quinta-feira, 9 de abril de 2009

O Novo Mundo

Em cada um dos filmes de Malick, há uma cena importante na qual os personagens principais aparecem em paz. Essa cena pode estar no começo ou no meio do filme, mas o mais importante é sua localização. Em tais cenas, quando os protagonistas vivem um idílio, seja esse interlúdio ou preâmbulo do que está por vir, eles o vivem em meio à natureza. A vida em comunhão com a natureza é o paraíso perdido de Malick. Em Terra de Ninguém, após fugirem da casa de Holly, ela e Kit passam um tempo em uma “casinha” construída por eles em meio às árvores. Durante esse período, eles vivem uma espécie de casamento feliz, se alimentando de peixes do rio e dormindo sob as estrelas. Em Cinzas no Paraíso, o único momento de felicidade do casal formado por Abby e pelo Fazendeiro é quando Bill vai embora, e junto com Linda aqueles vivem um período de total alegria em meio às pradarias. Já em Além da Linha Vermelha, o momento idílico é deslocado para o início do filme, para o trecho em que Witt, junto com outro soldado desertor, vive em meio à uma tribo nativa de uma ilha do Pacífico. O que todas essas cenas têm em comum, no entanto, é que elas acabam: o mundo dos homens, com suas paixões, ganâncias e violência, se intromete ali onde reinava um paraíso, e joga os indivíduos que ali viviam de novo no sofrimento, um processo que inevitavelmente termina em tragédia.

Mas se tudo isso é verdade para os três filmes anteriores, O Novo Mundo, mais recente filme do diretor, representa um passo à frente em sua filosofia. Estilisticamente, ele mantém as mudanças que Além da Linha Vermelha trouxera: mais dramaticidade, a natureza revelada no mar e na selva, e uma certa verborragia, embora aqui ela seja mais concentrada e ao mesmo tempo diversificada, ao apresentar não só pensamentos dos personagens, mas também orações e algumas outras coisas do tipo. Filosoficamente, porém, o filme é uma condensação do discurso geral de Malick e, como já dito, também um prolongamento desse discurso. Pois, se muitos duvidaram que algo de bom poderia sair de mais um filme sobre a lenda de Pocahontas, princesa indígena americana que se apaixona pelo capitão inglês John Smith, a grande maioria se surpreendeu com a força e a ousadia do filme. E tudo por um motivo muito simples: ao invés de focar o drama do romance “impossível” entre os dois, Malick o insere como parte de algo muito maior: o drama do ser humano que é separado da natureza e paulatinamente deformado de sua forma original para transformar-se em algo que nunca fora ou poderia ser realmente. Pocahontas (cujo nome nem é citado no filme) é uma jovem índia, filha preferida do chefe da tribo, uma garota alegre, saltitante, inteligente, amorosa, adorada por todos. E mais importante: toda a sua alegria advém, ou melhor, se integra, com a natureza ao seu redor: às arvores, as clareiras e o solo acolhem sua vivacidade, compartilham dela, ajudam a criá-la. É o mais perfeito retrato da união entre o indivíduo e o ambiente.

No entanto, quando Smith chega e atrai repentinamente o olhar da moça, sua vida começa lentamente a mudar. Ainda há espaço para o idílio, claro: também aqui há um trecho específico de comunhão com a natureza. Smith é capturado pelos índios e Pocahontas impede que ele seja morto. Depois disso, vivendo como prisioneiro, Smith passa um período de felicidade, sempre brincando com as crianças e dançando com outros índios, além de, claro, fazer companhia a Pocahontas. Esse trecho incomoda um pouco, pois parece tentar pintar os índios como uma sociedade perfeita, pacífica, alegre, mas logo essa impressão é desfeita ao percebermos que também os índios são violentos e têm seus problemas: o paraíso de Malick é a comunhão com a natureza, a vida em uníssono, e não um tipo de organização social específico. Após o período de idílio acima mencionado, é consentido a Smith voltar para o assentamento de seus compatriotas, e por algum tempo os ingleses recebem ajuda dos índios, sempre liderados por Pocahontas. Mas esse equilíbrio dura pouco, os dois grupos entram em guerra, espocam traições e loucura, e Pocahontas acaba sendo exilada de sua tribo, e depois vendida aos ingleses para ser mantida como refém. Smith, porém, não concordando com isso, é mandado de volta para a Inglaterra, com o objetivo de comandar uma nova missão, e manda dizer à índia que morreu na viagem.

É aí o fundo do poço de Pocahontas: separada para sempre de seu amor, separada para sempre de sua tribo, ela recebe roupas inglesas, uma casa inglesa, uma criada inglesa, e é transformada em uma inglesa. Mas o aspecto de seu rosto não permite enganar ninguém sobre a solidão e a tristeza que tomaram conta de sua alma. Mesmo quando John Rolfe, um outro inglês, dessa vez mais generoso, mais amável, se envolve com ela, e juntos têm um filho, e se casam, a princesa não consegue superar a melancolia: pensa que o que a faz triste é não ter mais o amor de Smith, é ter sido separada dele pela morte. O casal vai para a Inglaterra, conhecer a rainha, e assim Pocahontas se separa ainda mais de sua terra. O inesperado acontece, porém, e ela descobre que John Smith está vivo. O homem vai visitá-la e os dois ficam alguns momentos juntos, mas Pocahontas percebe que não existe mais amor, não para ele. Depois, abraça forte o marido, que tanto evitara, e brinca com o filho entre os arbustos podados e simetricamente organizados no jardim humanamente engendrado da mansão. O filme termina com uma curta narração de Rolfe, escrevendo em uma carta para que o filho no futuro leia, dizendo que a mãe morreu antes que pudessem voltar para América, mas morreu em paz, feliz.

Daí delineamos a trajetória da princesa índia, e o passo a frente que Malick deu. De uma garota perfeitamente integrada à natureza, Pocahontas torna-se, pelo amor e pela tragédia, presa em um mundo que não é o seu. Antes, talvez Malick terminasse o filme aí. Dessa vez, porém, ele leva a história além. A melancolia que a moça sente não é pelo amor perdido de Smith, mas pelo sentimento perdido de união à natureza. Quando ela o encontra novamente, retornado dos mortos, percebe isso, e então pode retirar aquela falsa angústia de sua alma. Então, mesmo na Inglaterra, mesmo em meio a uma natureza artificial manipulada pelos humanos, mesmo presa em uma roupa das mulheres da ilha, ela pula, corre e dá cambalhotas, como fazia quando estava em sua terra natal, antes de perder a inocência. Ela ama, dessa vez sem freios, seu filho e seu marido, com a plenitude de alguém feliz. É verdade: antes ela gargalhava, e agora, no fim, somente sorri – a diferença é grande. Mas é somente isso que nos resta, diz Malick: a inocência, a perfeita comunhão com a natureza, já foi perdida, e agora só podemos tentar encontrar um estado de ser que se aproxime do primordial. E para isso, devemos procurar em nós mesmos, encontrar o que nos aproxime, mesmo presos em caixões de concreto e aço, do Paraíso original que por nossa falibilidade perdemos para que não mais fosse encontrado.
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