quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Leituras: Janeiro de 2009

.
Em janeiro, li dois livros que disputam um posto muito especial, e ainda vago: o de Grande Romance Americano. Ambos já foram colocados nessa posição, mas nunca houve um consenso sobre qual, dentre os dois e dentre outros, obra merece tal título. Ambos, também, cada um à sua maneira, apresentam inovações e dificuldades em sua leitura, embora, como em qualquer livro, elas possam ser superadas com somente boa vontade e dedicação. As semelhanças entre os dois vão um pouco mais longe, ao menos para os exegetas mais obsessivos, mas paremos por aqui. O importante é que, seja pelos mares do mundo caçando um cachalote branco, seja pela Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial, os dois livros, como a Literatura em si, proporcionam viagens inesquecíveis, marcantes, insuperáveis... viagens pela nossa própria alma.

Moby Dick, de Herman Melville

Moby Dick é um romance peculiar. De fato, não é exagero dizer que ele é anacrônico. A metade do século XIX (o livro foi lançado em 1851) não parece adequada para esse livro, não mesmo. Moby Dick é uma obra quase um século à frente de seu tempo, um romance moderno encravado no ápice do romantismo. Certo, a linguagem do livro é romântica o bastante, cheia dos exageros e da imagética típico do estilo. Entretanto, a estrutura e a organização do livro são impressionantemente modernas. Vejamos... O enredo, embora emblemático, é um fiapo: Ismael, o narrador, torna-se amigo do arpoador Quiqueg e embarca no baleeiro Pequod, capitaneado pelo capitão Acab (Ahab no original), cuja perna foi arrancada por Moby Dick, um imenso cachalote branco, e portanto empreende essa viagem para se vingar. Então, o barco vai viajando pelo mundo, encontra vários outros baleeiros, mata algumas baleias, e no final encontra Moby Dick, que com sua fúria o destrói e faz toda a tripulação afundar e morrer, à exceção de Ismael, que escapa do naufrágio e muitos anos depois conta a história da viagem... O livro é uma enorme parábola sobre os impulsos da humanidade, e sobre como a obsessão e os sentimentos de um homem podem sozinhos destruir muitas vidas. Está recheado de metáforas fascinantes, de comentários pertinentes sobre o ser humano, de digressões sobre o significado das coisas. Apropriando-se de um enredo até certo ponto trivial, Melville construiu um Grande Romance, um tratado abrangente da alma humana. E, quanto à forma, ele foi pioneiro. A história em si, como já mostrado, é reduzida, mas ao invés de introduzir enredos paralelos para aumentar o livro, Melville o transformou numa verdadeira enciclopédia sobre as baleias, enchendo-o de digressões a respeito da espécie e da atividade baleeira através dos séculos, entre outras coisas. Apesar do livro ser contado em primeira pessoa, há passagens em que se usa a estrutura de uma peça de teatro, e várias outras em que o pensamento de outros personagens se intromete na narrativa, um verdadeiro fluxo de consciência à moda do século XIX que cria, assim, o novíssimo narrador personagem onisciente. Inovador ao extremo, Melville não foi, é claro, compreendido à sua época. Mas o tempo o colocou em seu devido lugar, o posto de um dos maiores escritores que a América já teve, e um dos grandes entendedores do ser humano.

O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon

Eles adoram dizer que certos livros são ilegíveis. Segundo o lugar-comum oficial, os livros que se encaixam nessa categoria são vários... Ulisses e Finnegans Wake, de James Joyce, Crítica da Razão Pura, de Imannuel Kant, O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon... mas espere aí. Se o livro estiver escrito (ou traduzido) em uma língua que o leitor conhece (ou domina), que motivos haverá para que ele não consiga lê-lo? Pois é. O conto da “ilegibilidade” de certos livros é facilmente espalhado por todos os cantos, e todo mundo acredita. A questão poderia ser então “Por quem essa história é espalhada?” – e a resposta entraria facilmente em várias suposições, digamos por aqueles que lêem esses tais livros, para afirmarem sua suposta superioridade intelectual, ou pela editora rival da que imprime os livros ilegíveis, para que ninguém os compre -, mas isso não vem ao caso, agora. O que vem ao caso, ou, em outras palavras, o que é realmente importante é: não, nenhum livro é ilegível. Afinal de contas, independente de quais idéias revolucionárias ele possa trazer em seu entrecho, ou de quão complexas elas sejam, um livro é só um livro, e um livro, como já afirmado no início desse texto, é para ser lido, desde que ele e o leitor compartilhem o mesmo tipo de linguagem. Assim, ler um livro não é, por si só, um ato que deveria gerar algum tipo de respeito (ouviram, intelectuais superiores?), mas também é algo cuja destinação básica é, isso mesmo, ler, e portanto não seria nada mal se todos comprassem livros e os lessem (ouviram, editoras rivais?).

Posto isso, podemos passar à próxima etapa dessa resenha: livros não são ilegíveis, certo, mas eles podem, sim, apresentar dificuldades. É o caso de O Arco-Íris da Gravidade. Esta obra monumental é única na literatura mundial, só pareada, em certos níveis, por outros dos livros do autor, Thomas Pynchon, um americano recluso de quem se sabe relativamente pouco, e que possui poucas fotos conhecidas, todas da época em que era jovem. O livro, passado no final da Segunda Guerra Mundial, um período de aproximadamente nove meses entre o fim de 44 e o meio de 45, conta múltiplas histórias e tem inúmeros plots, mas sua linha principal, pode-se dizer, acompanha (ou tende a perseguir, ou gira em torno de, ou ziguezagueia com, ou explode pra todo lado em) Tyrone Slothrop (anagrama de Sloth or Entropy – Preguiça ou Entropia), tenente americano em missão em Londres. Slothrop, na infância, foi cobaia dos experimentos pavlovianos de um cientista alemão chamado Laszlo Jamf, e condicionado a sentir tesão (no vulgar: ficar de pau duro) ao sentir o cheiro de um plástico especial chamado Imipolex G. Agora, no final da Guerra, quando Foguetes alemães com o composto sintético em suas coberturas estão caindo sobre Londres, ele sente a presença do plástico antes mesmo dos foguetes serem lançados e fica excitado, terminando por fazer sexo nos locais onde, dias ou semanas depois, um foguete vai cair. Intrigado com isso, um cientista que trabalha para o governo o envia para a Europa destruída, e Slothrop, o maior paranóico do Universo, assim como são paranóicos todos os outros personagens, começará sua busca por algo que ele ainda nem sabe ao certo o que é... Ou seria uma fuga d’Eles, que o perseguem por toda parte? Será que ele faz isso por vontade própria, ou continua sendo manipulado por Eles? Será que ele terminará a jornada do herói como começou, O Louco que passa pelos 21 Arcanos Maiores, pelos dez sephirah e retorna ao estado inicial, será que ele transcenderá, ou será que acabara se desintegrando no caminho? Maluco, complicado? Sim, e tem mais, muito mais... O livro mergulha fundo na paranóia, nos sistemas de controle, na Entropia e na inevitabilidade, na tendência de todas as coisas para a morte e a desintegração, assim como na Contraforça de tudo isso, a morte que surge da vida, o preso que se liberta, o amor que aquece as pessoas no frio mais pesado...

O site RinkWorks, que apresenta diversos trabalhos ligados à literatura, tem um resumo muito divertido e apropriado para o livro: “Uma coisa que grita atravessa o céu. É um foguete V-2 carregando cinco toneladas de simbolismo, e está vindo cair bem na sua pobre e iludida cabeça pós-moderna.” Ora, o romance é considerado um ícone do pós-modernismo, e não por menos: o livro está cheio de referências estruturais e culturais aos quadrinhos e ao cinema, e reúne também em suas páginas passagens relativas à química e a física modernas, ao mundo corporativo e político alemão na primeira metade do século XX, às teorias psicológicas/sociológicas de Pavlov e Skinner, aos acontecimentos da SG (Segunda Guerra), especialmente no final, a Rossini, Beethoven e Webern, e, principalmente, ao Foguete V-2, personagem principal e razão de ser do romance, tudo isso desempenhando um papel importante e constante na história. A prosa de Pynchon é densa, às vezes até demais, o que leva o livro a ser, por vezes, um pouco opressivo. Mas é, ao mesmo tempo, um livro extremamente engraçado, um dos mais engraçados que eu já li, cheio de momentos inacreditáveis e hilários, descrições pormenorizadas de fetiches sexuais bizarros, musiquetas engraçadinhas que irrompem no meio de uma cena séria, concepções estranhas do mundo e dos acontecimentos... um verdadeiro romance enciclopédico, com mais de 400 personagens e inúmeros acontecimentos sucedendo-se à toque de caixa, e também uma obra totalmente insana, cheia de fluxos de consciência, idas e vindas no tempo, transições de fatos, alucinações, sonhos e lembranças sem aviso, plots que começam e não dão em nada, pistas falsas emergindo o tempo todo....

É, em suma, uma obra exigente. Teoricamente, todo livro exige uma postura participativa do leitor. No entanto, na maioria dos livros, essa necessidade não é uma premissa básica para o seu acompanhamento, o que leva o leitor (qualquer leitor) a acompanhar o enredo passivamente. Já em PynchonO Arco-Íris da Gravidade, pelo menos – o envolvimento do leitor – de seu pensamento – é indispensável para acompanhar o que está acontecendo. Não é, repito, nenhuma tarefa impossível: basta boa vontade, e talvez um computador ligado para eventuais consultas, e uma ou outra anotação, se for necessário, e qualquer um poder ler o livro e compreendê-lo, ao menos superficialmente, a contento. Essa é uma leitura imediata, mas pode ser a única desejada para o leitor. Todo grande romance esconde em suas entranhas segredos que exigem muito estudo, pesquisa e dedicação para serem descobertos, e esses livros cheios de mistérios e enigmas, como O Arco-Íris da Gravidade, são especialmente pródigos em estudos e interpretações. Mas, para acessar alguns deles, há diversas teses – acadêmicas ou não – a respeito do livro, basta procurá-las.

Quem deseja ir além da leitura superficial, entender melhor o que aconteceu e procurar significados ocultos nas páginas deste grande livro vai encontrar um material farto, quiçá interminável. O livro, assim como Ulisses, outro grande romance-pedreira do século, está estruturado sobre uma obra clássica, no caso as Elegias do poeta alemão Rainer Maria Rilke. Além dela, também desempenham papel fundamental no livro o Tarô e a Cabala, fontes simbólicas riquíssimas, das quais Pynchon se apropria muito bem. Se quiserem um exemplo de simbolismos e segredos escondidos no livro, tomemos as iniciais de Slothrop, T.S.: porque não dizer que o anti-herói caminha, durante o livro, pela Terra Desolada que é a Europa no final da SG? Analogia perfeitamente possível e significativa, embora, talvez, um tanto quanto fácil para o nível pynchoneano de confusão, mas nada impede que essa seja só uma camada de significado que o nome – o nome! – do protagonista esconde. Da mesma maneira, diversos outros enigmas se apresentam, surgindo sem aviso, indo embora sem deixar rastros, confundindo e ao mesmo tempo fornecendo um certo prazer por sua existência...

Magistral, belíssimo, cômico, trágico, científico, popular, erudito, vulgar, obsceno, violento, mágico e sublime, O Arco-Íris da Gravidade é uma singularidade, um objeto infinitamente pesado que distorce o espaço e atrai tudo para seu interior, sem misericórdia... uma obra-prima da literatura, e o maior livro escrito na segunda metade do século XX, sem dúvida alguma.
.

Um comentário:

Sib disse...

acho que eu já tenho mais uma encomenda a pedir emprestado quando eu voltar (o arco íris da gravidade, lóógico)
adorei sua crítica aos 'livros ilegíveis'; muito muito bem colocada.
seu livro vai bem, ok?
beijo!