quarta-feira, 8 de abril de 2009

A Roda #17 - Panorama do Vale de Legium, parte 7


por Lobato Légio

Ao fim do grande mar, onde o azul impassível encontra em brancura e espuma as falésias da costa oeste do Império, ali, descendo das rochas, após o platô que avança em direção às águas, desafiando a calma inescrutável do sem-fim-à-vista, ali começa a grande planície, que de seu início segue até o fim, contida por seus limites, que a cercam. Um viajante que porventura ponha os pés na terra das pradarias encontrará a cada passo o rastro das lendas que a habitam, o murmurinho das bocas que se multiplica a cada forasteiro, indagando se ele seria de fora da Planície ou de uma região mais distante dela, desde sempre e até o fim desconhecida às línguas indagadoras.

De todos os mistérios, porém, de todas as historias, de todas as fábulas, de todos os boatos sobre ladrões; exércitos de animais ou de mortos; caravanas sinuosas e intermináveis com centenas de milhares de pessoas, verdadeiras cidades ambulantes; feras multicoloridas e mortais, capazes de matar com seu veneno ou seus chifres; ou ainda as tribos de homens voadores que fazem seus ninhos em esparsas árvores nunca vistas; de todas as palavras, enfim, que percorrem as bocas e ouvidos dos que põe os pés na Planície, as mais inescapáveis, sem dúvida, são as que versam sobre uma grande pedra e sua caverna interior, e sobre o Som que lá habita.

No meio da Planície, ponto exato entre as linhas que a cruzam por sua maior extensão de Norte a Sul e Oeste a Oriente, há uma grande Pedra. Junto dela, encontram-se dois homens, um jovem e um mais velho, um sentado e outro em pé, um coberto dos pés à cabeça e o outro também, a não ser pelo fato de, nesse exato instante, ter tirado seu capuz e revelado o rosto imberbe para a sombra lançada sobre ele pela Pedra. O velho fala.

“Isso, Amaron, sente-se, você precisa descansar, ainda é muito jovem para ficar em pé recebendo o sol. Sua pele pura não está acostumada com a inclemência do olho-que-nos-frita.”

“Pare com isso, Nanutchk, sabes muito bem que só vou descansar um pouco porque machuquei o tornozelo ontem.”, respondeu o jovem.

“Pois bem, aceito isso. Ainda assim, o que eu disse continua sendo verdadeiro.”

“Que seja, Nanutchk, mas venha: conte-me uma história. Conte-me uma daquelas que só você conhece, uma das boas!”

O velho pensou por um minuto.

“Veja só, conheço uma muito valorosa. Não sei se reparaste, Amaron, mas estás sentado à sombra da Pedra do Meio, a grande rocha que se ergue no meio da Planície.”

“Ora...”, Amaron ergueu-se sem se levantar e virou para a Pedra, a fim de contemplá-la. “É essa mesmo? Não me parece ter nada de especial.”

“Nada de especial? Pois então escute. Essa pedra tem algo de muito misterioso sobre si. Ou deveria dizer sob si, hein? Eh–eh-eh. Sim, sob a Pedra, dizem alguns, há uma caverna. O que haverá nessa caverna, ou de que tamanho será, não há quem saiba. No entanto, eu, em minhas viagens, já ouvi relatos de homens lúcidos que disseram ter ouvido, ao passarem por aqui, um grande ruído ou som estrepitoso. A natureza do som, não me explicaram, mas afirmaram, todos eles em comum, ser algo por assim dizer novo, nunca antes ouvido, um som podemos dizer fresco, e ao mesmo tempo frio, um som que parecia brotar da terra como uma fonte d’água. Após o som, ao encararem a Pedra, percebiam ter-se aberto nela um buraco, um grande buraco negro que como exalava um bafo maligno. Sobre este ponto, alguns divergem. Certos narradores disseram ser o bafo muito acalentador, livre, capaz de libertar a mente por um instante de toda a memória e todo pensamento, transformando-a numa espécie de, como já me disseram, mar ou lagoa calma, em cujas águas não há desatino ou ruga. Prefiro, porém, manter uma certa desconfiança às coisas das profundezas, e encarar esse ar do buraco como algo a se manter distância. Terminavam dizendo, por fim, que ao contemplar o buraco eram tomados de um grande pavor, e não conseguiam sequer se mexer, até que um novo ruído, dessa vez mais familiar, brotasse do movimento das pedras e fechasse o buraco novamente. Por mais que tentassem, nenhum dos que me contaram histórias semelhantes puderam escavar ou encontrar novamente o buraco, e mantiveram consigo somente uma leve lembrança do negrume, do som e do bafo que compunham a caverna oculta. Certo, meu caro Amaron, a Planície está cheia de histórias desse tipo, mas dada a localização da pedra e o volume de histórias semelhantes creio ser razoável supor que...”

As palavras de Nanutchk foram interrompidas por um leve tremor, que arremessou Amaron ao chão e fez o velho desequilibrar-se. Em seguida ao tremor, o entorno foi preenchido, subitamente, pela vibração de um som estranho, pouco natural, que parecia entrar, em estado quase sólido, pelas orelhas dos dois homens, e ali alojar-se, grudando nas grutas de seus órgãos e impedindo que eles ouvissem até mesmo suas vozes gritando. Somente soava, por todos os lados e reentrâncias, o som misterioso, o som indescritível, preenchendo e tolhendo os sentidos de Nanutchk e Amaron como a afogá-los na própria sensibilidade.

Então, como viera, o som foi-se, desobstruindo os ouvidos e as mentes dos dois viajantes e permitindo-lhes respirar aliviados. Nanutchk foi o primeiro a reparar, erguendo os olhos, que algo diferente surgira onde antes havia pedra, exatamente no local em que Amaron estivera sentado instantes (ou já teria se passado uma eternidade?) antes. Antes que o velho pudesse dizer qualquer coisa, também Amaron virou-se e encarou o buraco que surgira na Pedra. O bafo atingiu-lhe logo o rosto, e o jovem deu um passo para trás. Do buraco emergia um vento, uma corrente ao mesmo tempo suave e constante de ar que lentamente envolvia os dois homens. Nanutchk sentia-se como se uma cobra estivesse enrodilhando-se em seu corpo, enquanto a Amaron parecia que a corente o levantava do chão, deixando seu corpo suspenso no ar. Ficaram imóveis durante segundo preciosos. Nenhum dos dois queria arriscar um movimento. Amaron percebia, porém, que diferente do que ocorria nas histórias que Nanutchk ouvira, ele não estava paralisado. Se Nanutchk permanecia tenso, preso num abraço apertado, ele sentia-se capaz de correr e até voar, estando ali onde estava. Movido por uma força natural, que retrocedeu seu passo-para-trás e o levou a dar um passo à frente, Amaron sentiu um imenso desejo de penetrar no buraco da Pedra e explorar a caverna que além dele se escondia.

Num último momento de indecisão, virou-se para Nanutchk e viu que o velho continuava com os músculos tensionados, presos por uma serpente invisível. Balançando a cabeça, Amaron tornou a olhar para o buraco, e sem emitir palavra adentrou o espaço negro que o aguardava.

Tão logo seu último calcanhar desapareceu nas trevas, o Som voltou mais uma vez, um assovio rápido e baixo, e a terra novamente tremeu, e as rochas levantaram poeira, e o buraco na Pedra voltou a se fechar. Imóvel e sozinho, Nanutchk olhou ao redor, e experimentou dar um passo: seu pé se mexeu. Então, o velho relaxou os ombros, soltou os braços do nó que ele próprio dera, e exaurido de repente de suas energias desabou no chão, virando em seguida o corpo e encarando o céu esbranquiçado. Um vento forte levantou areia, envolvendo-o, e aspirando o pó do solo o velho fechou os olhos e dormiu.
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Um comentário:

João G. Viana/Pudim disse...

Mais uma lenda muito interessante e inspiradora. Um presente do Mestre Légio aos seus - meros mortais - leitores sedentos. Viajei bastante nesse texto, Lobato continua surpreendendo!