terça-feira, 17 de março de 2009

La Jetée

Definir as coisas talvez seja a tarefa filosófica mais complexa que existe. Isso porque uma definição deve abarcar todas as variáveis existentes, sendo não uma regra com exceções, mas um fator comum a todos os elementos que pertençam a um grupo. Por isso, sempre que surge um elemento que ultrapassa os “limites” da definição, a definição deve ser revista, para abarcar esse novo elemento, visto que, como já dito, ela não é uma regra que molda a realidade, mas uma explicação que se molda à realidade.

A arte, tradicionalmente, é um dos meios mais avessos a definições, dada a constante reinvenção de seus modos de expressão. Ainda assim, não é inútil tentar definir os tipos de arte a partir de uma avaliação geral, mesmo que seja necessário reinventar essa definição sempre que um novo objeto artístico leve adiante os limites da arte. Dito isso, pergunta-se: o que é cinema? A motion (um movimento) ou emotion (emoção)? Imagens em movimento ou o movimento das imagens? Teóricos da sétima arte já se bateram por muito tempo com essa questão, e uma das teses mais abrangentes postula que o que define o cinema é sua peculiar manipulação do tempo. Para defender essa idéia, contra os que dizem ser o movimento a característica peculiar do cinema, um dos argumentos mais fortes é o exemplo de La Jetée (O Píer, O Terminal, A Plataforma, de aeroporto mesmo, em francês), curta de 26 minutos e obra das mais importantes do diretor francês Chris Marker.

A rigor, La Jetée (não foi lançado no Brasil, logo não tem tradução oficial do título. Mantenho o original, portanto, que aprecio muito.) é exatamente o que qualquer outro filme é: uma sucessão de fotogramas, ou frames. A diferença é que, se nos filmes em geral esses frames se sucedem vertiginosamente no ritmo de 24 deles por segundo, em La Jetée cada frame permanece vários segundos, até minutos, na tela. É uma sucessão de fotografias belíssimas, e dessa sucessão, em conjunto com a voz do narrador, se extrai uma história. Não se engane: continua havendo alguns efeitos sonoros, movimentos de câmera e closes, mas a imagem permanece estática, sua beleza durando um tempo incomum diante de nossos olhos.

Nos créditos, o filme aparece como um “foto-romance” do diretor, uma definição interessante, mas que não deixa de fazer parte do âmbito cinematográfico. O que Marker fez, então, foi justamente expandir os limites do cinema, acrescentando aos anais algo que antes não existia, não fora pensado, ou ao menos não fora feito. Justamente aí reside o argumento supracitado, a teoria da definição de cinema. La Jetée não deixa de ser uma sucessão (logo, um movimento) de imagens, mas é o lugar que essas imagens ocupam no tempo que importa. É a duração de cada fotograma na nossa retina que diferencia o longa, mas ao mesmo tempo ajuda a entender que isso, essa manipulação do tempo por meio de imagens, ou manipulação de imagens que exprimem uma noção de tempo, é o que faz do cinema o que ele é.

Como se não bastasse, essa questão do tempo é, justamente, o tema do filme. Narrativa de ficção-científica, como apetece a Marker, La Jetée é a história de um homem que, prisioneiro num mundo pós-apocalipse nuclear, é submetido a uma experiência de viagem no tempo, e encontra uma mulher cuja imagem marcou sua infância. O filme está cheio de referências visuais e temáticas, e influenciou muita gente. A primeira aparição das pessoas do futuro remete à capa de um disco dos Beatles, e num dado momento ocorre uma cena semelhante a uma outra de Um Corpo Que Cai, de Hitchcock, que também seria referenciado num outro filme do diretor, o documentário Sans Soleil (Sem Sol). O filme Os 12 Macacos, do diretor Terry Gilliam, é fortemente inspirado pelo enredo de La Jetée. Mas o mais importante aqui é a narrativa e o drama profundo do protagonista, que se confronta e se conforta com a própria memória, com o tempo de sua mente, que se esvai, se transforma, surge e some de repente, descontrolado.

Da sucessão de fotos, Marker faz um filme, mas mais do que isso constrói uma obra de alcance e visão, uma narrativa profunda e triste, uma belíssima meditação sobre o tempo e a memória (sempre eles), um objeto artístico único que, por sua singularidade, beleza e profundidade, merece ser visto, revisto, louvado. E imitado, também, se possível.
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Um comentário:

Fábio Buchecha disse...

Só uma correção: La Jetée foi lançado no Brasil sim. Em 2007, num DVD junto com Sans Solei.

http://www.livrariacultura.com.br/scripts/videos/resenha/resenha.asp?nitem=3204517&sid=98118524811328345173886318&k5=8E979AF&uid=