- Castles Made of Sand, Jimi Hendrix
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As coisas escapam de suas mãos e vão ao chão, estilhaçando-se umas contra as outras e voltando a cair, atraídas irresistivelmente pela força da gravidade. Grave, o semblante de mãos abertas fita os cacos e fragmentos espalhados pelo chão, tentando apreender daquele amontoado de destroços algum sentido completo. Mas é de todo inútil. Só o que eles fazem é mandar luzes e reflexos desconexos que espocam ante seus olhos e os ferem em certa medida.
Indeciso, ele permanece ainda um instante imóvel, antes de se jogar ao chão e procurar, com dedos doloridos e frígidos, reunir ainda uma vez as peças e estilhaços. Agilmente, ele tateia com as mãos o solo e os fragmentos, buscando padrões reconhecíveis, para depois tentar uni-los numa forma inteligível. Em sua pressa, a cada erro deixa uma peça que não se encaixa voltar ao chão, e mais uma vez ela se rompe e se espalha. Vez após outra, as mãos ágeis e os dedos frígidos e os olhos feridos destroem inadvertidamente as coisas estilhaçadas pelo chão, com sua ânsia irrefreável para restituir aos fragmentos sua forma inicial.
Logo, o pedaço já virou pó, o vidro já virou areia, e uma onda calma vem lavar seus pés da sujeira e suas mãos do sangue que escorre por pequenos cortes em seus dedos, e levar embora os últimos vestígios das coisas passadas. Ele se deita de costas na areia e deixa seus olhos descansarem. Mais uma onda, e outra, vêm lavar-lhe, limpar seu corpo, e outra, e outra, e outra... Até que, num estalo, ele faz seu corpo levantar, desgarrar-se da terra para o qual é chamado e aprumar-se com decência de pés fincados no chão.
Uma nova idéia, um novo projeto de coisa. Construir um grande e bonito castelo de areia. Ainda fascinado com sua visão, corre os olhos pelos arredores, buscando no horizonte alguma vaga inspiração. Ele pede às nuvens que o ajudem, que o ensinem como se engendra um castelo no ar, para que ele possa ser criador de um castelo muito preso à terra. Enquanto se perde em seus pensamentos e conjecturas, uma grande onda, surgida do nada e ida para lugar algum, o derruba sentado na areia. Espantado, percebe que, para que seu castelo seja verdadeiramente sólido, não pode construí-lo ali.
Sim, ele deverá ser erigido na rocha. Não longe dali, no limite da praia, uma formação de grandes pedras o atrai. Não sem dificuldade, ele as galga, e de cima observa o movimento das ondas e das areias. Perfeito. Diletantemente, ele percorre inúmeras vezes a distância entre as pedras e a praia, levando porções de areia da orla para servirem de matéria ao seu castelo.
Com cuidado artesanal, esculpe paredes, torres, ameias, janelas, portões, compondo assim seu próprio Elsinore. Ao terminar, já esgotado, vê o sol quase tocando o poente. Contempla então sua própria obra e rufa de orgulho. Seus olhos brilham de satisfação, com este pequeno graal alcançado. Ele se espreguiça e estrala seus ossos, deixando que a dor vaze e o cansaço tome conta de seu corpo.
Ainda preocupado, desce até uma rocha mais baixa e olha para o mar. Não há motivo para preocupação, percebe. Grandes e violentas ondas arrebentam contra as rochas, mas é o mesmo efeito de ondas calmas na quilha de um navio: a rocha permanece incólume e o castelo, intocável. Enquanto solta um leve sorriso de vitória, uma brisa desarranja seus cabelos. Tornando-se mais forte, ela faz suas roupas drapejarem. Dá um passo para o lado, buscando equilíbrio, mas escorrega e bate o rosto contra a rocha. Seu nariz sangra. O vento torna-se mais forte. Torna-se tempestade, um sopro feroz que o atordoa mais que o sangramento.
Querendo proteger seu castelo, levanta-se e sobe até a rocha mais alta. A tempestade não moveu um grão de areia. Suspiro. Uma nova lufada arranca o topo de uma de suas torres e seu grito de terror é engolido pelo vento. Ele tenta caminhar contra ele, abraçando seu castelo, mas o movimento do ar lança areia sobre seus olhos, ferindo-os sobremaneira. As janelas vão se abrindo, arregaçando a visão para dentro do castelo. As torres como que escorrem, jogando sobre as ameias uma massa amorfa de areia. O portão imponente já não há mais. Uma onda explode ao lado, molhando-o os cabelos. O vento dá término ao último bastião do castelo de areia.
Seus olhos pulsam se dor, seus dedos estão pálidos, ele não os sente. O sol termina de afundar no horizonte, e lança uma luz mortiça sobre toda a terra. Ele se agacha, incrédulo, e toma uma punhado de areias nas mãos. Sem tomar nota do gesto, elas escorrem entre seus dedos. As coisas-areia escapam de suas mãos e vão ao chão, jogando-se umas contra as outras e voltando a cair, atraídas irresistivelmente pela força da gravidade.
Um comentário:
Obrigado pela visita, Tuma. Achava que ninguém tinha sentido minha falta... hehe...
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