quinta-feira, 19 de março de 2009

Pílulas Cinematográficas, Edição 14: Especial Trilogia das Cores de Kieslowski

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Nos 200 anos da Revolução francesa, o cineasta polonês Krzysztof Kieslowski resolveu filmar o que os velhos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade representavam no mundo de hoje (ou melhor, de 1990). Bem ao seu estilo, porém, o foco que ele deu nessas três abstrações foi pessoal, humano, e não político ou social. Embora possam se extrair interpretações dessa estirpe de sua obra, o que realmente importa aqui são os seres humanos.

De forma absurdamente criativa, ele ligou cada ideal à sua cor respectiva, e fez filmes permeados pelo Azul, pelo Branco e pelo Vermelho. Mais do que predominarem, essa cores pontuam o mise-en-scène, imprimindo significado e chamado atenção onde aparecem. O trabalho que Kieslowski faz com o ritmo e o estilo de cada filme também é sublime. Se o primeiro filme é mais reflexivo e poético, o segundo é ao mesmo tempo melodramático e cômico, e o terceiro é discursivo e cálido.

Como uma trilogia que se preze, a das Cores, embora não conte exatamente uma história contínua, só faz sentido totalmente ao ser vista por completo. Com as histórias tão humanas e próximas que conta, Kieslowski transmite a Dor e o Sentimento no nosso mundo pós-revolucionário, assim como os aspectos que aqueles velhos ideais têm quando encarados de frente por homens e mulheres solitários, desarmados e vivos. Mas não só: também questiona a presença da Lei, do estado de direito, herança daquela revolução, na vida das pessoas.
Na pílula de cada filme, apresentarei seus aspectos próprios e como eles contribuem para o quadro geral.
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A Liberdade é Azul (Trois Couleurs: Bleu, 1993): A gente precisa se agarrar a algo, diz um flautista de rua para Julie, personagem de Juliette Binoche, em determinado momento de Azul. Tons frios - das ruas no inverno, de um apartamento escuro, da piscina em que nada sempre – circundam Julie. Após perder o marido e a filha em um acidente de carro, ela percebe que perdeu esse algo e começou a afundar. Então, ela inicia sua “expiação”, livrando-se de tudo que a prenda ao passado para poder flutuar novamente. A Liberdade, ela aprende, esse estado místico em que se não está ligado a nada, passa pela dor. A dor é instrumento, causa e aspecto da liberdade. Aos poucos, porém, outras coisas começarão a aderir a ela, e Julie não terá alternativa senão voltar para o chão. Julie, isso fica claro, é como os praticantes de esportes radicais que sua mãe vê pela televisão do asilo: alguém que caminha sobre uma corda bamba, que salta no espaço, livre de quase tudo. Mas, por ser humana, Julie permanece presa, ou, em outra visão, protegida, sustentada por algo, assim como os atletas da TV têm a corda amarrada aos pés e uma rede onde cair. Na medida em que ela reencontra o amor e o calor humano nas pessoas que a cercam, Julie retorna para o seio da terra. Bem longe do céu infinito ou das profundezas azuis e dolorosas do oceano.
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A Igualdade é Branca (Trois Couleurs: Blanc, 1994): Em Branco, a igualdade aparece sob muitas formas, não só nos direitos individuais, mas também no sofrimento. Se Karol, sem falar francês, é confrontado com um sistema legal em que essa língua é o padrão, acaba tendo que fugir da polícia, e passa por maus bocados para voltar à Polônia, sua terra natal, ele fará de tudo para que Dominique, a causa de seu sofrimento, passe pelas mesmas coisas. Olho por olho, dente por dente, Karol e Dominique se fazem iguais, “no amor e na dor”. Embora seja mais físico, cômico e cruel que os outros dois filmes, Branco também é muito bonito, e também delicado. Se aproxima de seus personagens sem meias palavras, sem pisar em ovos, mas também sem julgá-los ou condená-los a algum castigo. Simplesmente os acompanha, e os entende, e os penetra, e acaba por envolvê-los na igualdade suprema do branco absoluto, antes de soltá-los de novo no mundo frio e desigual.
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A Fraternidade é Vermelha (Trois Couleurs: Rouge, 1994): Meu preferido entre os três, é o mais tocante e significativo, o mais, digamos, universal, que imprime novos sentidos aos anteriores e os abraça, enchendo de calor a história dos personagens e talvez de lágrimas os olhos expectadores. De modo irretocável, o tema da fraternidade é exposto e defendido, e finalmente compreendemos por que a Fraternidade vem por último, e o que ela tem a ver com as outras duas coisas. Mas antes, vamos dar uma olhada rápida na questão da Lei que se imiscui na vida pessoal. Como já dito, uma obra-prima como essa Trilogia das Cores permite muitos olhares e interpretações, dentre os quais escolhi o que me pareceu mais significativo. Entretanto, considerando o lado político da Revolução Francesa, não é excesso enxergar em certas passagens de cada filme paralelos com a situação do povo, dos seres humanos, em relação à Lei como se tornou após o evento que a Trilogia relembra. Em Azul, a amante do marido de Julie é advogada, e está grávida dele. Esse é um dos principais acontecimentos que traz Julie dos ares de volta à terra. Em Branco, Karol e Dominique acabam tendo que enfrentar a Lei, simplesmente por não conseguirem resolver seus problemas pessoais nesse âmbito. Ou seja: a Lei é um instrumento imparcial usado pelos dois, pelos indivíduos, para resolver os problemas individuais de que eles, sozinhos, não dão conta. Finalmente, em Vermelho, a lei se torna ainda mais presente e significativa. O homem que “espiona” os vizinhos escutando suas conversas é, afinal, um Juiz aposentado, e tem várias conversas com Valentine a respeito de sua profissão. Em uma dessas conversas, ele diz que, quando ainda trabalhava, não sabia se estava do lado do bem ou do mal, e ao ouvir as conversas alheias, pelo menos, sabia onde estava a verdade. É a figura da Lei que, paradoxalmente, não sabe julgar, e só ao findar-se como Lei (ou seja, o Juiz que deixa de sê-lo) é capaz de discernir a verdade. O sentimento humano em lugar do institucional, a compreensão ao invés do julgamento.

E tudo isso dá lugar ao tem principal do filme, das vidas humanas que correm em paralelo mas fazem mais sentido quando juntas, de como, enfim, duas vidas fazem mais sentido que uma. Nos três filmes, há uma cena em que o protagonista observa uma velhinha tentando com muita dificuldade jogar uma garrafa em um lixo alto. Mas, dos três, somente Valentine a ajuda. Por quê? Oras, claro que os personagens não se reduzem a alegorias, mas se tomarmos o conceito de cada filme, veremos que só o último daria motivo para ajuda. Ajudar a velhinha seria como estar preso a algum “imperativo moral”, o que vai de encontro à Liberdade. De maneira semelhante, seria contrariar a Igualdade ajudá-la, visto que todos devem ter as mesmas condições de jogar a garrafa fora... Assim, somente a Fraternidade é que ajuda as pessoas a jogarem seu lixo fora. Foi a ação dos que insistiam em puxá-la para a terra que impediu Julie de desaparecer no espaço. Foi graças à ajuda de Mikolaj que Karol voltou para a Polônia, e graças à ajuda de Karol que Mikolaj recuperou a vontade de viver. Assim, vemos como a Fraternidade se sobressai, como ela é importante.

Ela não é fácil, com certeza, mas é essencial. Se a vida de Auguste corre em paralelo à de Valentine, isso não significa que elas não chegarão a se encontrar. São duas vidas diferentes, mas igualmente belas e significativas. Se o Juiz ouve as conversas dos vizinhos, é justamente porque deseja ter consciência das vidas que o cercam, porque quer conhecer o ritmo e o caminho daquelas vidas. Perto do fim do filme, Valentine diz ao Juiz “Ao Meu redor coisas importantes acontecem, por isso eu tenho medo”. Essa frase resume magnificamente o sentido da Fraternidade: filme e conceito. Ao redor de cada vida, outras vidas acontecem, e, vidas que são, são tão importantes quanto qualquer outra. No entanto, pelas nossas próprias dores, e pela enormidade das outras vidas, ficamos amedrontados ao pensar nisso, nos bilhões de outros caminhos trilhados diariamente sobre o planeta. Mas essa enormidade não impede as pessoas de ajudarem umas às outras, de se importarem com as outras, de sentirem que as outras vidas lhe dizem respeito. Ao final do filme, com o sublime trecho que o encerra, os traços das vidas que Kieslowski representou convergem, e então sentimos que, mesmo sob a pior das tempestades, a Fraternidade pode salvar-nos do naufrágio.
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4 comentários:

João G. Viana/Pudim disse...

A gente tem que se agarrar a alguma coisa.

Lindo filme. Julie é uma personagem incrível, que passa por todo esse duelo de valores com uma serenidade quase inacreditável e, ao mesmo tempo, óbvia. E o final é espetacular.

João G. Viana/Pudim disse...

Devo adicionar que até estou falando do primeiro filme (por enquanto). xD

João G. Viana/Pudim disse...

[A Igualdade é Branca]
Meu, o nome do cara é Karol Karol! lol

E que final é aquele...
Muito bom também, mas prefiro o primeiro.

João G. Viana/Pudim disse...

Com certeza, A Fraternidade é Vermelha é o mais lindo desses três filmes sublimes. É uma boa dose de esperança no triunfo da Fraternidade, que mesmo assim mostra, principalmente no conjunto com o restante da trilogia, as impossibildades e contradições desse sentimento humano tão imprescindível. Poxa, cara, curti muito! 8ª posição no Top 100 muito merecida!