terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Sonhos

O cinema e o sonho, cedo ou tarde, acabam se encontrando. Os maiores cineastas de todos os tempos foram justamente aqueles que, longe de buscar um hiper-realismo, um naturalismo ou qualquer corrente do gênero (que têm seu valor, claro), souberam caminhar no terreno onírico sobre o qual o cinema se constrói. Buñuel, Fellini, Bergman, Tarkovsky... e Kurosawa, os cinco monstros sagrados do cinema, compartilham essa característica de explorar o misterioso, o insondável, de unir o sublime ao grotesco, o engraçado ao trágico, de fugir do gênero e abraçar a humanidade.

Neste Sonhos, um de seus últimos filmes, Kurosawa literalmente filma pequenas histórias de sonhos. São oito episódios, cada um representando um sonho que o cineasta “teve um dia.” Eles apresentam, porém, uma certa unidade, uma progressão que, pode-se dizer, vai do passado mítico do Japão até seu fim pós-apocalíptico. Essa continuidade de idéias, entretanto, acaba prejudicando um pouco o tom onírico do filme. Vejamos.

O primeiro episódio é também o melhor. Num dia de sol e chuva, um garoto de sai de casa e vai até a floresta, onde presencia o casamento de duas raposas, o que é algo proibido. Assim, sua mãe o impede de entrar em casa quando ele retorna, e ele é obrigado a ir além do arco-íris, onde esses seres moram, para pedir o perdão deles. O desfecho dessa história não é mostrado, reforçando o clima de sonho proposto por Kurosawa, visto que nossos sonhos frequentemente terminam de repente, sem que a “historinha” que neles acompanhamos tenha chegado ao fim.

O segundo episódio continua no Japão antigo: um garoto, ao perseguir uma menina que avistara, acaba chegando até o local onde os pessegueiros de sua família ficavam, antes de serem cortados por seu pai. O garoto, então, vê os espíritos das bonecas de sua irmã, que o repreendem por cortar os pessegueiros. Ao perceberem, contudo, o quanto o garoto amava as flores e as árvores, dão a ele uma última chance de contemplá-las por meio de uma bela dança. Já aqui, temos o prenúncio do tema principal do filme, a defesa da natureza, que será revisto mais a frente.

Os três episódios seguintes destoam um pouco da progressão do filme (antiguidade/natureza até futuro/desolação), mas se encaixam perfeitamente bem no tema geral. O primeiro deles, longo e silencioso, mostra um grupo de alpinistas tentando resistir a uma tempestade de neve e escapar de uma mulher (possivelmente um espírito do mal) que os tenta levar para a morte. O segundo, também climático e sombrio, acompanha um soldado que, voltando da guerra, encontra os fantasmas de um amigo e de outros soldados de seu batalhão. O amigo então, lamenta que não pôde voltar para casa, e o soldado tem de convencê-lo que ele está morto. O terceiro, finalmente, é uma viagem do alterego de Kurosawa (de camiseta, calça e chapeuzinho, que aparecerá em todos os sonhos a partir desse) pelos quadros de Vincent Van Gogh, com a participação especial de Martin Scorsese como o pintor.

Depois desses, voltamos à seqüência negativa do filme, com os dois últimos pesadelos (o primeiro fora o dos soldados). Ambos os pesadelos estão interligados, mas constituem dois sonhos diferentes. No primeiro, usinas nucleares em Tóquio explodem e começam a vazar, o que causa o pânico e o desespero, levando até mesmo um dos cientistas que trabalhavam lá ao suicídio. No segundo, o alterego de Kurosawa caminha por um mundo pós-apocalíptico, onde seres deformados são obrigados a comer a carne uns dos outros e urram de dor durante a noite devido a suas deformações.

Com isso, chegamos ao último episódio do filme. Mas antes, recapitulemos: nos dois primeiros, Kurosawa passeia pelo Japão Antigo e por suas lendas. Os protagonistas, não por acaso, são crianças, que um pouco por ingenuidade desafiam a natureza, mas recebem a chance de se redimir. No terceiro, mais uma vez, a natureza é desafiada, mas dessa vez vencida, pois os alpinistas (adultos) conseguem alcançar o acampamento. O quarto e o quinto, por sua vez, formam um dístico, em que o pior e o melhor do ser humano é mostrado, respectivamente a Guerra e a Arte. No sexto e no sétimo, a “natureza” ataca de volta, mas o que ataca na verdade é o que nós fizemos dela, ou seja: a energia nuclear e as mutações por ela causadas.

No oitavo, finalmente, há o discurso que unifica tudo isso, e justamente por esse motivo enfraquece a proposta do filme. Isso porque os sonhos não têm ideologia, não têm discurso. Eles são painéis de imagens que podem até passar uma idéia, mas nunca por meio do discurso. Nesse episódio, porém, encontramos o alterego de Kurosawa, no presente, chegando até uma aldeia onde se vive como antigamente. Lá, ele encontra um ancião, que fala longamente sobre como seu povo abandonou a tecnologia moderna e optou por uma vida mais simples e limpa, sobre como eles escolheram a saúde espiritual ao invés da conveniência. Pois é: quase vinte anos atrás, Kurosawa já defendia o meio-ambiente e lutava contra a alienação do mais conveniente.

Depois disso, o ancião toma parte no velório de uma mulher muito velha, antiga amante sua, que é na verdade uma festa, visto que ela teve uma vida muito boa, longa e completa. Assim, Kurosawa mostra também como a vida é valiosa, e deve ser festejada, tanto no começo como no fim.

De modo geral, pois, Sonhos é um bom filme. Tem esse pequeno desvio entre a proposta e a execução, mas também possui diversos momentos extremamente belos e poéticos, além de outros perturbadores e que dão um pouco de medo. Ora, sendo um gênio, Kurosawa não tinha nada menos a oferecer. Nos convidou a sonhar, e, agora que já acordamos, deixa ali bem fixo na nossa cabeça que o que foi dito nos sonhos pode ser muito valioso para os períodos de vigília.
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Um comentário:

Sib disse...

assisti a este filme recentemente
adorei o sonho do pomar, achei extremamente poético
:)