terça-feira, 7 de abril de 2009

Além da Linha Vermelha

Quando, vinte anos após ter-nos entregue seu último filme, a obra-prima Cinzas no Paraíso, Terrence Malick anunciou que voltaria a filmar, a comoção foi geral. Logo, dezenas de astros anunciaram interesse em participar do filme, atores como Robert De Niro, Kevin Costner, Tom Cruise e Brad Pitt. No entanto, se estes não estão em Além da Linha Vermelha, o elenco não deixa de ser estelar, talvez um dos mais estrelados elencos já vistos no cinema: estão no filme (alguns em participações descartáveis, vá lá, uma ceninha só) Sean Penn, Adrien Brody, Jim Caviezel, George Clooney, John Cusack, Jared Leto, Woody Harrelson, Nick Nolte e John Travolta, e, além deles, ainda gravaram cenas que não entraram na edição final Billy Bob Thornton, Martin Sheen, Gary Oldman, Bill Pullman, Viggo Mortensen e Mickey Rourke!

Essa profusão de atores é um indício de que ao menos uma coisa mudou nesse filme pós-exílio: ao contrário de Terra de Ninguém e Cinzas no Paraíso, Além da Linha Vermelha gira ao redor de muitos personagens. De fato, o número de “narradores” do filme, ou, mais especificamente, de personagens cujos pensamentos transbordam suas mentes e atingem nossos ouvidos, é oito; oito homens cujas mentes se nos dão à vista. Outra mudança significativa, decorrente em parte dessa abundância de personagens é o fato de o filme durar pouco mais de três horas, contrariando a “concisão” dos outros filmes de Malick. Isso se deve sobretudo, ao fato de o filme ser a adaptação de um romance, gênero que raramente dá à luz obras curtas.

Mas enfim, com tantos personagens e sendo adaptado de um romance, o que realmente mudou em Malick após vinte anos de ausência nas telas? O estilo calmo e contemplativo permanece o mesmo, mas a aplicação desse estilo é que mudou. Se nos dois filmes anteriores o diretor se havia interessado por pradarias e pelo céu, tanto nesse como em seu próximo filme o ambiente é o da selva e o do mar. A água e o verde, portanto, assumem grande importância tanto visual quanto conceitualmente. Além disso, os filmes se tornam mais verborrágicos, dão uma vazão mais direta aos pensamentos dos personagens e da filosofia de Malick (ou antes, do filme em si), ainda que esta continue se apoiando nos acontecimentos e na imagem para expressar-se. Por isso, Malick se torna também menos seco, e dá mais espaço ao drama dos seres humanos.

Chegamos então ao cerne de Além da Linha Vermelha: o drama e os pensamentos dos soldados americanos que lutaram na batalha de Guadalcanal, ilha japonesa, no final da Segunda Guerra. Ao invés de centrar o drama em um combatente, como é comum nesse tipo de filme, Malick o pulveriza em uma vasta gama de personagens em pequenas situações. Ainda que haja o que se pode chamar de um protagonista (que dá unidade ao filme), as “narrações” são feitas por oito personagens, como já dito, os únicos flashbacks do filme são de um outro soldado, e há diversos momentos em que a ação é totalmente centrada no que fazem e pensam vários outros combatentes. Esse artifício serve para Malick imprimir humanidade a vários personagens, tornando-os assim mais próximos do espectador e levando-o por conseguinte a sentir mais de perto a morte de cada um. Além disso, a diversificação e fragmentação da narrativa contribuem para que o retrato da guerra seja realista e aprofundado, não se limitando ao heroísmo ou à loucura de um único soldado, mas expressando o valor de cada vida perdida.

Individualmente, cada soldado tenta sobreviver, se encontrar, manter junto a si as reminiscências da vida antes da guerra. Em conjunto, eles são uma massa cheia de defeitos que se auto-sacrifica para conquistar um objetivo que não é o deles. Para Witt, o primeiro narrador e aquele que pode ser considerado protagonista, o mais incompreensível é o que leva a natureza a voltar-se contra si mesma. Se os outros personagens lutam com seus dilemas e sofrimentos individuais – o soldado que se lembra da esposa, o major que quer ser promovido, etc. -, Witt é mais passivo, na medida em que encara o que acontece à sua volta de forma calma, contemplativa, o que pode transformá-lo numa espécie de alterego do diretor. Witt é o homem que abandona o pelotão sem permissão para viver no meio de uma tribo nativa, mas também é o soldado que se voluntaria para uma missão perigosa, potencialmente mortal. Não se trata, porém, de alguma espécie de heroísmo ou coragem: trata-se de entregar a própria vida para não entregar uma outra, de encarar estoicamente o impulso destrutivo do ser humano e, desolado, perceber que a simplicidade e o natural se perdem no meio da barbárie. Trata-se de, percebendo o horror e o inatural da guerra, querer cessar de presenciá-la, nem que para isso seja preciso cessar com a própria vida.

Após vinte anos, Malick entregou um filme um pouco diferente do que se esperava, um filme talvez até um pouco decepcionante. Mas, sem dúvida, um filme muito significativo e que, sutilmente, oferece muito o que pensar.
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