segunda-feira, 16 de junho de 2008

O dia em que o romance morreu

Este post faz parte do Bloom-Blogsday, um evento que busca festejar a obra de James Joyce, especialmente o Ulisses, na blogosfera brasileira. Estando esse ano na quarta edição, o evento consiste em diversas postagens sobre o tema em diversos blogs, com o intuito de divulgar e comemorar neste dia a própria literatura. Para mais informações, visitem o Odisséia Literária, que é o grande vértice do acontecimento.


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Há 104 anos, neste mesmo dia, estava acontecendo algo que mudaria para sempre a história da literatura. Era um acontecimento ínfimo, imperceptível, como uma pedrinha jogada num lago, mas cujas ondas se espalhariam lentamente até que, chegando às margens, já seriam vagas imponentes. Tratava-se do enlace amoroso entre duas pessoas, James Joyce e Nora Barnacle, que ao praticar aquele coito incompleto, não imaginavam que seriam, um século depois, objeto de observação de pessoas como eu e você, meu caro leitor.

Naquele 16 de Junho de 1904, uma quinta-feira, James fez-se homem e Nora, mulher. Alguns anos depois, ele escolheria a data para situar a ação de um dos maiores romances de todos os tempos, o “romance para acabar com os romances”, Ulisses. Passado nesse único dia, o livro gira basicamente em torno de três personagens: Leopold Bloom, que sabe que sua mulher, Molly Bloom, o trairá com o empresário naquele dia, e fica a perambular pela cidade, visitando pubs, restaurantes, o hospital e a biblioteca da cidade, entre outros lugares. Ao fim do dia, ele encontra Stephen Dedalus, que acolhe e ajuda como a um filho.

Nesse percurso, contudo, dezenas, até centenas de personagens se interporão no caminho, e as mais diversas situações serão narradas. A obra tem um lado extremamente popular e obsceno, que levou-a a ser proibida em diversos países, retratando as mais diversas perversões e hábitos íntimos que a literatura dificilmente se propõe a narrar, mas que são tão comuns como respirar: Leopold flatula, defeca (peida... caga...), se masturba, tem sonhos com estátuas de pedra de deusas... enfim, nada que um ser humano normal não faça.

Está aí um dos aspectos mais importantes da obra: ser uma extraordinária comédia humana, que reinaugura o realismo. O crítico Edmund Wilson disse que Ulisses é “talvez a mais fiel radiografia já feita da consciência humana”. De fato, todos os personagens que passam pelas páginas (muitos saídos da vida real de Dublin) são palpáveis, encorpados, eles nos dão a impressão de existir. Outra faceta extremamente humana é o estilo de narração pontuado por monólogos interiores, cheio de impressões, desde as completamente instintivas e emocionais até as mais racionais e criteriosas.

Por outro lado, a obra tem um aspecto completamente erudito e mitológico. Sendo uma grande paródia, o livro condensa uma quantidade imensa de referências e nos permite inúmeras associações. Como foi revelado por Wilson em seu ensaio sobre o romance, Ulisses leva esse nome por ser estruturado em cima da Odisséia, de Homero. Na infância, Joyce escreveu um ensaio intitulado “Meu Herói Preferido”, sobre o Ulisses da Odisséia. Depois, com o pensamento amadurecido, diria que ele é o mais completo herói clássico, por ser “filho de Laerte, pai de Telêmaco, marido de Penélope, amante de Calipso, companheiro de armas dos guerreiros em Tróia e rei de Ítaca.”

Assim, os dezoito capítulos do livro têm uma correspondência em algum episódio da Odisséia, e associados a si uma cor, arte ou ciência e órgão do corpo humano. Mas esse é somente um dos níveis de paródia. O primeiro capítulo, por exemplo, também parodia o Hamlet de Shakespeare. Cada capítulo, por sinal, é uma obra-prima em si. Escritos cada um em um estilo diferente, mimetizam a história da língua inglesa e da própria cultura ocidental. Esse estilo caleidoscópico de referências influenciou grandemente o modernismo do século XX e uma gama imensa de autores deve suas obras a Joyce.

A recepção inicial à obra não foi das melhores, mas esse é mesmo o destino das grandes coisas. Os leitores em geral não estavam preparados para tamanha sinceridade obscena, para tamanho volume de referências e para o estilo de narração de Joyce. Os monólogos interiores, que constituem o elemento principal de narração da obra, foram recebidos com estranhamento, e ninguém entendeu nada. Entretanto, a partir do ensaio de Wilson e da defesa do livro por alguns apaixonados, ela acabou conquistando todos os que se aventuravam a enfrentá-la. Pois, se Ulisses não é uma leitura difícil, é uma leitura exigente, que pede do leitor que mergulhe e se abandone em suas páginas. Embora se referisse mais ao Finnegans Wake, vale aqui também a máxima de Joyce segundo a qual seu leitor ideal teria uma insônia ideal.

No Brasil, o livro ganhou já duas traduções publicadas. A primeira, de Antônio Houaiss, não li ainda, mas diz-se que tornou ainda mais hermético o texto de Joyce, tornando-o por demais sisudo e matando seu lado bufão. A segunda, de Bernardina da Silveira Pinheiro, é mais coloquial e se aproxima do tom de Joyce, mas peca na tradução de alguns jogos de palavras e trocadilhos. Há uma terceira, em vias de ser publicada, de Caetano Waldrigues Galindo, que aparentemente mantém o tom jocoso da obra e também seu aspecto de riqueza lexical e lingüística.

De qualquer modo, vale sempre buscar a leitura no original, pois Joyce foi um gênio de envergadura inigualável, e não há nada como ouvir suas próprias palavras. Ulisses, quando foi lançado, em 1922, pode sim ter acabado com o romance. Ao levar a literatura aos últimos limites, eliminando inclusive a figura do narrador nos dois últimos capítulos de Ulisses, e posteriormente construindo algo ainda indecifrável no Finnegans Wake, Joyce de fato matou o romance. Mas ele imediatamente ressuscitou. Mais do que cometer um crime, esse gênio expandiu os limites do que conhecemos como literatura, e permitiu que ainda por alguns séculos busquemos as próximas margens, até que venha um novo gênio para alargá-las novamente. Nesse Bloomsday, comemoramos a vinda ao mundo desse “Livro Azul inutilmente ilegível ". Ora, nada melhor para festejar um livro do que lê-lo. Vamos então dizer sim à verdade da vida humana e da arte e, quando te perguntarem se você quer ler o Ulisses, responder “yes i will Yes”.

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