevíssimos instantâneos, em que se dissecara a sua atividade durante o processo fotográfico, para que fosse possível restituí-la ao elemento do tempo, cada vez que se quisesse, num curso tremeluzente de tanta rapidez. O silêncio da assistência após o fim da ilusão tinha qualquer coisa de inerte e repugnante. As mãos jaziam impotentes em face do nada. As pessoas esfregavam os olhos, miravam fixamente o ar, tinham vergonha da claridade e desejavam voltar à escuridão, para tornarem a contemplar, para novamente verem, como se desenrolavam, transplantadas para tempo fresco e arrebicadas pela música, aquelas cenas pertencentes a um outro tempo.”
- Thomas Mann, A Montanha Mágica
* O capítulo de hoje do Tratado Universalizante da Xurepa não será publicado por problemas técnicos. Mas semana que vem ele entra na sexta-feira, normalmente.
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quinta-feira, 5 de março de 2009
sexo, mentiras, e videotape
Com a crítica de hoje, inicio um pequeno ciclo de comentários sobre filmes verborrágicos, aqueles que se utilizam muito do monólogo e da narração para expressar idéias e contar histórias. No entanto, se os dois filmes da próxima semana são verborrágicos por buscarem uma aproximação da literatura (o que considero um retrocesso do ponto de vista cinematográfico, mas enfim, isso é pra semana que vem), o filme de hoje é verborrágico porque é essencial para ele ser assim, porque ele fala de comunicação, confissão, mentira e hipocrisia, temas que têm muito a ver com o uso do discurso.
sexo, mentiras e videotape (grafado em minúsculas no pôster original), produção independente e obra de estréia do diretor Steven Soderbergh, ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes em 89, e é considerada por muitos a obra máxima desse estranho diretor americano. Munido de praticamente só quatro atores e quatro personagens, Soderbergh partiu para cima de um tema pouco abordado no mainstream norte-americano: o sexo. O puritanismo dos órgãos reguladores de cinema dos EUA é notório, mas Soderbergh, fazendo um filme independente, não teve de se sujeitar a muitas imposições de estúdio. No entanto, isso não significa que o filme seja erótico ou algo do gênero: o foco aqui é, de fato, falar de sexo.
Ann Millaney é casada com John Millaney, mas nunca gostou muito de sexo e nos últimos tempos tem sentido nojo de ser tocada. John, por sua vez, trai a esposa com a cunhada, Cynthia, que tem jeito de ninfomaníaca amalucada, mas revelará ter tutano durante o filme. E o agente que chega pra desestabilizar essa organização já precária é Graham, antigo amigo de John que vem passar uns dias em sua casa.
Desde o princípio, a ação do filme é pautada nos diálogos. Ann conta seus problemas e pensamentos ao terapeuta. Cynthia fala livremente sobre a irmã com o amante, que além de contar detalhes da vida íntima de casal tem um estilo expansivo nos diálogos em geral. Quem foge um pouco à regra é Graham, que no início do filme aparece sozinho e, embora não tenha muitos freios para dizer o que pensa, prefere a quietude. As cenas de sexo propriamente dito, por sua vez, aparecem só em alguns pontos do enredo, e nunca são apelativas: são, digamos, filmadas de maneira eficiente, para passar a mensagem, sem puritanismo ou romantismo, mas também sem apelar para a pornografia.
O que de mais “pornográfico” existe no filme é justamente uma outra manifestação da fala, do desabafo sexual: Graham, após ser rejeitado por uma antiga namorada, tornou-se impotente, e começou a filmar mulheres falando sobre sexo, para depois atingir o prazer onanista por meio da assistência dessas fitas. Ann, que desde o princípio ficara um pouco fascinada por Graham, descobre o conteúdo das fitas, e então o enredo tem início de fato. Desse modo, alternando algumas cenas de ação com outras de monólogos e diálogos, Soderbergh escancara seus personagens, suas ações e motivações.
E o mais importante: fala se sexo sem meias palavras. O tema, podem contar, possui mais metáforas do que a morte. O número de expressões que podem adquirir um sentido secundário relacionado ao ato sexual é gigantesca. Com alguma inovação formal, o diretor analisa, subtextualmente, o fascínio da imagem, da narração, ao mesmo tempo que, no primeiro plano, descortina as obsessões de seus personagens, e até mesmo suas “perversões”, levando-os até a catarse e a libertação de suas amarras auto-impostas. Há algo de conservador na visão que o diretor tem sobre o tema, é verdade, mas há também algo de construtivo, de conciliatório, na medida em que não tem medo de falar sobre sexo e sobre gente - que faz sexo - e como essa gente pensa e vive o assunto, além de tocar, sutilmente, a velha fronteira do amor, da paz interior e da felicidade.
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sexo, mentiras e videotape (grafado em minúsculas no pôster original), produção independente e obra de estréia do diretor Steven Soderbergh, ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes em 89, e é considerada por muitos a obra máxima desse estranho diretor americano. Munido de praticamente só quatro atores e quatro personagens, Soderbergh partiu para cima de um tema pouco abordado no mainstream norte-americano: o sexo. O puritanismo dos órgãos reguladores de cinema dos EUA é notório, mas Soderbergh, fazendo um filme independente, não teve de se sujeitar a muitas imposições de estúdio. No entanto, isso não significa que o filme seja erótico ou algo do gênero: o foco aqui é, de fato, falar de sexo.
Ann Millaney é casada com John Millaney, mas nunca gostou muito de sexo e nos últimos tempos tem sentido nojo de ser tocada. John, por sua vez, trai a esposa com a cunhada, Cynthia, que tem jeito de ninfomaníaca amalucada, mas revelará ter tutano durante o filme. E o agente que chega pra desestabilizar essa organização já precária é Graham, antigo amigo de John que vem passar uns dias em sua casa.
Desde o princípio, a ação do filme é pautada nos diálogos. Ann conta seus problemas e pensamentos ao terapeuta. Cynthia fala livremente sobre a irmã com o amante, que além de contar detalhes da vida íntima de casal tem um estilo expansivo nos diálogos em geral. Quem foge um pouco à regra é Graham, que no início do filme aparece sozinho e, embora não tenha muitos freios para dizer o que pensa, prefere a quietude. As cenas de sexo propriamente dito, por sua vez, aparecem só em alguns pontos do enredo, e nunca são apelativas: são, digamos, filmadas de maneira eficiente, para passar a mensagem, sem puritanismo ou romantismo, mas também sem apelar para a pornografia.
O que de mais “pornográfico” existe no filme é justamente uma outra manifestação da fala, do desabafo sexual: Graham, após ser rejeitado por uma antiga namorada, tornou-se impotente, e começou a filmar mulheres falando sobre sexo, para depois atingir o prazer onanista por meio da assistência dessas fitas. Ann, que desde o princípio ficara um pouco fascinada por Graham, descobre o conteúdo das fitas, e então o enredo tem início de fato. Desse modo, alternando algumas cenas de ação com outras de monólogos e diálogos, Soderbergh escancara seus personagens, suas ações e motivações.
E o mais importante: fala se sexo sem meias palavras. O tema, podem contar, possui mais metáforas do que a morte. O número de expressões que podem adquirir um sentido secundário relacionado ao ato sexual é gigantesca. Com alguma inovação formal, o diretor analisa, subtextualmente, o fascínio da imagem, da narração, ao mesmo tempo que, no primeiro plano, descortina as obsessões de seus personagens, e até mesmo suas “perversões”, levando-os até a catarse e a libertação de suas amarras auto-impostas. Há algo de conservador na visão que o diretor tem sobre o tema, é verdade, mas há também algo de construtivo, de conciliatório, na medida em que não tem medo de falar sobre sexo e sobre gente - que faz sexo - e como essa gente pensa e vive o assunto, além de tocar, sutilmente, a velha fronteira do amor, da paz interior e da felicidade.
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quarta-feira, 4 de março de 2009
100 filmes de cinema
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Quem visita o blog há algum tempo sabe que eu sou afeito a comemorar datas e efemérides por aqui. Foi assim com o centésimo post, foi assim com o aniversário do blog, e é assim agora, um dia após ir ao ar a centésima crítica de filme (se considerarmos O Poderoso Chefão como um só) que eu escrevi para o Amortescimento. Quando eu penso na quantidade de filmes que 100 representa, fico um pouco espantado de, após somente um ano, já ter chego a isso, mas fico ainda mais espantado, e maravilhado, ao perceber a quantidade de filmes que ainda falta ver, a quantidade de filmes que todos os não vistos representa, e como 100 é um número tímido e quase desprezível em comparação a ela.
Mas esses 100 são os que eu vi, e os que eu tive vontade de escrever a respeito. E por isso eles se afiguram especiais, para mim. Sobre eles, escrevi o que fui capaz a cada momento. Muitas vezes, uma segunda audiência me traz idéias novas, uma visão mais completa, mais fresca do filme, mas aí já é tarde demais: ao menos por enquanto. As minhas críticas às vezes atingem um sucesso razoável em sua análise, mas às vezes falham miseravelmente. Se por vezes detalho simbolismos, personagens e enredos, outras vezes me limito à sinopse e a uma constatação genérica sobre o tema do filme, sem destacar seu discurso. A falha, aí, pode estar em minha visão do filme, em meu texto, em minha boa vontade, mas ela nunca está no filme, por um simples motivo: só posto aqui críticas de filmes dos quais eu gosto um mínimo. Às vezes vejo defeitos, limitações, etc., mas nunca escreverei uma crítica que destrua um filme aqui no blog, pois mesmo que eu odeie alguma obra, o que é difícil, preferirei ignorá-la a falar mal de sua criação.
Isso porque a lide cinematográfica é um ofício que me desperta paixão. O cinema, a emoção em movimento, é um sonho a 24 frames por segundo. O último fade-out é o susto, o primeiro abrir de pálpebras após o sono, e o subseqüente maravilhamento que sentimos à medida que as luzes da sala se acendem e os corpos começam a se mover nas cadeiras é análoga à confusão mental do pós-sono que lentamente se dissipa na claridade da manhã. A imagem e o texto convergem na tela, após serem repetidos incontáveis vezes até se encontrar o registro perfeito, após o roteiro dar lugar ao storyboard dar lugar ao ensaio dar lugar ao take dar lugar à mão do cineasta que com cuidado e perícia monta tudo isso e transforma na ilusão definitiva.
Os grandes gênios são incontáveis, tanto os vistos quanto os não vistos. Aquele para quem o mundo dos sonhos não tinha segredos, o grande Tarkovski. Bergman, que com humildade negou sua importância inigualável para a arte, sua importância como a mente que vê no mundo maravilha e horror, e questiona e se aprofunda na alma do homem. Fellini, progenitor do bizarro, do absurdo simbólico, do humor que se transforma em drama que se transforma em verdade. Kurosawa, o agregador, sempre disposto a construir seus filmes como se constrói outras artes, todas elas, o feitor de “óperas” eternas singelas, de artes plásticas, música, literatura, dança e teatro se confundindo e se tornando uma só coisa sob o olhar da câmera. Buñuel, que trouxe o horror e o surreal que se escondem lá no fundo para bem perto dos nossos olhos. E tantos outros que cito e continuo a citar aqui, para que sejam apreciados, Ford, Hitchcock, Welles, Kubrick, Capra, Wilder, Chaplin, Coppola, Truffaut, Herzog, Wenders, Antonioni, Scorsese, Person, Sganzerla...
Os gênios pioneiros, Eisenstein e Griffith e Vertov, e os contemporâneos, Lynch, P.T. Anderson, Joel e Ethan Coen... do primeiro filme de todos, Chegada do Trem à Cidade, até uma obra-prima do ano passado, Wall-E, os 100 filmes que já vieram parar naquela coluna ali à esquerda são representantes da melhor arte que o ser humano produziu no último século. Se ainda há lacunas terríveis ali, como o expressionismo alemão, mais coisas do cinema mudo, etc., o que me move é o desejo de preenche-las. Pois o cinema, a despeito dos recorrentes discursos apocalípticos, é uma arte viva, capaz de surpreender, e que possui ainda uma longa história de triunfos e obras sublimes. Ontem, dia do meu aniversário, o número de filmes comentados no blog chegou a 100. Mas eu sou novo. Hoje, começa a nova centena, e com os anos e as décadas que estão por vir se multiplicarão os nomes que hoje ali se mostram. Sempre em movimento: assim é o cinema, arte implacável do tempo. E assim pretendo ser, quanto a isso, não deixando nunca arrefecer o fogo que em meu peito arde de sede da arte que nunca pára. Luzes, câmera, som...
Ação!
P.S.: Perdoem o desfecho brega. E esse mês não tem leituras, mas mês que vem tem! Voltem dia Primeiro de Abril para as críticas de livros, queridos. Ou não.
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Quem visita o blog há algum tempo sabe que eu sou afeito a comemorar datas e efemérides por aqui. Foi assim com o centésimo post, foi assim com o aniversário do blog, e é assim agora, um dia após ir ao ar a centésima crítica de filme (se considerarmos O Poderoso Chefão como um só) que eu escrevi para o Amortescimento. Quando eu penso na quantidade de filmes que 100 representa, fico um pouco espantado de, após somente um ano, já ter chego a isso, mas fico ainda mais espantado, e maravilhado, ao perceber a quantidade de filmes que ainda falta ver, a quantidade de filmes que todos os não vistos representa, e como 100 é um número tímido e quase desprezível em comparação a ela.
Mas esses 100 são os que eu vi, e os que eu tive vontade de escrever a respeito. E por isso eles se afiguram especiais, para mim. Sobre eles, escrevi o que fui capaz a cada momento. Muitas vezes, uma segunda audiência me traz idéias novas, uma visão mais completa, mais fresca do filme, mas aí já é tarde demais: ao menos por enquanto. As minhas críticas às vezes atingem um sucesso razoável em sua análise, mas às vezes falham miseravelmente. Se por vezes detalho simbolismos, personagens e enredos, outras vezes me limito à sinopse e a uma constatação genérica sobre o tema do filme, sem destacar seu discurso. A falha, aí, pode estar em minha visão do filme, em meu texto, em minha boa vontade, mas ela nunca está no filme, por um simples motivo: só posto aqui críticas de filmes dos quais eu gosto um mínimo. Às vezes vejo defeitos, limitações, etc., mas nunca escreverei uma crítica que destrua um filme aqui no blog, pois mesmo que eu odeie alguma obra, o que é difícil, preferirei ignorá-la a falar mal de sua criação.
Isso porque a lide cinematográfica é um ofício que me desperta paixão. O cinema, a emoção em movimento, é um sonho a 24 frames por segundo. O último fade-out é o susto, o primeiro abrir de pálpebras após o sono, e o subseqüente maravilhamento que sentimos à medida que as luzes da sala se acendem e os corpos começam a se mover nas cadeiras é análoga à confusão mental do pós-sono que lentamente se dissipa na claridade da manhã. A imagem e o texto convergem na tela, após serem repetidos incontáveis vezes até se encontrar o registro perfeito, após o roteiro dar lugar ao storyboard dar lugar ao ensaio dar lugar ao take dar lugar à mão do cineasta que com cuidado e perícia monta tudo isso e transforma na ilusão definitiva.
Os grandes gênios são incontáveis, tanto os vistos quanto os não vistos. Aquele para quem o mundo dos sonhos não tinha segredos, o grande Tarkovski. Bergman, que com humildade negou sua importância inigualável para a arte, sua importância como a mente que vê no mundo maravilha e horror, e questiona e se aprofunda na alma do homem. Fellini, progenitor do bizarro, do absurdo simbólico, do humor que se transforma em drama que se transforma em verdade. Kurosawa, o agregador, sempre disposto a construir seus filmes como se constrói outras artes, todas elas, o feitor de “óperas” eternas singelas, de artes plásticas, música, literatura, dança e teatro se confundindo e se tornando uma só coisa sob o olhar da câmera. Buñuel, que trouxe o horror e o surreal que se escondem lá no fundo para bem perto dos nossos olhos. E tantos outros que cito e continuo a citar aqui, para que sejam apreciados, Ford, Hitchcock, Welles, Kubrick, Capra, Wilder, Chaplin, Coppola, Truffaut, Herzog, Wenders, Antonioni, Scorsese, Person, Sganzerla...
Os gênios pioneiros, Eisenstein e Griffith e Vertov, e os contemporâneos, Lynch, P.T. Anderson, Joel e Ethan Coen... do primeiro filme de todos, Chegada do Trem à Cidade, até uma obra-prima do ano passado, Wall-E, os 100 filmes que já vieram parar naquela coluna ali à esquerda são representantes da melhor arte que o ser humano produziu no último século. Se ainda há lacunas terríveis ali, como o expressionismo alemão, mais coisas do cinema mudo, etc., o que me move é o desejo de preenche-las. Pois o cinema, a despeito dos recorrentes discursos apocalípticos, é uma arte viva, capaz de surpreender, e que possui ainda uma longa história de triunfos e obras sublimes. Ontem, dia do meu aniversário, o número de filmes comentados no blog chegou a 100. Mas eu sou novo. Hoje, começa a nova centena, e com os anos e as décadas que estão por vir se multiplicarão os nomes que hoje ali se mostram. Sempre em movimento: assim é o cinema, arte implacável do tempo. E assim pretendo ser, quanto a isso, não deixando nunca arrefecer o fogo que em meu peito arde de sede da arte que nunca pára. Luzes, câmera, som...
Ação!
P.S.: Perdoem o desfecho brega. E esse mês não tem leituras, mas mês que vem tem! Voltem dia Primeiro de Abril para as críticas de livros, queridos. Ou não.
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terça-feira, 3 de março de 2009
No Tempo das Diligências
No princípio havia John Ford, e então se fez o faroeste. Ford não foi, é verdade, o pioneiro do gênero (que nascera, afinal, nos livros baratos do final do século XIX), mas foi com No Tempo das Diligências, uma de suas obras mais célebres, que o faroeste ganhou suas características clássicas: as panorâmicas das paisagens áridas do sul dos EUA (e mais especificamente o Monument Valley), os tiroteios, as perseguições, os personagens típicos, os apaches e, é claro, John Wayne. Ford uniu influências do que havia de faroeste anterior e condensou nessa obra-prima, que ainda nos deu novos aspectos que se tornariam comuns no gênero.
Diz-se que, enquanto filmava Cidadão Kane, Orson Welles viu No Tempo das Diligências 40 vezes. Não dá pra dizer se isso é mito ou realidade, mas não seria difícil que tal coisa tivesse acontecido. O que Ford fez nesse filme é espantoso. Ele constrói um filme equilibrado com um enredo ao mesmo tempo extenso e limitado, e tratando de diversos temas concomitantemente.
O foco, aqui, está nos personagens, embora haja um bom número de cenas de ação (das quais tratarei mais adiante). E que personagens! Ao todo, são 9 os protagonistas, passageiros de uma diligência que precisa atravessar um pedaço de terra dominado pelos apaches para entregar um recado numa cidade relativamente distante. Cada um representa um tipo tradicional do faroeste: a prostituta, o apostador, o médico, o pistoleiro, o xerife, o caixeiro viajante, o banqueiro... E, mesmo com uma metragem de apenas uma hora e quarenta minutos, todos esses personagens são bem delineados e apresentados, consistentes, enfim, e com personalidades próprias. Por meio deles, Ford toca em temas como o preconceito social, o vício, a lei, a vingança... enfim, aspectos centrais do faroeste.
E além desse talento dramático, há também em No Tempo das Diligências um espaço importante para a comédia e a ação, de novo magistralmente conduzidas pelo diretor. A cena de perseguição no deserto é, sem exagero, uma das mais espetaculares da história do cinema, um primor de ação cinematográfica. Sem recorrer a músicas explosivas ou incidentais, excesso de barulho, explosões ou nada do tipo, Ford filma uma cena perfeita, eletrizante, irretocável. Mais um trunfo para esse filme seminal.
No Tempo das Diligências, portanto, trouxe uma gama de personagens e situações típicos, uma mistura equilibrada de ação, drama e comédia, e até mesmo John Wayne para o western. Mas, mais do que isso, foi a estréia no gênero do maior diretor que filmou o deserto e seus pistoleiros: John Ford, o gênio.
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Diz-se que, enquanto filmava Cidadão Kane, Orson Welles viu No Tempo das Diligências 40 vezes. Não dá pra dizer se isso é mito ou realidade, mas não seria difícil que tal coisa tivesse acontecido. O que Ford fez nesse filme é espantoso. Ele constrói um filme equilibrado com um enredo ao mesmo tempo extenso e limitado, e tratando de diversos temas concomitantemente.
O foco, aqui, está nos personagens, embora haja um bom número de cenas de ação (das quais tratarei mais adiante). E que personagens! Ao todo, são 9 os protagonistas, passageiros de uma diligência que precisa atravessar um pedaço de terra dominado pelos apaches para entregar um recado numa cidade relativamente distante. Cada um representa um tipo tradicional do faroeste: a prostituta, o apostador, o médico, o pistoleiro, o xerife, o caixeiro viajante, o banqueiro... E, mesmo com uma metragem de apenas uma hora e quarenta minutos, todos esses personagens são bem delineados e apresentados, consistentes, enfim, e com personalidades próprias. Por meio deles, Ford toca em temas como o preconceito social, o vício, a lei, a vingança... enfim, aspectos centrais do faroeste.
E além desse talento dramático, há também em No Tempo das Diligências um espaço importante para a comédia e a ação, de novo magistralmente conduzidas pelo diretor. A cena de perseguição no deserto é, sem exagero, uma das mais espetaculares da história do cinema, um primor de ação cinematográfica. Sem recorrer a músicas explosivas ou incidentais, excesso de barulho, explosões ou nada do tipo, Ford filma uma cena perfeita, eletrizante, irretocável. Mais um trunfo para esse filme seminal.
No Tempo das Diligências, portanto, trouxe uma gama de personagens e situações típicos, uma mistura equilibrada de ação, drama e comédia, e até mesmo John Wayne para o western. Mas, mais do que isso, foi a estréia no gênero do maior diretor que filmou o deserto e seus pistoleiros: John Ford, o gênio.
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