quinta-feira, 23 de abril de 2009

Estertor

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Ele respirou pela última vez (profundamente, como se por suas narinas entrasse todo o ar do mundo, como se ele pudesse carregar para além da vida todo o aroma ali contido, agarrando pelos poros as últimas reminiscências, trancando à chave no peito agonizante a última Verdade, a conclusão definitiva, espocando no final, a resposta para todas as suas perguntas e as suas perguntas todas reunidas no abraço de uma única pergunta, a pergunta que faria sua vida fazer sentido pela mera pronúncia, e depois dela a resposta impronunciável, como na história que seu pai contava quando dizia “Ei, criança, há muita beleza e muito horror no mundo, e há muitas vidas pelas quais a gente passa todos os dias, o dia todo, e podemos apenas imaginar quem são aqueles vultos, de onde estão vindo, para onde vão, o que pensam, e podemos apenas tentar, inabilmente, sentir algo por essas vidas, tentar enxergar a importância delas assim como você é importante, e tentar descobrir de onde elas vêem o mundo, assim como você vê. Mas se um dia você se sentir cansado e frustrado por não conseguir extrair nada dos rostos que passam, se você se sentir sozinho e desesperançoso, e seu coração parecer gritar por um sentido, pela verdade que ele não enxerga nas coisas, lembre-se dessa história que teu pai te conta agora, assim como meu pai me contou e o pai do meu pai antes dele e todos os pais, um após o outro, têm contado através dos séculos, pois ele começava dizendo ‘O mundo faz sentido, sim, meu filho, existe uma resposta. Na minha juventude, havia um homem estranho, um morador de rua que vagava diariamente pelo bairro, vestido de trapos, falando sozinho e cantando baixinho, sendo sempre educado e amável ao conversar com as pessoas. Todos gostavam muito dele, e até lhe ofereciam moradia e comida, mas ele só aceitava um pouco de comida e dizia: Não se preocupem comigo. Um dia, quando eu já estava com meus quinze anos, o encontrei caído em frente de casa, de bruços, o rosto amassado contra a calçada. Corri para acudi-lo, e ao virá-lo vi reluzir em seu rosto a imagem de um sorriso. Não como aqueles sorrisos serenos que ele sempre distribuía, mas um sorriso triunfante. Perguntei a ele o que tinha acontecido, se ele estava bem, mas ele levou o dedo à própria boca, pedindo silêncio. Depois, sussurrou baixinho certas palavras, cujo som ainda hoje ouço perfeitamente. Ele olhou nos meus olhos, então, pela última vez, e se foi dessa vida.’, mas eu tenho a impressão, filho, de que seu avô nunca soube o que aquele mendigo disse, em seus momentos finais. Quando eu perguntava, ele desconversava, mas não queria me dizer como isso mostrava o sentido do mundo. No entanto, eu mesmo, agora já velho, relembro das palavras do meu pai, e do seu tom de voz, e de sua vida, e percebo onde ele encontrou o sentido do mundo. Seu avô nunca compreendeu a serenidade daquele morador de rua, nem sua morte, nem suas palavras, mas o mero som daquele mero sussurro despertou nele algo que jamais sentira, o trepidar de uma verdade impossível de expressar mas capaz de provocar as mais violentas sensações, Verdade essa que se aninhou em sua mente para persegui-lo pelo resto de seus dias.” e depois deixava pairando no ar o que encontrara em sua busca pelo sentido do mundo na história de seu próprio pai, e o que seu pai encontrara no som das palavras do mendigo, e o que o mendigo encontrara antes de ir morar ali, naquela rua suburbana, e como seria possível o pai de seu avô ter contado aquela história a ele se ela acontecera com o próprio garoto, e como seria possível que todos os pais dos séculos a tivessem contado para seus filhos se ela era uma história tão particular, um episódio tão pequeno na vida de um único garoto, e nesse momento compreendeu que passara a vida tentando se lembrar, das palavras do pai, em que ponto ele lhe havia dado uma resposta, e percebeu que, para seu próprio filho, contara também aquela história, e expusera-lhe também as próprias dúvidas, e finalmente deu-se conta de que o legado de todas as gerações fora sempre o mistério, a pergunta não pronunciada, e que ele próprio já havia cumprido seu papel ao incutir no próprio filho a sensação do não saber, a pergunta que ele sequer conhecia, e no entanto, se passara todos os seus dias ignorante da própria ignorância, agora dava-se conta de tudo, e enfim, após todos aqueles anos, estava preparado para proferir a pergunta e receber em sua alma a resposta e por isso poderia sorrir, e sorriu), e morreu.
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9 comentários:

Elienai disse...

Que bom que tenha voltado, caro Tuma.
Abraços.

João G. Viana/Pudim disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Elienai disse...

Queremos mais, doc!
Abraços.

Anônimo disse...

interessante!

Anônimo disse...

hello... hapi blogging... have a nice day! just visiting here....

Juka disse...

Eu a-d-o-r-e-i!!! (e com isso afirmo que é um de seus melhores textos, talvez o melhor, a ideia - agora sem acento, e eu inconformada por isso - foi MUITO bem executada e isso me impressionou.
Sou sua fã, muito forte!!!


'Ele respirou pela última vez, e morreu.'

simplesmente mágico!

Se a qualidade dos textos ficar assim enquanto vc não posta diariamente é um BOM sinal que respirar um pouco te faz bem! ;D

:*

Karina Lopes disse...

nossa, muuuuuito bom o texto, muito bom mesmo!
adorei, vou sempre passar por aqui. :)

Sib disse...

mas que parênteses grande!
só li agora, mas belo texto.
é incrível como bons textos conseguem se resumir a uma frase, não..?
saudades. não conseguimos marcar nosso dia de vídeo!

Cassionei Petry disse...

Muito bom tu blog.Abraço.