segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Blade Runner

Excepcionalmente, vou postar algumas críticas de filmes às segundas também, por algum tempo. É que ultimamente tenho visto muuitos filmes (o que é ótimo), então preciso, hmm, desafogar o arquivo.
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A ficção científica é um gênero de observação da sociedade por excelência. Embora possa haver (e há, na maioria dos casos) histórias individuais, muitas vezes o que se sobressai é a caricatura feita da sociedade e projetada num futuro qualquer. Muitas vezes, o mais divertido de um filme deste gênero é achar em que pontos ele acertou e em que pontos errou, e fazer a partir daí reflexões sobre o estado das coisas.

Contudo, há alguns filmes que, a despeito de também terem em si um grande peso da caricatura da civilização, empreendem profundas viagens psicológicas e filosóficas para tentar entender o homem. Um desses casos é Blade Runner, a obra-prima absoluta do diretor Ridley Scott. O filme está, sem dúvida, entre as maiores ficções científicas de todos os tempos, e entre os primeiros colocados. Poucos foram tão completos e diversos quanto Blade Runner.

A primeira questão é a da ambientação: na Los Angeles de 2019, Scott nos mostra sua visão da terra nesse período, visão pioneira que influenciou toda a produção posterior. Se em Star Wars a visão clean que predominava nos filmes de ficção científica já fora quebrada para dar um pouco de verossimilhança ao conjunto, em Blade Runner ela foi totalmente destroçada. A Terra se tornou um lugar absolutamente poluído, onde o sol aparece fraco e o lixo cobre as ruas. A globalização espalhou povos e línguas pelo mundo, então lá vivem chineses (muuuitos chineses), russos, árabes, negros: de modo geral, toda a classe de “imigrantes” notória dos EUA, visto que a classe dominante se mudou para as colônias espaciais. Os poucos ricos que restaram vivem em coberturas luxuosas, enquanto todo o resto permanece em prédios abandonados e na sarjeta.

Outra questão é a do estilo: Scott fez um típico filme noir, com a fotografia cheia de sombras, fumaça e ventiladores girando lentamente, femmes fatales, personagens ambíguos ao extremo (mocinho quase bandido, bandido quase mocinho) e casos policiais para resolver. Ou melhor, quase típico: o fato de se passar no futuro e ser em cores ajuda a dar uma nova visão para o gênero já (à época) clássico.

Encaminhando-nos para a questão temática, o que aparece em primeiro lugar é a discussão da ética científica. Os replicantes, figuras centrais do filme, são robôs orgânicos, seres vivos engendrados geneticamente com o único objetivo de trabalharem como escravos nas mais diversas funções. Porém, para que com o passar do tempo eles não desenvolvessem simulacros de emoções, criou-se uma vida útil para eles: depois de quatro anos, eles morrem, simples assim. Tudo isso é explicado no início do filme, mas no decorrer deste ainda outras informações e fatos serão acrescentados a essa discussão.

Finalmente, temos a questão principal do filme: os questionamentos filosófico-existencialistas. O personagem principal, Deckard (interpretado por Harrison Ford) é um ex -Blade Runner (o tal caçador de andróides do título) que recebe a missão de procurar quatro replicantes amotinados que fugiram de uma colônia de exploração e vieram para a Terra. Esse replicantes, liderados pelo modelo de combate Roy Batty (Rutger Hauer, na atuação da sua vida) querem algo humano, demasiadamente humano para robôs orgânicos como eles: encontrar seu criador (o cientista responsável pelo desenvolvimento dos cérebros replicantes e pela empresa que os... hmmm, qual o termo, fabrica?) e pedir a ele que afaste a Morte, que lhes conceda mais tempo de vida.

Esse ato, porém, acaba somente por apressar o fim. Dois logo são encontrados e mortos por Deckard, deixando o casal restante sozinho. Enquanto isso, o detetive encontra-se com o dono da corporação dos replicantes, o qual pede a ele que submeta sua secretária, Rachel, ao teste usado para definir de alguém é ou não replicante. Deckard descobre que sim, e conta isso a ela, o que desencadeia uma espécie de depressão na mulher que até então acreditava ser... humana.

Mas não seria mesmo ela humana? Para tornar os replicantes “mais humanos que o ser humano”, como diz o lema da corporação, o cientista-chefe, Tyrell, fez implantes de memória em alguns deles, e Rachel, que recebeu memórias da sobrinha do cientista, é a cobaia dessa experiência. Ela foge para a casa de Deckard, senta-se ao piano, começa a tocar, então pára, e diz: “Eu não sei se posso tocar piano ou não. Não sei se as lembranças que tenho das aulas de piano são minhas ou da sobrinha de Tyrell.”

Após algum tempo, Roy consegue chegar até seu criador. Este, porém, diz que nada pode fazer por ele. Mas também, pudera: Roy é mais forte, mais rápido, mais inteligente que seu próprio criador. Ele é quase perfeito (posto que mortal), enquanto seu criador é somente um velho usando óculos fundo de garrafa. Não lhe restam alternativas. Desiludido, Roy dá em Tyrell o beijo da morte, e esmaga seu crânio com as mãos. É a ira, o descontrole, o banho de sangue e paixão desenfreada que antecede uma percepção mais profunda das coisas.

Quando ele chega em seu esconderijo, vê que a outra replicante, sua querida, amada Pris, já foi morta por Deckard. Roy, então, beija os lábios mortos de sua amada, passa o sangue dela em seus lábios, e torna-se um guerreiro lobo, uma espécie de berserker moderno. Assim dá-se mais um estágio de sua evolução: sentiu uma profunda dor na “alma”, ou naquilo de misterioso que havia dentro dele, e regrediu (ou seria evoluiu?) a um estado de selvageria, mas que é mais humano que sua antiga frieza replicante. Enquanto persegue Deckard por um prédio decadente, seu próprio corpo começa a falhar, e então ele experimenta uma nova dor: a dor física profunda, ao enfiar um prego na palma da mão.

A perseguição continua, mas Deckard não desiste. Mesmo com os dedos quebrados, não desiste de escapar, de manter sua vida, mesmo tendo que se agarrar em uma viga de metal a muitos metros do chão. Aí, então, Roy percebe. Sob a chuva negra, o céu escuro e o fedor da poluição, ele percebe o quanto a vida é valorosa. Toma uma pomba nas mãos, ajuda Deckard a subir e se salvar, e senta-se no chão, sorrindo suavemente. Agora, a evolução está completa. Roy tornou-se, se não humano, plenamente vivo, pois está prestes a presenciar uma coisa que todos os seres vivos encaram um dia. Com a chuva caindo em seus lábios, pronuncia palavras que se tornaram antológicas, palavras sublimes : “I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhauser gate. All those moments will be lost in time... like tears in rain... Time to die.” E fecha os olhos, e morre, e a pomba escapa de suas mãos, e vai embora.

E resta Deckard, espantando, surpreso, mas vivo. E resta Rachel, perseguida por ter fugido da Corporação Tyrell. Mas ambos, restando juntos, tem mais chance. Assim, fogem, vão embora, mas não se sabe o que é feito deles. Só uma coisas é certa: o tempo deles um dia passou, e o tempo deles um dia chegou, e eles um dia morreram. Não antes, nem depois do que deveriam, mas na hora. E então, somente então, puderam encontrar seu criador.
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Um comentário:

Beatriz disse...

Meu deus mais que texto!

estou chorando, diante a uma critica tão maravilhosamente escrita!!!

Parabeeens!