quinta-feira, 4 de setembro de 2008

A Doce Vida

Que A Doce Vida é um filme de transição na carreira de Federico Fellini, onde ele sai do neo-realismo que seguira até então e abraça o simbolismo, já é notório. Menos notório, porém, é que essa transição, bem longe de ser simplesmente uma nota biográfica, um fato histórico, acontece diante de nossos olhos, à medida que o filme se desenrola. Quando se torna impossível mostrar a vida real de maneira nua e crua, Fellini se entrega à linguagem dos sonhos e começa sua jornada pelo caminho que o tornaria célebre.

A “Doce Vida” que dá título ao filme é, grosso modo, o lifestyle dos ricos e famosos italianos que freqüentam a Via Veneto para se divertirem, se embebedarem e depois, se possível for, terminar a noite em algum tipo de exaltação luxuriosa à vida. Acompanhando tudo isso, está Marcello Rubini (Marcello Mastroianni), jornalista da imprensa marrom e galã que passa os dias e as noites a bisbilhotar a vida da alta-sociedade para fazer a notícia do dia seguinte.

Uma das características mais marcantes do filme é o fato de ele ser episódico. De modo geral, os episódios são quatro, mas pode-se aprofundar a análise até alcançar o número mágico de sete episódios, mais um prólogo, um epílogo, e uma cena “enxerida” que, entretanto, tem imensa importância para o filme. A transição entre os episódios é súbita, porém. Sempre parece que algo foi deixado para trás, que a história que se desenrolava até então não foi completa, num fascinante reflexo estilístico da própria vida de Marcello: abrupta, circunstancial, incompleta.

O primeiro episódio nos apresenta o jornalista: um homem elegante, que está sempre rondando os bares e restaurantes chiques, subornando os funcionários para saber dos detalhes mais pueris da vida daqueles que freqüentam estes locais. Em um desses restaurantes, ele encontra Madalena, uma antiga conhecida com quem, percebe-se logo, tem uma espécie de caso. Os dois andam de carro pela cidade, e acabam encontrando uma prostituta, que sem motivo aparente é levada pelos dois até sua casa, onde têm (Marcello e Madalena, fique claro) uma noite de amor. Entranhado nesses acontecimentos, percebemos uma possível justificativa para o comportamento de Madalena (Marcello, é claro, só a estava acompanhando): seu pai é um homem severo, que a persegue, a oprime. Além disso, ela encara a vida com o famoso ar blasé daqueles que não tem nada a perder, mas já experimentaram de tudo. Fazer amor no apartamento inundado, sujo e vazio de uma prostituta no subúrbio, por que não?

Antes que comece o segundo episódio, Marcello chega em casa e encontra a namorada, Emma, caída no chão, apoiando-se débil contra a parede. Tomara muitos remédios, desconsolada com o abandono dele, passando a noite fora com outras mulheres. Ele a leva até o hospital, mas faz de tudo para manter a discrição, e evitar que a notícia de uma mulher quase envenenada saia da sala onde ela foi tratada.

Logo, porém, quase que por mágica, somos jogados no aeroporto, onde a estrela de cinema Sylvia acaba de chegar, e é recebida por uma multidão de fotógrafos, jornalistas, e até mesmo seus produtores, que levam até ela uma pizza, para dar-lhe boas vindas. A rotina de estrela segue: entrevista coletiva no quarto de hotel, visita a um ponto turístico do país visitado (no caso, o Vaticano)... enquanto isso, Marcello começa a aproximar-se dela, a fascinar-se por sua imagem. Essa fascinação irá culminar em uma pequena festa particular num bar em estilo romano, onde eles dançarão, e Marcello declarará seu amor por ela, mas em vão, visto que a pobre coitada não entende italiano. Uma briga com seu namorado, um outro ator célebre, fará Sylvia fugir dali, e Marcello logo irá em seu encalço. Juntos, rodarão a cidade durante a noite, mas as tentativas de aproximação de Marcello não surtirão nenhum efeito, até que, já com o dia a raiar, Sylvia entrará na Fontana di Trevi para se banhar, de roupa e tudo, na cena que se tornou a mais famosa do filme, e uma das mais lembradas em toda a história do cinema. Ali, finalmente Marcello conseguirá algo dela, um beijo, um abraço, o que seja. Mas, ao levá-la para casa, encontrará o namorado ator bêbado e furioso, e acabará levando um soco dele.

E então, num piscar de olhos, já estamos em outro episódio, o terceiro, e Sylvia sumiu da vida de Marcello, e das nossas. Momentos mais calmos nos esperam: Marcello encontra um conhecido, Steiner, que viu pouquíssimas vezes. Na conversa dos dois, descobrimos que o jornalista tem o intuito de escrever um livro, algo sério, e sair da vida de fofocas e escândalos da imprensa marrom. Steiner, simpaticíssimo, apóia Marcello com algumas idéias, e o convida para uma festa. Junto com Emma, ele chega na casa do amigo, onde encontra outras pessoas, também simpaticíssimas, e inteligentes, e viajadas, além dos lindinhos e fofinhos filhos de Steiner, crianças de não mais que cinco anos, um menino e uma menina. É um cenário de idílio. Steiner, porém, não se sente tão em paz. Ele comenta com Marcello sua angústia: “Não seja como eu. A salvação não está dentro de quatro paredes. Sou muito sério para ser um amador e muito amador para ser um profissional. Até a vida mais miserável é melhor que uma existência lacrada em uma sociedade organizada onde tudo é calculado e perfeito.” Marcello não entende totalmente as conseqüências disso naquele momento, mas o futuro revelará a tragédia escondida nessas palavras.

Surge então um episódio curto, um pouco misterioso, e talvez até deslocado. Duas crianças afirmam, num pequeno lugar fora de Roma, terem visto a Virgem Maria. Marcello, assim como toda a imprensa, corre para lá. E não estão sozinhos. Toda uma estrutura é montada no local onde supostamente ocorreu o avistamento, com luzes, andaimes e policiais. Uma multidão de pessoas quer ver as crianças, e pedir graças para a Virgem. Quando, no começo da noite, elas finalmente são liberadas (pelas autoridades), podemos, vendo de fora, perceber seu nervosismo, mas a falsidade da visão delas é somente sugerida. Começa a chover, as crianças vão embora, e a multidão se dispersa, não sem antes, porém, destroçarem a árvore onde a Virgem fora supostamente avistada, e levar cada um um pedaço para suas casas.

O quinto episódio traz um novo e interessante personagem: o pai de Marcello. Mais tarde, ficamos sabendo que Marcello quase não o conhece, pois ele fora caixeiro viajante quando o jornalista era criança. Logo de início, porém, podemos identificá-lo como alguém alegre, fanfarrão, que deseja aproveitar ao máximo sua última noite em Roma, antes de voltar para casa. Vão a um bar/cabaré, onde encontram uma dançarina, velha conhecida do jornalista, que logo cai de amores pelo pai. O velho, empolgado, pede para irem dar uma volta, e depois levar a mulher, e outras amigas, para casa (a delas). O pai vai em um carro com a dançarina, enquanto Marcello e um amigo fotógrafo, Paparazzo (sim, desse filme veio o termo usado para designar os fotógrafos xeretas), vão em outro. Quando chegam no prédio da primeira porém, a encontram na rua, dizendo que o pai de Marcello passara mal, e este logo sobe para encontrá-lo.

Neste momento, a câmera toma certa distância, enquanto acompanha Marcello se aproximando lentamente do pai, que está sentado, abatido, à janela. Marcello tenta descobrir o que o houve, mas o pai é monossilábico. Só o que fala é que quer ir embora logo, pegar o próximo trem e voltar para casa e para a mulher. Marcello tenta fazê-lo esperar, ir até um médico, mas o velho está irredutível: quer ir embora, e logo. Levanta-se, mas antes de sair, vai até a cama, ainda há pouco desarrumada, e ajeita os lençóis. Aí se revela uma pista para o que aconteceu: talvez o pai tenha querido ir além dos beijinhos com a dançarina, mas percebeu que já estava velho demais, fraco demais. Por isso, deseja ir embora, abandonar a cidade, deixar para trás esse lugar incômodo que o lembra a todo instante de que ele já não é mais jovem, que seu lugar na Terra já foi ocupado por outra pessoa...

Começa, então, o episódio que representa a virada total de Fellini para o simbolismo. Na Via Veneto, Marcello é abordado por Nico (sim, a modelo e atriz queridinha de Andy Warhol que cantou com o Velvet Underground), amiga sua que está indo para uma festa em um castelo nos arredores da cidade. Começa aí a viagem sensorial, surreal e silenciosa do jornalista pelo mundo pálido da aristocracia. Quando chega no castelo, pouco a pouco vai conhecendo seus moradores, pessoas bizarras, como o filho mais novo dos barões, a avó, a filha suicida, a amiga pintora, e até mesmo Madalena está por ali. Esta faz uma declaração de amor para Marcello, mas é na verdade uma espécie de confissão de sua própria libertinagem. Depois, o grupo todo vai até uma casa abandonada na propriedade, onde tentam invocar um espírito para responder perguntas. Após isso, as coisas se tornam desconexas, esfumaçadas, representadas pela fumaça das velas que o filho mais novo segura. Uma sucessão rápida de cenas e falas passadas na casa, mas não diretamente ligadas a nenhum acontecimento, até o ápice de uma misteriosa cena de sedução da amiga pintora e de Marcello, onde, por fim, desaparecem na escuridão. O dia surge então de repente, e os vê a todos voltando da construção abandonada e encontrando a matriarca da família se dirigindo à missa matinal, escrupulosamente impassível. Os filhos se apressam a unirem-se ao cortejo, e o episódio acaba.

Em toda a seqüência, está entranhada a simbologia da aristocracia decadente, tão cara aos cineastas europeus: festas com a presença de plebeus, propriedades abandonadas e falta de dinheiro, e uma entrega ao misticismo ao mesmo tempo em que se busca preservar o passado. Cada aristocrata é pusilânime à sua maneira: ou por ser subserviente, ou por ser arrogante, ou por ser anacrônico, ou por ser maluco. E as pessoas com que eles se associam não o são menos: soturnas, amalucadas, pomposas e, em última estância, patéticas.

Logo em seguida, vemos Marcello e Emma dentro de um carro, na estrada, onde começam a discutir. Emma reclama da infidelidade de Marcello, e Marcello esbraveja contra o amor doentio de Emma, que lhe tira toda a liberdade e espontaneidade. Por fim, ele acaba expulsando-a do carro, e deixando-a sozinha na estrada no meio da noite. Ela fica ali, solitária, até a aurora, quando vemos o carro do jornalista voltando e a acolhendo: fizeram as pazes, finalmente. Após serem levados até o extremo, conseguem equilibrar seus sentimentos e voltam a se amar. Um corte rápido mostra os dois abraçados, dormindo, na cama. Um toque de telefone, porém, interrompe o idílio dos dois, e de maneira irrevogável.

Sobrevêm então a segunda parte do episódio de Steiner. Marcello é chamado até o apartamento do amigo, onde descobre uma multidão de curiosos e policiais. Os acontecimentos são tão simples quanto estarrecedores: o bom Steiner, pai de uma família e esposo feliz, matou os dois filhos pequenos e depois se suicidou. Marcello fica horrorizado, não consegue entender o que houve. Na vitrola de Steiner, o policial roda uma gravação feita no dia da festa que Marcello fora. Uma das convidadas diz que Steiner é tão primitivo quanto uma agulha gótica, que ele está (ou se colocou) tão alto que sequer pode ouvir as vozes dos que estão aqui embaixo. Mas ele responde que seu tamanho real é sua altura, e assim fica, até a gravação de um trovão interromper o diálogo. Marcello e um policial vão, então, receber a mulher de Steiner, que estava viajando. Quando ela chega, tentam despistar os montes de fotógrafos que os rodeiam, a colocam num carro, e vão embora.

A cena acaba, mas suas conseqüências serão logo vistas. Desconsolado com o acontecimento, com seu modelo a ser seguido tendo cometido tal crime, Marcello entrega os ponto. No último episódio, ele e vários amigos que até então não eram conhecidos do espectador invadem a casa de um conhecido para promover uma espécie de orgia tímida, em comemoração ao divórcio de uma das mulheres do grupo. Apesar do clima sexual e libertino, porém, eles se mostram resistentes a realmente participar de algum tipo de orgia, e Marcello fica tentando animá-los a fazer algo de fato o tempo inteiro. O dono da casa, contudo, chega, e em pouco tempo os coloca para fora. O grupo de quase-libertinos vai então até a praia, conversando sussurrantes por entre as árvores.

Em algum momento durante esses episódios, Marcello estava em um bar na praia, tentando escrever algo para seu livro, e encontra uma adorável garota, que trabalha de atendente no estabelecimento. Eles conversam um pouco, ela fala de alguns de seus desejos e sonhos, e a cena logo acaba. Na cena final, todavia, ela irá reaparecer.

Os semi-libertinos chegaram à praia, onde encontram um bando de pescadores, que capturou um monstro marinho em suas redes, e o trouxeram para a praia. Os companheiros de Marcello observam admirados a criatura desconhecida e monstruosa, mas ao mesmo tempo se divertem fazendo comentários sobre comprar o bicho dos pescadores. A câmara segue lentamente Marcello, que talvez por estar bêbado ou talvez por sentir um certo nojo daquela situação, se afasta lentamente do grupo, e caminha até o córrego que vai dar no mar. Do outro lado, a garota do bar acena sorridente e tenta lhe dizer alguma coisa. Marcello responde dizendo que não entendeu, mas igualmente não é ouvido. Ficam assim os dois, separados pelo córrego e pelo fracasso em se comunicarem. Uma amiga de Marcello o puxa para irem embora, e ele volta o rosto, com olhar de lamento, para trás. A garota, por sua vez, sorri, um pouco desapontada. A tela escurece, e aparecem os créditos.

Frequentemente, descobrem-se temas muito parecidos na filmografia de diretores, ou mesmo em filmes específicos. Michelangelo Antonioni, um dos maiores diretores de todos os tempos, criou sua trilogia da incomunicabilidade. Com A Doce Vida, Fellini também fez seu filme sobre o tema, embora tenha ido além, no sentido em que tocou em praticamente todos os aspectos da vida social italiana. Duas cenas são as chaves para entender o filme. Na primeira, vemos ruínas de um aqueduto romano, e dois helicópteros se aproximam, trazendo uma estátua de Jesus Cristo. Logo, porém, os helicópteros entram na cidade, cheia de prédios modernos. Ao passar por um desses prédios, um dos helicópteros – aquele em que está Marcello – pára, pois algumas mulheres estão tomando sol no terraço. Marcello tenta falar com elas, pedir o telefone, mas é difícil, pois as hélices são muito barulhentas. Com muito custo, elas entendem o que ele diz, mas se recusam a dar o telefone. Na última, cena, por sua vez, Marcello e seus quase-libertinos encontram um monstro marinho na praia, mas aquilo não atrai realmente a atenção do jornalista. A garota angelical que encontrara algum tempo antes reaparece, mas dessa vez eles não conseguem conversar. O vento e a distância impedem que se entendam, e eles acabam se separando. Na primeira cena, o velho (as ruínas romanas) convive com o novo (os prédios), o religioso (a estátua de Jesus) convive com o mundano (as mulheres tomando banho de sol), e as pessoas não conseguem se comunicar. Na última, o banal (amigos andando na praia) convive com o surreal (um monstro marinho), o trabalho (os pescadores) convive com a doce-vida (os amigos de Marcello), e as pessoas não conseguem se comunicar.

As situações são diferentes, mas o resultado é o mesmo. Madalena não consegue dizer para seu pai que quer mais liberdade, nem consegue ser totalmente sincera com Marcello, pois só o que conhece é a entrega completa a qualquer homem. O pai do jornalista não consegue expressar seu fracasso no ato sexual, assim como não consegue pedir ajuda. Marcello declara sua veneração por Sylvia, mas ela não entende, pois fala outra língua, e Sylvia e seu namorado não se entendem, e brigam, pois um está bêbado e a outra, num estado amortecido da mente, em que tudo é completa felicidade. Steiner não pode expressar seu descontentamento em relação à sua vida, e acaba externando isso da pior maneira possível. Marcello tenta escrever seu livro, mas fracassa. Os quase-libertinos querem se abrir totalmente a um grupo de pessoas, mostrarem-se como de fato são, mas não conseguem nem isso, nem se despirem e participarem de uma orgia. Marcello e Emma não conversam sobre seus problemas realmente até a hora em que tudo explode e eles acabam brigando, quando finalmente se entendem. Mas, depois, advém a tragédia e tudo se torna inútil, nulo.

Nesse filme, Fellini não fala só sobre a doce-vida dos ricos e famosos, aliás, muito pelo contrário. Ele fala da Itália, e das pessoas que lá vivem, surdas, mudas e cegas. Por, quando são aristocratas, não enxergarem sua própria decadência, e isolarem-se totalmente dentro de si. Por, quando são religiosos, não ouvirem um chamado verdadeiro de fé, e não verem quando um suposto milagre simplesmente é uma invenção da cabeça de crianças. Por, quando são pessoas, simplesmente, não conseguirem dizer ao outro uma coisa que seja verdadeira, que não seja manipulada, redundante, óbvia.

A Doce Vida é o filme da incomunicabilidade, mas também é o filme do absurdo, dos seres humanos que se acabam no “grito horrível chamado silêncio” da vida contemporânea. Ainda que, com muito esforço, possa-se ver um sorriso sincero, de esperança, não se ouve o que ele diz.
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