terça-feira, 3 de junho de 2008

Asas do Desejo

Há filmes que, mais do que exercícios cinematográficos, são obras poéticas, que atingem um diferente patamar de criação artística. Asas do Desejo, uma obra-prima do diretor alemão Wim Wenders, é um desses filmes. Essa verve lírica é embasada pela presença do escritor Peter Handke no filme, escrevendo a maioria dos diálogos e o poema que constitui a linha de condução da história.

Mas, ao invés de diálogos, o certo seria dizer monólogos. Explico: Asas do Desejo é um filme sobre dois anjos, Damiel e Cassiel, (Bruno Ganz e Otto Sander, fantásticos), que “vigiam” a cidade de Berlim. Durante o dia, eles observam as pessoas, lendo seus pensamentos (daí o domínio dos monólogos interiores), e depois comentam as coisas que chamaram sua atenção. Damiel, porém, sente um forte desejo de se tornar humano, para poder sentir e participar ao invés de somente observar e saber. Esse desejo se torna ainda mais forte quando ele conhece Marion, uma trapezista de um circo que está prestes a ir embora da cidade.

Este filme não versa somente sobre o amor de um anjo por uma mortal. Essa imagem é só um símbolo do desejo de Damiel pela vida. Ele diz para Cassiel, no início do filme, que não quer mais saber de “infinito” ou “para sempre”, mas sim de “aqui” e “agora”. Por serem ilimitados, esses anjos vigilantes não têm identidade. Um indivíduo é um ser limitado no tempo e no espaço, são os limites que nos definem. Não os tendo, os anjos são somente conceitos vagos.

E Damiel anseia por essa identidade, ele deseja ardentemente saber como são as cores (numa sacada genial, Wenders fez o mundo dos anjos preto-e-branco e o dos homens colorido), como é sentir frio, o gosto do café, do cigarro. Mesmo tendo um alcance infinito, Damiel e Cassiel se debruçam, em suas vigílias diárias, sobre as pequenas coisas. O homem que olhou por cima dos ombros, a moça que se molhou na chuva... é isso que atrai a atenção desses espíritos elevados. É isso que os faz curiosos, por não possuírem, pois é isso que torna os humanos o que são.

Um dos cenários mais importantes do filme é a biblioteca de Berlim, um lugar excessivamente iluminado, como revela a primeira tomada dentro dela. Ali, os anjos se reúnem, para ouvir os pensamentos das pessoas silenciosas. Eles ouvem, também, o canto glorioso das musas, que brota dos livros e do ar e ilumina as cabeças curvadas. Mas há um homem ali que anda não só com a cabeça, mas com os ombros curvados.

Esse homem é muito velho, e caminha com muito esforço, apoiado em sua bengala. Seus pensamentos são os que mais trazem conotações políticas para o filme de Wenders, com seu passeio na Potzdammer Platz devastada e suas lembranças da guerra. Mas é ele, também, que traz um dos aspectos mais importantes do filme, em paralelo à importância das pequenas coisas: a tarefa do contador de histórias.

Seu nome, como é revelado nos créditos, é Homero. Cassiel comenta, no começo do filme, que viu um velho ler a Odisséia para uma criança fascinada. Seria ele? Provavelmente não. Homero lamenta que hoje as pessoas não se reúnam mais para ouvir o contador de histórias, mas, pelo contrário, se fechem em si mesmas lendo os livros e permaneçam solitárias, sem compartilhar a alegria de ouvir uma boa história. Ele deseja criar, em contraposição a seu homônimo (ou seria o velho o próprio Rapsodo grego?), um épico sobre a Paz, cuja inspiração nunca dura o suficiente para que os poetas a louvem como deveriam.

Homero representa, assim, junto aos pensamentos do taxista sobre as pessoas-estado, uma espécie de agonia da narrativa, que está acontecendo, pois as pessoas se isolam completamente, fazendo morrer a história, ou se matam umas às outras, morrendo assim elas mesmas. Numa frase-pensamento belíssima, exprimida quando ele se larga sobre uma poltrona no meio de um terreno devastado, ele diz que o Cantor Imortal perdeu seus ouvintes mortais e com eles a voz. Sem ter ninguém para quem cantar, seu dom simplesmente se esvaiu.

Dando fecho a várias dessas reflexões, uma outra constante está presente. As crianças são as únicas que conseguem ver os anjos, o que daria base para dizer que o filme prega semelhança entre os pequeninos e os seres celestiais. Porém, eu acredito que os anjos para Wenders são outros. Além de Cassiel e Damiel, os personagens principais do filme são todos artistas com um, digamos, toque angelical. Marion é uma trapezista, que se veste de anjo para suas apresentações. Peter Falk interpreta ele mesmo como o protagonista da série de TV Columbo, um ex-anjo (acho esta uma expressão melhor que anjo caído no contexto do filme) que ajuda Damiel em sua decisão. E temos o próprio Homero, que não é um anjo mas é talvez imortal, ou pelo menos um eco imortal.

E mais: o filme é dedicado a três dos maiores cineastas da história, que Wenders chama de anjos. Ou, em suas próprias palavras: “Dedicado a todos os ex-anjos, em especial Yasujiro [Ozu, cineasta japonês], François [Truffaut, cineasta francês] e Andrej [Tarkowski, cineasta russo].” A arte, assim, toma contornos celestiais, mas ao mesmo tempo, quando coloca os artistas como ex-anjos, é humana, demasiadamente humana, com uma ânsia incontornável de ser humana, conquanto sua origem seja divina.

E o filme termina, enfim, com a consumação do desejo de Damiel e a completude da solidão de Marion. Mas do amor deles nasce algo muito importante, a nova narrativa. Marion diz: “Não existe história maior que a nossa, a de um homem e uma mulher. Será uma história de gigantes. Invisível, contagiosa, uma história de novos ancestrais.” Fascinante não? Já que Wenders nos oferece uma viagem tão sensacional, não há como recusar. Pois então, embarquemos!

Um comentário:

Paulo Cesar disse...

Parabéns. Bela resenha. Vou mandar teu link prá muita gente.
Belo texto.
Sorte!!!
PC