sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Citação de Sexta: Tão cedo...


"Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto

Morre! Tudo é tão pouco!

Nada se sabe, tudo se imagina.

Circunda-te de rosas, ama, bebe

E cala. O mais é nada."


- Ricardo Reis
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quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Alien, o Oitavo Passageiro

A nave está tomada pelo silêncio e não se vê nenhum ser vivo. Os corredores vazios permanecem inescrutáveis, e o ar não acusa nenhum movimento. De repente, surge em uma tela até então apagada uma mensagem. Imediatamente os sete tripulantes da nave, que até então hibernavam, são acordados, e contentes começam a conversar, imaginando que, se a nave os acordou, é porque estão perto da terra, perto de casa. Mas a verdade é diferente: o computador que pilota a nave chama o capitão e avisa que eles desviaram da rota para atender a um chamado de origem desconhecida. Prontamente eles se dirigem até o planeta fonte do chamado, e ali descobrirão algo que nenhum (nenhum?) deles esperava...

Alien, o Oitavo Passageiro, é uma união de gêneros, influências e talentos. O diretor Ridley Scott, trabalhando sobre o roteiro de Dan O’Bannon, utilizando um visual criado por ele e pelo ilustrador H. R. Giger, misturando terror e ficção-científica, criou um aterrorizante filme, uma obra hipnótica, fascinante e única. Na fase de divulgação do filme, a frase estampada nos pôsteres resumia bem o clima do filme: “No espaço, ninguém vai ouvir você gritar”. Pois, nesse filme, não é só o personagem título que nos deixa com medo.

Quanto aos aspectos exteriores do filme, dois chamam a atenção. Um deles é a ambientação/visual. Scott sempre teve um apuro enorme na concepção visual de seus filmes, e em Alien não foi diferente. O filme praticamente inaugurou o uso de um visual sujo e escuro em naves espaciais, em forte contraste com a brancura e limpeza de filmes como 2001. Todo o design do Alien e do que o envolve (a nave em que ele é encontrado, suas várias fases de desenvolvimento) foram concebidos por H. R. Giger, cujo estilo único, surreal, obsceno casou perfeitamente com a criatura que atormenta os tripulantes da Nostromo.

Tudo isso foi muito importante para o terror que o filme provoca, mas mais importante ainda foi o clima criado por Scott. A música, mínima, aparece muito pouco. Mais presente, e opressor, é o silêncio da nave (e do espaço), cenário perfeito para os gritos, gemidos, respiração ofegante e ranger de dentes dos pobres tripulantes. E mais: a criatura do título pouco aparece, mas sua presença é sentida (e temida) o tempo todo. De fato, o Alien só aparece na metade do filme, uma hora após o início, e após isso faz pequenas incursões, sempre surgindo do escuro para atacar alguém. Essa ausência do personagem, assim como acontece em Tubarão, é ponto fundamental para o suspense e o medo gerados.

No plano interior, para além do medo/emoção/diversão (enormes, por sinal) provocados pelo filme, não é exagero de interpretação enxergar alguns simbolismos no monstro-título e no enredo do filme. O Alien é, visto de um certo ângulo, personificação do desconhecido que nos aguarda Lá Fora. Nós o tememos, e por causa dele, somos desviados de nossa rota, afastados de casa, e submetidos às piores agruras. Por causa dele, nós, humanos, somos capazes de descartar outras vidas, somente para alcançá-lo, para tê-lo em mãos.

Decerto, o plano mais rico do filme não é simbólico. Entretanto, pelo tempo usado por Scott na trama de Ash, e pela construção em si do filme, somos levados facilmente a acreditar que as coisas mais aterrorizantes para o ser humano não aguardam lá fora no espaço infinito, mas sim aqui, bem perto, dentro do nosso coração.
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quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A Roda #8 - Notícias da Frente


por Lobato Légio

Ano termina, ano começa, aqui estamos nós – mesmos e desiguais. Lobato Légio mais uma vez vem deitar e sussurrar para a poeira da superfície da Terra seus segredos profundos. Mas é uma espécie de magia, a mudança. A maneira como segredos profundos vêm à superfície, a maneira como superficialidades podem submergir lentamente até as profundezas. A maneira como um antigo poeta latino vem parar na pena de um prosador contemporâneo, talvez até demais para o próprio gosto: Metamorfoses.

Pois bem, aqui estamos, portanto, e as coisas mudam, e nós com elas: A Roda, que antes girava uma vez a cada duas semanas, agora há de girar todas as semanas, porém não como vocês imaginam. A cada duas quartas-feiras, como já ocorre, A Roda girará no ritmo de sempre, trazendo sobre si novas palavras deste prolixo pensante. A cada duas sextas, porém, alternadas às quartas rodadas, as palavras célebres de artistas merecedores darão lugar ao ruído desprezível do que vos escreve.

Nesses dias, a despeito do estilo pobre, um tema elevado será objeto de estudo (e, considerando-se o tema, também o próprio meio de expressão): não mais não menos que a Xurepa. Pois, por motivos que me fogem à compreensão, Tuma solicitou-me a permissão para publicar no diário-de-rede minha obra Tratado Universalizante da Xurepa, publicada já há anos idos, como maneira de esclarecer aos eventuais leitores as características, pormenores e idiossincrasias de tal coisa. Dessa maneira, esperem muitas digressões sobre a história da Xurepa, o que ela é e o que representa.

Concomitantemente, a própria coluna de quarta-feira terá novidades. Em um mês, ou seja, daqui a duas colunas-de-quarta, quatro no total, começarei (espero continuar sendo eu, até lá) uma série sobre a Roda, seu significado e suas variantes, fazendo jus, finalmente, ao título da coluna.

O futuro não me pertence, é certo, e a quem pertence também não sei. Mas, durando o mundo, e seguindo seus cursos as coisas como planejado, os próximos meses serão muito enriquecedores para minha experiência nesse diário-de-rede, e espero que também seja enriquecedor para os leitores.

Ano termina, ano começa, aqui estamos nós – mudando, resistindo às mudanças, tocando sempre em frente.
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terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O Planeta dos Macacos

Até suas cenas finais, O Planeta dos Macacos não passa de uma ficção-científica tradicional, ainda que muito bem executada. A sociedade humana é emulada (na sociedade símia) e criticada como na maioria das outras obras de ficção-científica padrão, enquanto uma história um tanto quanto familiar se desenrola sobre esse pano de fundo. Até que uma revelação final mostra que o que estávamos pensando até então era ingenuidade, perto da verdade que o filme coloca. Vejamos...

Quatro astronautas estão em missão de exploração no espaço, viajando à velocidade da luz. Como prevê a teoria da relatividade, enquanto eles pouco envelhecem, na Terra já se passaram séculos. Um acidente, porém, joga a nave em um planeta desconhecido, e os viajantes descobrem que um deles, a única mulher da missão, morreu devido a uma falha no sistema de preservação da nave. Os sobreviventes então escapam do veículo e começam a andar pelos arredores tentando encontrar vida (inteligente ou não). Acabam encontrando um grupo de seres muito parecidos com humanos, com a diferença de que estes não conseguem falar.

Nessas primeiras cenas (que cobrem quase meia hora do filme), já temos os primeiros indícios do que nos espera no final: enquanto caminham pelo deserto, os companheiros discutem os motivos que os levaram àquela viagem, e acabam manifestando entre si o desprezo que sentem pela própria raça. Contudo, mesmo tendo perdido a nave e com ela qualquer chance de voltar para casa, um dos astronautas finca no solo do planeta desconhecido uma bandeira dos EUA, e o comandante da missão, o capitão Taylor (Charlton Heston), ao avistar os humanos primitivos, afirma que em seis meses os três tem condições de estar dominando o planeta, sobre aqueles seres inferiores.

É aí que o filme muda de rumo, com a aparição de macacos armados e montados em cavalos que caçam os humanos, e acabam por matar um dos astronautas e prender os outros dois, capitão Taylor incluso. A partir daí, conheceremos a sociedade símia, que possui elementos primitivos e avançados, e uma grande semelhança com os humanos: os macacos estão divididos em castas, possuem ciência, religião, tirania, traição... há entre eles pessoas curiosas e outras medrosas, alguns que querem descobrir e outros que querem esconder a verdade. Há uma curiosa inversão de papéis, que remete aos houyhnhnms e aos yahoos de As Viagens de Gulliver: enquanto os macacos são avançados, os humanos são primitivos, e estes são dominados e exterminados por aqueles.

Tudo isso nos leva a sentir certa repulsa pela sociedade símia, e torcer para que Taylor consiga escapar, e Zira e Cornelius, seus aliados chimpanzés, consigam revelar a verdade sobre a história da raça primata. Até que somos tirados do ambiente dos macacos e levados até uma região desértica, onde macacos e humanos (Taylor e sua companheira muda e subserviente, hmmm...) se encontram e tem a chance de descobrirem algumas coisas. Zaius, o orangotango poderoso que até então parecera um vilão insidioso, faz um discurso contra o homem, referindo-se a uma antiga profecia que falava sobre o quão cruel e terrível era o ser humano, sobre a maneira como ele matava o próprio irmão por prazer, luxúria ou ganância, sobre como o homem é uma praga e a despeito de toda sua sabedoria e inteligência não consegue fazer nada que não seja eclipsado por sua estupidez.

Nesse momento, tanto o espectador como Taylor estão um pouco confusos, espantados pelas palavras de Zaius. Taylor então abandona os macacos e segue pela praia junto com Nova, sua companheira. Após algum tempo, Taylor finalmente encontra seu destino, e descobre a verdade inegável: a Estátua da Liberdade em ruínas afundada na praia que ele encontra é a revelação definitiva. O mundo estranho em que ele havia chegado nada mais era que a própria Terra, dois milênios após o ocaso do homem, após o ser humano ter destruído a si mesmo e deixado a Terra ferida se recuperando lentamente.

Desse modo, o diretor Franklin J. Schaffner dá o xeque-mate: por pior que a sociedade dos macacos parecesse a princípio (ou melhor, do ponto de vista de um humano), ela chegava a ser uma utopia perto do que a sociedade humana foi (no tempo do filme; para nós, do que a sociedade humana é), e do que ela fez (faz) para si mesma e para o planeta. Sombrio e pessimista, sem dúvida, mas também muito contundente, cada vez mais contundente nos nossos tempos apocalípticos.
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segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Os 10 melhores cineastas chamados John

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Listas e tops são, na quase totalidade das vezes, arbitrários. Excetuando-se as ocasiões em que um dado concreto é utilizado (por exemplo a bilheteria), os critérios utilizados para a formação de uma lista dependem sempre exclusivamente da vontade de quem a monta. Eu particularmente adoro listas – lê-las e fazê-las -, mas as encaro mais como uma fonte de referência do que como um ranking de fato, que diz que a é melhor que b (embora, quando eu monte algumas listas, de fato elenque os itens em ordem de preferência, o faço com um critério puramente pessoal). Assim, a lista de hoje reúne diretores de cinema segundo um critério muito simples – e talvez um pouco inusitado, mas aceitável -: todos se chamam John. Não há Jean, Joe, James ou Jack, somente os John's são aceitos. A partir daí, segundo a importância e relevância do cinema de cada um, os elenquei numa determinada ordem. Mas, ainda assim, o objetivo dessa lista é somente servir de referência para os interessados em ver filmes de algum sujeito chamado John. Que assim seja.

1. John Ford: Ele era os três diretores de cinema favoritos de Orson Welles, e favorito também de Scorsese, Kurosawa, Bertolucci, Sergio Leone e Clint Eastwood, Godard, Truffaut e seus companheiros da nouvelle vague, entre outros. Ele podia esnobar o Cinemascope dizendo que este só servia pra filmar cobras e enterros. Ele inaugurou o western com Nos Tempos das Diligências e o levou a seu ápice em Rastros de Ódio. Ganhou 4 vezes o Oscar de melhor diretor, um recorde até hoje. É o Grande Diretor do Cinema Americano, e foi agente fundamental da fundação desse mito. Um ícone do século XX.

Principais obras: No Tempo das Diligências, Rastros de Ódio, O Homem que Matou o Facínora, Como Era Verde o Meu Vale, Vinhas da Ira, Depois do Vendaval.

2. John Huston: Mestre do noir, esteve, como diretor ou ator, em alguns dos maiores filmes do gênero. Dirigiu o símbolo do noir O Falcão Maltês (chamado antigamente de Relíquia Macabra) e atuou em Chinatown. Ganhou o Oscar de melhor diretor por O Tesouro de Sierra Madre e ainda teve a manha de dirigir o último filme de dois dos maiores ícones do cinema (Clark Gable e Marilyn Monroe, em Os Desajustados) e um filme com o Pelé (Fuga para a Vitória).

Principais obras: O Falcão Maltês (Relíquia Macabra), O Tesouro de Sierra Madre, Moby Dick, Os Desajustados, O Segredo das Jóias, A Honra do Poderoso Prizzi .

3. John Cassavetes: Pai do cinema independente americano, tinha um estilo artesanal e único de fazer cinema. Seus filmes sempre deram lugar ao sentimento, ao sutil, ao humano. Também ficou famoso por suas atuações em O Bebê de Rosemary e Os 12 Condenados.

Principais obras: Faces, Sombras, Uma Mulher Sob Influência, Noite de Estréia.

4. John Carpenter: Mestre do horror e da ficção científica, tornou-se cult a partir de filmes com jeitão trash. As eternas reprises na Sessão da Tarde ajudaram a tornar seus filmes famosos aqui no Brasil, mas os comentários sobre a nossa sociedade e o nosso mundo presentes em seus filmes contribuíram definitivamente para eternizá-lo.

Principais obras: Eles Vivem, O Enigma do Outro Mundo, Halloween, Fuga de Nova York, Os Aventureiros do Bairro Proibido, A Névoa.

5. John Lasseter: Grande guru da Pixar, é um dos principais realizadores de animação em 3D, e um dos maiores responsáveis pelo desenvolvimento dessa forma de arte nos últimos anos. Após a compra da Pixar pela Disney, tornou-se chefe de criação da primeira e supervisor de criação na segunda.

Principais obras: Toy Story 1 e 2, Vida de Inseto, Carros

6. John Boorman: Inglês radicado na Irlanda, Boorman trabalhou com atores do porte de Toshiro Mifune e Marcello Mastroianni e ganhou duas vezes o prêmio de melhor diretor no festival de Cannes.

Principais obras: Inferno no Pacífico, Amargo Pesadelo, Excalibur, Esperança e Glória, O General.

7. John Waters: Tem como objetivo de vida transgredir todos os limites, e por isso fez um dos filmes mais perturbadores de todos os tempos, Pink Flamingos, uma reunião das pessoas mais sórdidas do mundo. Acabou se tornando ídolo da contra-cultura.

Principais obras: Pink Flamingos, Hairspray (1988).

8. John Hughes: Ídolo dos adolescentes dos anos 80, Hughes dirigiu os maiores clássicos da Sessão da Tarde de todos os tempos, entre eles Curtindo a Vida Adoidado, o filme que lançou Matthew Broderick para o estrelato.

Principais obras: Clube dos Cinco, Curtindo a Vida Adoidado, Mulher Nota 1000

9. John Frankenheimer: Mais ilustre por sua contribuição para a Era de Ouro da televisão no EUA (ganhou o Emmy diversas vezes), Frankenheimer se destaca no cinema por seus thrillers políticos e filmes de ação cheios de tensão, com personagens prestes a explodir e situações eletrizantes.

Principais obras: Sob o Domínio do Mal, Ronin, Sete Dias de Maio, O Trem.

10. John Landis: Mais chegado à comédia, trafegava sempre por um humor mais negro, às vezes descambando até para o horror.

Principais obras: Um Lobisomem Americano em Londres, Os Irmãos Cara-de-Pau, Clube dos Cafajestes.
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sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Citação de Sexta: A Sina do Homem


"Além da Terra, pelo Infinito, procurei, em vão, o Céu e o Inferno. Depois uma voz me disse: Céu e Inferno estão em ti."

-Omar Khayyam, Rubaiyát
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quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A Primeira Noite de um Homem

Alguns filmes se tornam famosos por terem uma história inovadora. Outros por terem personagens marcantes. Alguns filmes se tornam famosos porque tem uma estrutura diferente, um roteiro provocador, uma trilha sonora inesquecível, frases que ficam marcadas no imaginário popular. Alguns filmes se tornam famosos porque têm tudo isso – e muito mais. Esse é o caso de A Primeira Noite de um Homem, classicão preferido dos ianques, epítome e fonte de vários ícones do imaginário norte-americano, o 7º na lista de melhores filmes em inglês da AFI, 9º entre as comédias.

O filme, enfim, está cheio de imagens, frases, personagens e situações que já transcenderam a fonte e se juntaram à nuvem misteriosa da cultura popular. Benjamin é um jovem de classe média alta que acaba de se formar (o “graduado” do título original) e não sabe o que fazer da vida. Na festa que os pais dão para comemorar seu retorno, ele é seduzido pela mulher do sócio de seu pai, a sra. Robinson, e acaba entrando com ela em uma rotina de encontros secretos e silenciosos, onde a única forma de comunicação que funciona é o sexo. A chegada da filha de mrs. Robinson, Elaine, porém, irá quebrar essa rotina, e jogar a vida de Ben num frenético torvelinho.

Com esse enredo, o diretor Mike Nichols constrói uma comédia romântica estranha, com momentos engraçados que nos fazem rir e outros momentos engraçados que não provocam sequer um sorriso, todos eles envoltos pelas belíssimas músicas de Simon & Garfunkel, tão ilustres quanto o filme, que ajudam a tornar tudo ainda mais melancólico.

Com sutileza, Nichols toca em vários temas que seriam extremamente significativos para a sua geração. Ben e mrs. Robinson não conseguem se comunicar a contento, eles quase não conversam, a única linguagem entre eles é ao mesmo tempo instintiva e “protetora”, já que mrs. Robinson é uma espécie de “professora” de Ben, e o ensina certas condutas da sedução e do sexo, que depois eles mesmo utilizará em outra(s) pessoa(s). Assim, o aluno abandona o mestre e vai viver sua vida, o filho abandona o pai e torna-se independente. Benjamin larga sua família e sua antiga “tutora” para ficar com Elaine, que era como ele, aprendiz de uma geração passada.

Mas o choque de gerações não é o único tema do filme. Aproveitando-se desse enredo em que o abandono do mestre, do passado, do convencional, está sempre presente, o filme é um singelo e simples (sem a fúria revolucionária dos anos seguintes) manifesto libertário, uma história envolvente, engraçada e poética sobre seres humanos que após vagar presos a dogmas e convenções “necessários” se soltam e tomam um rumo próprio.

A Primeira Noite de um Homem, com seus personagens sem rumo, suas histórias pessoais, suas situações desafiadoras, é uma marco inaugural de uma nova era do cinema americano, em que as pessoas comuns e as histórias com as quais podemos nos identificar se tornaram cada vez mais presentes, e necessárias.
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quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Por segundo

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Quando elæ começou a cair, o tempo parou. Como bolinha de gude que revolve num tabuleiro de resta-um e de repente se encaixa, sua cabeça fez uma espiral descendente e estacou, no continuum preenchido de nuvens e assovio.

Os píncaros ebúrneos recrudescentes até há pouco se afigurando cada vez mais distantes já não mais se viam, mas um leve contorno de luz ainda podia ser divisado flutuando no infinito acima de sua cabeça.

Cascatas de luz misturando-se a flocos de neve, gotas de chuva e grãos de poeira revolviam derredor delæ, rasgando o ar e as nuvens num compasso lento. As partículas preguiçosas resistiam à gravidade inclemente e a cada segundo mal estavam em outro lugar que não no anterior.

Antes, não seria assim. Que perguntas haveria de fazer cuja resposta já não estivesse aos seus olhos? Não, beleza indizível e porte nobre, ascendência de toda nobreza, caminhar ereto, firme e ao mesmo tempo delicado e indiferente foram suficientes por um longo tempo.

E observar, sempre, a luz da Face que se derramava pelas esquinas, pelas paredes, que preenchia tudo e era tudo, e era tão mais bela e tão mais nobre que não se poderia dizer quanto. Bom o suficiente.

Mas se o que está acima não é capaz de provocar o sentimento errado, o que está abaixo com certeza será, com suas menos-belezas e menos-nobrezas e menos luz, brilho para acalentar a noite.

No meio do caminho entre o aos seus pés e o inalcançável, quedou solitária aquela estrela, os olhos antes tão altivos agora sempre baixos, temerosos de encarar o que não queria ver e ter de volta em seus pensamentos aquelas idéias que não queria...

Contudo quem disse que se pode escapar do destino? O fio foi trançado, a ampulheta derramou sua areia, as gotas da clepsidra findaram seu gotejar. E assim o momento chegou.

Os que estavam aos seus pés elevaram sem esforço os olhos até ele, e a luz que os iluminava foi sinistra. E houve sangue, guerra e desespero nos elevados plenos de luz, e eles foram derrotados, e as estrelas começaram a cair.

E elæ foi jogado da torre mais alta, e despojado de sua beleza e de sua nobreza, de sua luz e de seu poder, e seu corpo foi queimado pelas chamas do entre mundos, e ele fulgurou por um mero instante no céu, e então as chamas se apagaram e ele entrou no mundo decadente.

E em seus pensamentos perguntava-se o real sentido do que fizera, se O desafiara por própria condição ou se fora cuidadosamente levado a cair. E não bastasse qual fosse a resposta, caindo de costas olhava para cima, e a luz da Cidade não sumia, e em meio ao frio e ao pó de sua queda, já sentia um amargor profundo, uma enorme saudade de seu lar, e desejava terminar logo de cair para desviar os olhos e esquecer.

Mas o chão não chegava nunca.
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terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Um Dia de Cão

Hollywood é o paraíso dos gêneros. É bem claro que países onde o cinema depende muito do esforço pessoal de um diretor ou produtor não tem uma tradição de gêneros forte, mas antes filmes bem mais pessoais de artistas esforçados. Nos EUA, entretanto, fica a maior indústria de cinema do mundo, e portanto é natural que lá seja o lar de muitos dos gêneros mais ilustres da sétima arte.

O filme de assalto é um desses gêneros: às vezes violentos, às vezes engraçados, às vezes cheios de surpresas, os filmes de assalto são um filão extremamente fértil. Difícil dizer onde começou a tradição, mas é possível apontar os clássicos. E um desses clássicos é justamente Um Dia de Cão, do diretor Sidney Lumet.

Certo, chamar Um Dia de Cão de filme de assalto é classificá-lo um pouco arbitrariamente, mas ele se passa inteiro dentro de um banco sendo assaltado, então isso já basta para incluí-lo no gênero: o que vier a mais é um acréscimo criativo. E de que se tratam esses acréscimos? Bem, em primeiro lugar o filme é baseado em um evento ocorrido em 22 de Agosto de 1972. Isso dá a ele um tom naturalista, quase documental.

Além disso, o diretor também imprime nesse filme um alto teor dramático, cômico e político, o que acaba por transformá-lo num famigerado “retrato de uma época”. Sonny (Al Pacino), o líder do assalto, está lá para conseguir dinheiro para a operação de mudança de sexo de seu namorado, Leon (Chris Sarandon). Seu cúmplice, Sal (John Cazale), é um ex-presidiário meio obsessivo e com cara de perigoso. Há também o policial histriônico que inicia as negociações com Sonny, e o agente do FBI que as leva a um termo. E, acompanhando isso tudo, a multidão do início da década de 70, enganada por Nixon e vivendo com medo do Vietnã, que apóia incondicionalmente os assaltantes e seus atos.

Unindo com maestria esses elementos, Lumet fez não só o “retrato de uma época”, um filme de assalto ou um drama com toques cômicos e políticos, mas tudo isso junto, uma pequena obra-prima que deu a Al Pacino um de seus melhores papéis e é um dos filmes mais representativos dos anos 70.
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segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

As melhores parcerias entre Ator e Diretor

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O cinema, mais do que qualquer outra, é uma arte coletiva. Até é possível fazer um filme sozinho, mas seria algo bem difícil, e com certeza experimental. Por isso, as parcerias nesse meio são inúmeras, entre diretores e roteiristas, roteiristas e atores, produtores e diretores ou roteiristas ou atores, diretores e atores... como essa última é a face mais visível das parcerias, me aterei a ela. As colaborações entre um diretor visionário e um ator expressivo são essenciais: às vezes o diretor precisa de um ator capaz de comunicar certas idéias e sentimentos; às vezes o ator precisa de um diretor que lhe proporcione um veículo artisticamente significativo.

Para essa lista, adotei como critério meramente os filmes que os diretores e atores fizeram juntos: analisar o quanto a parceria foi significativa para o filme, o quanto um ajudou o outro, etc. seria mais difícil, talvez até impossível de mensurar. Assim, fiquemos com o critério de quão fértil a parceria foi em obras-primas da sétima arte.

1. Akira Kurosawa e Toshiro Mifune: O maior ator japonês se uniu ao melhor diretor japonês e ambos construíram uma obra imensa. Muitos dos melhores filmes de Kurosawa contam com a presença de Mifune, cujas atuações vagueiam sempre entre o sublime e o inesquecível.

Filmes juntos: 16 – O Anjo Embriagado; A Luta Solitária; Cão Danado; O Escândalo; Rashomon; O Idiota; O Sete Samurais; Trono Manchado de Sangue; Vivo no Medo; Ralé; A Fortaleza Escondida; Homem Mau Dorme Bem; Yojimbo ou O Guarda-Costas; Sanjuro; Céu e Inferno; O Barba Ruiva.

2. John Ford e John Wayne: Talvez a parceira mais icônica da história do cinema, a união dos dois Johns construiu o que se pode chamar de um mito americano no cinema. Se John Ford é o deus do cinema americano, John Wayne é seu avatar, uma imagem que transcende a pessoa, que vira ícone, e fica indelevelmente cravada no imaginário dos EUA – e do mundo.

Filmes juntos: 15 (22) – Rastros de Ódio; No Tempo das Diligências; Depois do Vendaval; O Homem Que Matou o Facínora; Sangue de Heróis; Rio Grande; Legião Invencível; Fomos os Sacrificados; Marcha de Heróis; A Longa Viagem de Volta; O Céu Mandou Alguém; A Conquista do Oeste; Asas de Águias; O Aventureiro do Pacífico; além de outros 7 filmes em que teve participação como extra, não creditada.

3. Ingmar Bergman e Max Von Sydow: Von Sydow é mais conhecido pelo personagem título de O Exorcista, mas foi com Bergman que ele fez seus trabalhos mais significativos, e se tornou respeitável. O semblante do ator expressava perfeitamente os conflitos e emoções que os filmes do diretor precisavam, e por isso ele acabou indissociavelmente ligado a eles.

Filmes juntos: 11O Sétimo Selo; Morangos Silvestres; A Fonte da Donzela; Através de um Espelho; O Rosto; Os Comungantes; A Hora do Amor; No Limiar da Vida; A Paixão de Ana; Vergonha; A Hora do Lobo.

4. Martin Scorsese e Robert De Niro: A parceria mais recente é também uma das melhores. De Niro é o melhor ator de sua geração, e Scorsese encontrou nele o veículo ideal para o seu estilo. De gângster violento a lutador de boxe decadente, De Niro viveu todos os seus papéis com perfeição, e Scorsese engendrou os filmes perfeitos em que De Niro brilhou.

Filmes juntos: 8 – Caminhos Perigosos; Taxi Driver; New York, New York; Touro Indomável; O Rei da Comédia; Os Bons Companheiros; Cabo do Medo; Cassino.

5. François Truffaut e Jean-Pierre Léaud: Um caso especial, a parceria de Truffaut e Léaud se destaca pelo ator ter vivido o alterego do diretor francês em cinco filmes – o chamado ciclo Antoine Doinel. De Os Incompreendidos a Amor em Fuga, Truffaut passou a Jean-Pierre o difícil encargo de interpretar o mesmo personagem várias vezes, e com o agravante desse personagem ser o próprio diretor.

Filmes juntos: 7Os Incompreendidos; Antoine e Colette (segmento de O Amor aos Vinte Anos); Beijos Roubados; Domicílio Conjugal; Amor em Fuga; A Noite Americana; As Duas Inglesas e o Amor.

6. Federico Fellini e Marcello Mastroianni: Mastroianni encarnou Fellini em Oito e Meio e trabalhou em dois dos três melhores filmes do diretor. Embora tenha trabalhado em muitos outros ótimos filmes com diretores ilustres, Marcello nunca alcançou o mesmo brilhantismo que teve ao lado de Federico.

Filmes juntos: 6 A Doce Vida; 8 ½; Roma; Cidade das Mulheres ; Ginger e Fred; Entrevista.

7. Werner Herzog e Klaus Kinski: A mais conturbada das parcerias, esta rendeu até um documentário, Meu Melhor Inimigo, em que Herzog analisa sua relação conturbada com Kinski. A história de que o diretor usou um rifle para impedir Kinski de ir embora das gravações de Fitzcarraldo resume muito bem o que a parceria dos dois foi em termo de amenidades e amizade – embora em termos artísticos a coisa tenha ido muito melhor.

Filmes juntos: 5 – Aguirre, a Cólera dos Deuses; Fitzcarraldo; Nosferatu: O Vampiro da Noite; Cobra Verde; Woyzeck.

8. Alfred Hitchcock e James Stewart: Stewart teve a sorte (ou o talento) de estar em parcerias produtivas com outros dois grandes diretores: Anthony Mann e Frank Capra. Mas foi graças a Hitchcock que ele se tornou mais conhecido, e foi com ele que Hitchcock fez seus melhores filmes, suas obras-primas do suspense.

Filmes juntos: 4Festim Diabólico; Janela Indiscreta; Um Corpo Que Cai; O Homem Que Sabia Demais.
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sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Citação de Sexta: [In]san[t]idade


"Assim, a loucura dos seres humanos é o juízo celeste; e, ao se afastar de toda a razão mortal, o homem alcança por fim o pensamento celeste, que, para a razão, é absurdo e louco; e, tanto na prosperidade como na dor, sente-se então sem compromissos, indiferente como o seu Deus."

-Herman Melville, Moby Dick
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quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Pílulas Cinematográficas, Edição 12

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Dando um tempo nas pílulas temáticas, essa edição conta com filmes que não tem absolutamente nada a ver um com o outro, tirando o fato de serem ótimos. Um é considerado a melhor comédia de todos os tempos, outro é um pesado drama sobre o Vietnã, e o último é um filme divertidíssimo produzido pelo gênio de Woody Allen.
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Quanto Mais Quente Melhor (Some Like It Hot, Billy Wilder, 1959): Dois músicos desempregados presenciam um massacre e passam a ser perseguidos pela máfia. Para fugirem transvestem-se de mulher e vão para Miami junto a uma big band feminina. No fim, até homossexualismo (nonsense) é sugerido. Tudo isso numa comédia. Feita na década de 1950. Ninguém além do diretor nascido na Polônia Billy Wilder poderia ter feito algo desse tipo. O genial cineasta criou nesse filme a comédia considerada pela AFI a melhor de todos os tempos (ao menos entre os filmes americanos, tem cacife para isso) e, independente de listas ou coisas do gênero, um filme fantasticamente engraçado, além de contar com a sempre encantadora presença de Marilyn Monroe. Cheio de piadas dos mais diversos tipos, Quanto Mais Quente Melhor é uma aula de como fazer comédia sem se render aos clichês vigentes e ainda construir um filme cinematograficamente bem feito e poderoso.
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O Franco-Atirador (The Deer Hunter, Michael Cimino, 1978): Os dramas em O Franco-Atirador são de pessoas assustadoramente banais. Não há heroísmos, não há crimes, somente desejo, medo e loucura. Os personagens são os americanos típicos dos anos 70: a geração pós-década-de-60 sentindo ainda as novidades do clima liberal mas vivendo sob a sombra do Vietnã. Esse filme é considerado o melhor sobre os traumas que a Guerra deixou na sociedade americana. Os amigos vão para a guerra, vivem seus horrores, mas ao voltar não conseguem viver suas vidas normalmente, situação assustadoramente atual com as dezenas de notícias, reportagens e filmes sobre o estresse pós-traumático do combatentes do Iraque. O Franco-Atirador mostra, com suas imagens limpas e contundentes, que a contagem de mortos de uma guerra é sempre muito maior do que aquela acusada nas estatísticas.

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Hannah e Suas Irmãs (Hannah and Her Sisters, Woody Allen, 1986): Os filmes de Woody Allen são deliciosos, divertidos e adoráveis. Com simplicidade, humor e humanidade, o diretor transporta todo tipo de vivência e sonho humano para as telas, criando assim obras que são espelho da sociedade e dos seres humanos, que mostram seus defeitos, seus dramas, suas alegrias, sem nunca perder, no entanto, um certo sentimento indefinível de amor à vida. Nada de sair por aí pulando e gritando em transe, dizendo que a vida é maravilhosa. Com Allen, as coisas são mais sutis, mais delicadas. Hannah e Suas Irmãs é o maior exemplo disso: os personagens são cheios de defeitos, por vezes dissimulados, sofrem pra caramba, mas nós nos apaixonamos por eles e no fim as coisas dão certo de um jeito ou de outro. Irresistível e iluminadamente, Allen nos transporta de volta para o nosso mundo.

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quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

A Roda #7 - Panorama do Vale de Legium, parte 4


por Lobato Légio

Inelutável a atração que Ponto provoca nas mentes humanas. Chama, bradando, e as envolve num amplexo poderoso. Muitas coisas evocam o mar, muitas coisas o mar evoca. De um mero momento, água caindo potente sobre a cabeça, respingando nas paredes, nasce uma idéia. É a consciência, que flui, e desemboca no mar.
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Há um ponto entre os ladrilhos. É uma encruzilhada. Há uma árvore morta. Tombada sobre o caminho que vem do norte. Há morte, no caminho do norte, me diz um corvo. Ele espreita, entre os galhos ressequidos de uma vida passada, hoje só um esqueleto no urzal. É longa a autoestrada. Autoestrada. Eu não tenho uma estrada. Os caminhos se bifurcam, não sei para onde. Qualquer um serve.

Água escorre da parede. O xampu me cega, e seu gosto ruim provoca uma careta. Uma carreta colide com a árvore morta a caminho da horta. O pára-choque entorta. Mais um cadáver.

Alô? – hesito – Preciso conversar.

Sim? – êxito – diga.

Silêncio. Estática. Sem lenço as lágrimas me escorrem ao chão. Elas vêm, em ondas. Eu não sou uma onda. Eu sou o mar. O mar. Imenso. Ordem. Onda. Chuá. Onda. Chuá. A arrebentação faz-me doerem as pontas dos dedos. Eu resisto. Agora é o gosto salgado que me oprime.

Não serei mais aquilo. Serei ira. Das profundezas, e a elas, vem uma voz, que ecoa e destrói as paredes de pedra da enseada. Os grãos de areia suplicam, aterrorizados. Oh não por favor oh não por favor. Rochas imensas caem sobre eles. Rochas pantagruélicas, transubstanciando-se em titãs do tamanho do mundo. Não do tamanho do mar.

Imagem do infinito: o mar. Sem bordas, sem praias, sem um porto seguro onde chegar. Sim, sim! Sou grandessíssimo. Titânico. Colossal. Me ergo e firo a tessitura da terra, para então cair no infinito.

Acordo. Nove nove nove. Seis seis seis. Um dois. Tuu. Tuu. Alô?

Tartamudeando, falo.

O tártaro é o Inferno. Lugar das almas penadas. O lago de fogo eterno. Imagem da eternidade: Cada grão de areia ou gota do oceano, pena dos pássaros ou pêlo dos mamíferos, escama de réptil ou folha das árvores. Cada quark, trinado de gaivota ou manhê. Num monte sem medida. Um pássaro, o corvo do caminho do norte. Vem, a cada giga-ano, levar uma partícula embora. Ao fim do monte, não se passou sequer um segundo da eternidade. Desespero eterno no tártaro.

Mude. Morte e vida cara e coroa começo e fim. Não há diferença. A destruição é a matéria que alimenta as estrelas. Mude. Não há mudança. Somos os mesmos. Somos a esmo. Somos, mesmo que. Mude. Ga-ga-ga.

Andei, andei, andei, andei. Nada nada nada nada encontrei. A estrada que vem do norte está plena de morte. A estrada que vem do oeste nada traz senão o ar marinho. Eu venho de lá? É por isso que almejo esse caminho? Não, não faz diferença. O oeste está fechado, do leste vem a peste, no norte há só morte e o sul é azul. Nenhuma rima ou canção é ouvida pelos lados do pôr-do-sol.

Falo. Não digo. Falo. O dom que recebemos daquele completo, repleto, inexorável, amoroso, divino, ouvidor, rápido Ser. Crescei-vos e multiplicai-vos. Ouvidor. Houve dor. O falo causou a dor. Você é! Eu faço. Ouço um grito, é a dor.

Acordo. Fiz um acordo com ele. Parei de gaguejar e disse: eu sou o mar. Oh não, por favor!
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terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Aguirre, a cólera dos deuses

O cinema de Werner Herzog é um cinema de conflito, o conflito entre o indivíduo e o meio. Seus protagonistas são todos sonhadores, loucos, solitários. Talvez por isso ele goste tanto de filmar em locações e tenha feito tantos filmes com Klaus Kinski, o ator mais desvairado de todos.

Em Aguirre, um de seus filmes mais célebres, Herzog leva sua equipe para a Amazônia a fim de filmar os sonhos e a loucura de um homem que fez tudo para levar adiante seus delírios de grandeza. Dom Lope de Aguirre (Kinski) é um oficial da expedição de Pizarro na América do Sul, empreendida para encontrar El Dorado. Ao se encontrarem isolados na floresta, os exploradores decidem enviar uma equipe rio abaixo para encontrar uma saída. Aguirre é escolhido para ser o segundo em comando, logo após Dom Pedro de Ursua (interpretado pelo cineasta brasileiro Ruy Guerra), e assim eles partem.

Ao longo da jornada, eles serão atacados por índios, abandonarão companheiros à própria sorte, e Aguirre conspirará para tomar o comando e dar à expedição os destinos que lhe parecerem mais apropriados. Por fim, todos acabarão loucos e mortos, e Aguirre terminará o filme solitário e destruído, contudo ainda acreditando que será o imperador do mundo.

Por essas características, pode-se traçar paralelos entre essa obra e o romance Moby Dick (do qual falarei mês que vem). Em ambas, um homem move um grupo de pessoas adiante para de alguma forma saciar uma obsessão monomaníaca. Entretanto, enquanto o capitão Acab é um homem atormentado por não conseguir se livrar de sua obsessão, Aguirre parece antes um louco que acredita estar enxergando o pote de ouro no fim do arco-íris.

Outro paralelo que pode ser traçado entre as obras é com relação ao conflito entre o homem e a natureza. Como já citado no início do texto, Herzog gosta do tema homem versus ambiente. Em Fitzcarraldo, o homem enfrenta a natureza com impulso civilizatório. Em O Enigma de Kaspar Hauser, por outro lado, o personagem-título confronta sua simplicidade/ingenuidade/ignorância com as idiossincrasias da civilização. Já em Aguirre, a Natureza continua sendo a inimiga, mas no caso se a enfrenta com ambição e loucura, sendo ela um símbolo do desconhecido, de uma fonte de riquezas de todo tipo, dos deuses.

O primeiro e o último planos denotam isso. Logo no ínicio, vemos de longe uma paisagem, e quando a câmera se aproxima revela uma minúscula fileira de homens descendo por uma montanha. Assim, Herzog mostra o homem diminuído ante a imensidão do mundo. No final do filme, Aguirre está erguido sozinho em seu barco, único sobrevivente e ainda assim lançando desafios e impropérios contra a natureza. Nesse momento, a câmera o fita mais de perto, mas depois se afasta e gira ao redor de Dom Lope, mostrando que por todos os lados só o que há é árvores e céu, que ele está sozinho, que a natureza o derrotou.

Entre esses dois momentos, vemos a civilização humana imiscuir-se no meio selvagem, com todas as suas violências, traições, ganâncias, delírios de grandeza, conspirações e (ai, os paradoxos) selvageria. E tudo isso personificado na imagem de Aguirre, o homem que se achava invencível, o que homem que se achava a cólera dos deuses, o homem que se achava Deus, mas acabou no fim derrotado e sozinho, esperando em silêncio a morte chegar.

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segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Melhores romances em inglês do século XX - Modern Library

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Lista da editora americana Modern Library com os 100 melhores romances em inglês do século XX segundo escolha dela mesma e de seus leitores. Alguns desses livros já foram comentados por aqui então vou somente repassar os links para vocês.

Segundo o conselho editorial, os melhores romances são:

1. Ulisses de James Joyce
2. O Grande Gatsby de F. Scott Fitzgerald
3. Um Retrato do Artista Quando Jovem de James Joyce
4. Lolita de Vladimir Nabokov
5. Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley
6. O Som e a Fúria de William Faulkner
7. Ardil-22 de Joseph Heller
8. O Zero e o Infinito de Arthur Koestler
9. Filhos e Amantes de D. H. Lawrence
10. As Vinhas da Ira de John Steinbeck

Para os leitores, por sua vez, os melhores romances são estes:

1. Quem é John Galt? de Ayn Rand
2. A Nascente de Ayn Rand
3. A Reconquista de L. Ron Hubbard
4. O Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien
5. O Sol É Para Todos de Harper Lee
6. 1984 de George Orwell
7. Anthem de Ayn Rand
8. We The Living de Ayn Rand
9. Missão Terra de L. Ron Hubbard
10. Fear de L. Ron Hubbard

A lista completa pode ser conferida em: http://www.randomhouse.com/modernlibrary/100bestnovels.html

Há também a lista dos livros de não-ficção: http://www.randomhouse.com/modernlibrary/100bestnonfiction.html

Finalmente, há um interessante link com as resenhas do The New York Times para vários dos livros citados na lista: http://www.nytimes.com/library/books/072098best-novels-list.html
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sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Citação de Sexta: Os Mortos

Foto: Bruna Pimenta

“Chega um momento da vida em que, entre todas as pessoas que conhecemos, os mortos são mais numerosos que os vivos. E a mente se recusa a aceitar outras fisionomias, outras expressões: em todas as faces novas que encontra, imprime os velhos desenhos, para cada uma descobre a máscara que melhor se adapta.”


- Italo Calvino, As Cidades Invisíveis

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quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Pílulas Cinematográficas, Edição 11: Especial Steven Spielberg

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De todos os cineastas de sua geração, Steven Spielberg é com certeza o mais popular e eclético. Falando somente de seus pares mais próximos, George Lucas ganhou e continua ganhando bilhões com Star Wars, mas seus outros filmes são bem mais anônimos, e Martin Scorsese e Francis Ford Coppola fazem um cinema mais adulto, com menos apelo junto às massas. Já Spielberg fez filmes de todos os tipos, para todas as idades, com as mais diversas qualidades e defeitos. Nessa edição das pílulas, falarei de três. Dois deles fazem parte dos dramas épicos sérios de Spielberg, e tem em comum pelo menos a longa duração. O outro é um filme diferente dos outros dois, mas talvez ainda mais emblemático que eles na carreira do cineasta.
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A Lista de Schindler (Schindler’s List, 1993): Baseado no romance de Thomas Keneally sobre o empresário alemão que salvou milhares de judeus do holocausto, esse longa deu a Spielberg o Oscar e é considerado por muitos sua obra-prima. Longo, belo e dramático, o filme é uma daquelas obras quase unânimes, realmente únicas. Não chorar ou ao menos se emocionar em alguns momentos, especialmente no final, é sinal de que não se tem muito apreço pelo ser humano. A Lista de Schindler permanece como um dos filmes mais importantes sobre o Holocausto, embora nunca se possa falar em registros “definitivos” desse episódio negro da história da humanidade. O que se pode dizer é que, além de drama histórico tocante e humano, o filme é um grito, um apelo pela identificação com o sofrimento alheio e pela postura ativa em defesa da vida, pois aquele que salva uma vida, salva todo o mundo.
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Contatos Imediatos do Terceiro Grau (Close Encounters of the Third Kind, 1977): Diferente dos outros filmes dessa lista, Contatos não é a adaptação de um romance. Por isso, é um projeto mais pessoal de Spielberg, e apresenta algumas idéias muito caras ao diretor. Longas em que os alienígenas são seres amistosos, buscando comunicação, e não predadores interestelares sedentos de sangue, eram uma raridade, mas Contatos entrou para a história como um desses filmes. Spielberg põe em prática aqui suas especialidades: pessoas comuns em situações extraordinárias, dramas familiares, e a utilização consciente dos efeitos especiais, que servem somente de escada para o verdadeiro encanto do filme. À medida que Roy fica mais obcecado por sua visão, Claude Lacombe descobre mais coisas sobre os avistamentos de OVNI’s e Gillian chega mais perto de encontrar seu filho, a tensão cresce, até culminar no espetacular e emocionante final, uma dessas cenas atemporais e cheias de significado e magia que fazem a sétima arte valer a pena.
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A Cor Púrpura (The Color Purple, 1985): Apaixonante. Difícil definir de outra forma essa outra obra-prima de Spielberg, e também o filme que eu mais gostei desses três das Pílulas. Como disse o crítico Roger Ebert, “não existe uma cena que não reflita o amor dessas pessoas por este filme”, e de fato, cada frame do longa pulsa, tamanho o sentimento que diretor, roteiristas, elenco, e o compositor da trilha sonora, Quincy Jones, depositaram nesta obra. Baseado no romance epistolar de Alice Walker, A Cor Púrpura retrata a vida de uma pessoa que era definida por todos os adjetivos ligados ao “elo fraco” da sociedade. Como diz um personagem do filme, Celie, a protagonista, é “preta, pobre e mulher”, e portanto não tem como se dar bem na vida. As passagens em que o filme retrata a opressão contra quem possui essas características são uma denúncia contundente contra os malditos machistas e racistas, e se encaixariam perfeitamente em qualquer filme denúncia. Porém, esse não é o caso aqui, A Cor Púrpura é uma história de seres humanos, e não de massas rotuladas. Ao contrário do que o começo do filme pode dar a entender, o enredo não conta uma seqüência de tragédias, mas sim a vida de alguém que, embora sofra muito, persiste sempre. As cenas finais do longa - desde a ceia de Ação de Graças, passando pelo coro da igreja, até chegar ao reencontro – são todas catárticas, e dão aquele aperto no coração que só quem conhece muito bem a alma humana, como Spielberg, pode proporcionar.
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quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Leituras: Dezembro de 2008

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Em dezembro, finalmente consegui ler um pouco mais do que vinha lendo nos últimos meses. Esse mês, li três grandes clássicos da literatura universal. O primeiro, uma obra ultramoderna, escrita pelo gênio que ditou algumas regras da atual literatura. O segundo, uma sátira feroz e irônica sobre a humanidade, escrita por um dos maiores satíricos. Em terceiro, finalmente, um envolvente romance de um grande autor inglês, pérola do período romântico.

As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino

Com freqüência, obras cuja interpretação é complicada possuem algum trecho chave, que serve ao menos para extrair o sentido essencial (ou superficial) delas. Com Cidades Invisíveis, não é diferente. O romance mais conhecido do italiano Italo Calvino é uma espécie de As Mil e Uma Noites da descrição, em que o maior viajante de todos os tempos, Marco Polo, dirigindo-se ao imperador dos tártaros, Kublai Khan, o ser mais poderoso da terra, discorre sobre as cidades do Império deste, dando-lhe o conhecimento que ele não pode obter, devido à extensão de seus domínios e à quantidade de seus deveres. Partindo daí, Calvino traça um painel com 55 descrições de cidades, divididas em onze temas, tais como “As cidades e a memória”, “As cidades e o desejo”, “As cidades e os mortos”, etc., tudo isso entremeado por trechos das conversas entre Polo e o Imperador, onde investigam o sentido da conversa que estão travando e de outras coisas mais. Num desses trechos, acontece o seguinte: “Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. – Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan. – A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco -, mas pela curva do arco que estas formam. Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: - Por que falar de pedras? Só o arco me interessa. Polo responde: - Sem pedras o arco não existe.” Eis aí o trecho referido no ínicio desse texto. Como já disse, ele não revela todo o sentido (para isso, só lendo o livro todo), mas é simbólico da natureza da obra. Ora, Cidades Invisíveis é um romance pós-moderno, fragmentado, hipertextual, formado por dezenas de partes que, entretanto, formam um todo poderoso e coeso, se cuidadosamente observado. O trecho supracitado explica essa característica, e dá margem a toda sorte de interpretações. De certa maneira, o próprio sentido do livro também é fragmentado e composto. Podemos extrair três ou quatro temas recorrentes tanto nas conversas de Marco e Kublai quanto nas descrições. Um deles, que eu considero secundário (alguns podem querem me tacar pedras por isso) é o das características negativas de algumas cidades, que espelham vários “dramas urbanos” das cidades modernas. Embora o livro fale de cidades, é ingenuidade achar que é realmente de cidades que ele está falando. Os outros temas, que considero mais importantes, são os seguintes, em ordem dos que mais me interessam: o primeiro e segundo, de certa forma, são o mesmo. Trata-se talvez do aspecto principal do livro, embora não seja o meu preferido. É a questão de abrir espaço, como proferida por Polo na célebre última sentença do livro, de extrair das coisas um sentido ao enxergar o mundo com outros olhos e encontrar aí um espaço para se expandir e tornar as coisas melhores. O outro tema, esse sim o que eu mais gosto, é o mais presente nas descrições das cidades, e adquire tamanha diversidade de formas que é preciso fazer uma lista para enunciá-lo. É uma questão recorrente na obra de Calvino, a da discrepância, do conflito, da relação entre o nome da coisa, a descrição da coisa, a memória que temos da coisa, o que desejamos da coisa, o olho com que vemos a coisa e a Coisa, entre o sonho, o símbolo, o mito, o pensamento, o discurso, a narrativa e a Realidade. Calvino fala, discursa, poetiza, divaga e faz mistério em cima desse tema, o que o torna extremamente atraente e profundo. Enfim, pouca coisa não é, esse é um livro para muitas interpretações. Mas, de qualquer maneira, só por existir e ser lido, já se pode dizer que As Cidades Invisíveis é um ponto que, no meio do inferno, não é inferno, e portanto se deve preservá-lo, e a partir dele, abrir espaço.

As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift:

Jonathan Swift, o “deão furioso”, foi um dos mais violentos satíricos que o mundo já viu. Munido de um visão afiadíssima em relação ao mundo, contudo sem ser amargurado, Swift erigiu em As Viagens de Gulliver uma obra que conseguiu a proeza de ser ao mesmo tempo uma sátira feroz da natureza humana e um livro bem-humorado, que anos depois acabou por se tornar, em sua versão resumida e suavizada, um clássico infantil. Lemuel Gulliver, cirurgião e pai de família, tem um apreço especial pelo mar. Assim, sai durante a vida em várias viagens, que o levam às terras mais estranhas. Em primeiro lugar, vai parar em Liliput, país onde as pessoas tem quinze centímetros de altura e parecem ser, à primeira vista, criaturas adoráveis, ainda que um pouco desconfiadas. O tempo revelará, porém, que elas são traidoras cruéis, capazes de fazer mal até a seus próprios heróis. Depois, Gulliver chega em Brobdingnag, onde os seres são gigantes, e tratam Gulliver como um brinquedo, um animal de estimação. Incomodado com o desprezo que lhe é dirigido, Gulliver parte daquele país. Depois, na terceira parte do livro, visita vários países e cidades, dos quais o mais ilustre é Laputa, a ilha voadora, onde os homens só sabem pensar em música e astronomia e suas mulheres fogem com as mais grotescas criaturas. Ele chega também em Glubbdubdribb, onde conversa com os mortos e descobre que a raça humana está cada vez pior, em Lagado, onde a Academia de Ciências só pesquisa idiotices, e em Luggnagg, terra de amaldiçoados imortais que vão se tornando cada vez mais degenerados à medida que os anos passam. Então, na quarta parte do livro, Gulliver se encontra no país dos Houyhnhnms, cavalos inteligentes e civilizados que “domesticaram” os Yahoos, seres bestiais e repulsivos que nada mais são que humanos em estado selvagem. Por fim, após ser obrigado a sair do país dos Houyhnhnms, Gulliver se torna um misantropo que tem nojo até da própria família. Com isso, Swift dá seu golpe de mestre. No fim do livro, Gulliver, que é o narrador, faz um discurso contra o orgulho humano, mas o fecha rogando que ninguém que possua “esse absurdo vício” (o orgulho) apareça diante dele. Ora, que sinal de orgulho seria maior que esse? Desse modo, Swift satiriza a própria ferramenta de que se havia utilizado para satirizar a humanidade. Após presenciar os costumes de todos os povos acima citados (que nada mais eram que paródias de pessoas e acontecimentos da época de Swift), e por fim observar o último estágio da degeneração humana, chegando até mesmo a usar roupas e objetos feitos das peles de yahoos (ou seja, de sua própria espécie), Gulliver se isola e torna-se ele mesmo um exemplo de tudo aquilo que julgava abominar. Usando-se desse artifício, Swift retroativamente suaviza todas as (pesadíssimas) críticas que havia feito ao longo do romance, e transforma seu livro em obra de gênio, revelando por fim seu verdadeiro discurso: o da valorização do ponto de vista. Não que a humanidade seja desse jeito, mas considerando-a desse ângulo é assim que ela irá parecer. Sofisticado ao último grau, e feito mesmo pra pensar muito depois de ler. Matéria-prima das mais densas para conversas, sejam elas filosóficas ou de botequim.

Grandes Esperanças, de Charles Dickens

Escritores românticos são sempre acusados de criar personagens rasos, caricaturais, exagerados, e colocá-los em situações irreais e exageradas usando para isso uma linguagem floreada e exagerada. Enfim, o supra-sumo do exagero. Embora tenha lastro na verdade, grande parte dessa concepção moderna do romantismo é exagerada, posto que, se tais obras não tivessem valor, não seriam obras-primas da literatura universal, maciçamente presentes no cânone da literatura. Dickens, pois, foi um escritor romântico, talvez o mais célebre romântico inglês. E, embora seu estilo seja sim floreado e exagerado, e haja situações e personagens caricatos e exagerados em seus romances, Dickens também possuía uma grande sensibilidade para o ser humano, e criou, ao menos em Grandes Esperanças, que foi seu único livro que li, uma grande variedade de personagens complexos e tocantes, capazes de dizer muito sobre a sociedade e a humanidade. O maior exemplo disso talvez seja Wemmick, retrato perfeito da confusão de identidades e personalidades tão presente na sociedade atual, mas já despontando na Inglaterra do século XIX. Além dele, Pip, Miss Havisham, Estella, Mr. Jaggers, todos são personagens com mais de um lado, mais de um rosto, mais de uma forma de reagir ao mundo. E, juntos, formam uma tocante e envolvente história, contada num estilo delicioso, ao mesmo tempo emocionante e cômico. Um “livrão”, sem dúvida, gostoso de ler e difícil de largar.
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terça-feira, 6 de janeiro de 2009

A Felicidade Não Se Compra

Muito se discute sobre quais seriam os critérios universais para avaliar a Arte, e o cinema não escapa disso. Sempre se pergunta onde mora a qualidade artística, o que faz de um filme bom e de outro ruim, e por que o gosto subjetivo muitas vezes não tem nada a ver com essa avaliação. Alguns gostam também de procurar um objetivo para o cinema, de saber para que ele serve, se o propósito é divertir, emocionar, refletir, fazer pensar, ou simplesmente existir como objeto de, hmm... apreciação artística.

Pois bem. Dentre os diretores ítalo-americanos a despontar em Hollywood, um dos mais adorados, embora menos conhecido pelo público brasileiro, foi Frank Capra. Capra fez filmes com os grandes atores da sua época, Cary Grant, Gary Cooper, Clark Gable e, especialmente, James Stewart. Não era um estilista, não usava grandes truques de câmera nem fazia tomadas belíssimas, mas na mesa de edição foi insuperável, criando montagens dinâmicas, envolventes e perfeitamente adequadas às suas histórias. Isso fez dele um dos maiores cineastas da história.

Nesse filme, sua obra mais célebre, em plena véspera de Natal um homem, George Bailey, resolve se suicidar, pois acredita valer mais vivo do que morto. Um anjo então é enviado para a terra, com o objetivo de salvá-lo, e a isso segue-se um flashback que toma quase todo o filme, contando a vida de George desde a infância até os eventos que o fizeram desejar a morte. Para tirar de sua cabeça que se ele morresse a vida das pessoas da cidade seria melhor, o anjo “realiza seu desejo”, e mostra a ele como as coisas teriam acontecido se ele não tivesse nascido.

É a obra máxima do otimismo, o que a fez ser colocada na primeira posição entre os filmes mais inspiradores de todos os tempos pelo American Film Institute. Entretanto, não é boba nem piegas, mas sim divertida e emocionante, pois todos os envolvidos com a produção fizeram seu trabalho de maneira esplendorosa. Claro, as coisas como acontecem na história só acontecem mesmo no cinema, isso é inegável, e apesar de descobrir uma lição muito valiosa no final do filme, George desistiu de seus sonhos. Mas quem se apega a esse tipo de coisa está só querendo ser chato, posto que o filme é uma obra do coração, e seus efeitos devem ser sentidos pelo coração, não pela mente, ou corre-se o risco de acontecer algum conflito de linguagens.

Quem, porém, se desligar desse tipo de pensamento (que não costuma acometer muita gente, só mesmo quem quer ver coisas desse tipo) irá descobrir de novo como a vida é simples, como viver vale a pena, e como o amor pelo próximo, em todas as suas formas – fraternal, romântico, caridoso, etc. -, é a maior riqueza do homem. Sim, são coisas que, ditas assim, todo mundo sabe, mas na arte os conceitos triviais se transformam em verdades concretas, em verdades sensíveis, cativantes, catárticas. E é pra isso, afinal, que o cinema serve, para isso que ele foi criado... nos incutir coisas – histórias, sentimentos, idéias. E só por ter servido de veículo a um filme tão especial como A Felicidade Não Se Compra, a sétima arte já cumpriu seu papel nesse mundo. Que venham os lucros!
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segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Os melhores filmes de 2008

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Em julho do ano passado fiz aqui no blog uma lista provisória com os melhores filmes que estrearam no Brasil em 2008. Agora, passados quase seis meses, posso dizer que pouco mudou na lista. Isso se deve principalmente ao fato de que os filmes que concorrem ao Oscar são lancados no começo do ano, e os meses de junho, julho e agosto são os mais prolíficos em bons blockbusters.


Assim, coloco aqui a lista "definitiva", embora não tenha visto muitos dos filmes considerados ótimos pela crítica em 2008. Junto aos itens, um pequeno comentário sobre cada filme, e no final os filmes potencialmente bons, que ainda precisam ser vistos por mim mas que desde já são recomendados em algum nível.

1. Sangue Negro, de Paul Thomas Anderson: Obra-prima moderna do cinema americano, Sangue Negro é um desses filmes que tende a cresce com o tempo e com novas interpretações.

2. WALL-E, de Andrew Stanton: Acharei uma pena se esta, que possivelmente é a melhor animação americana já feita, não for indicada ao Oscar de melhor filme. É um longa sensível e adorável, que você adora e não quer mais largar.

3. Batman - Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan: O retrato definitivo do Coringa já valeria o filme, mas há ainda a tensão, a ação, o drama, enfim, um Filmão, com "F"maiúsculo.

4. Onde Os Fracos Não Têm Vez, de Joel e Ethan Coen: Uma das obras máximas dos Coen, esta adaptação do romance de Cormac McCarthy merece todas as honras, assim como merece ser visto e revisto, para que com o tempo ser aperceba melhor seu significado.

5. Não Estou Lá, de Todd Haynes: Experimental e fragmentado, o filme é um prato cheio para os fãs do bardo moderno, mas também guarda muitas surpresas para os cinéfilos em geral.

6. Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, de Steven Spielberg: Parecia impossível, mas Spielberg conseguiu recuperar o clima e o tom das antigas aventuras do arqueólogo mais famoso do cinema.

7. Juno, de Jason Reitman: Filme indie típico em sua base, foi capaz porém de superar as armadilhas e lugares-comuns do gênero, transformando-se em um longa extremamente envolvente e tocante.

8. Homem de Ferro, de Jon Favreau: A dupla Favreau e Downey Jr. deu aos fãs de quadrinhos do mundo todo um presentão, que instantaneamente se tornou referência para os filmes adaptados das histórias em quadrinhos.

9. Cloverfield, de Matt Reeves: Retrato tenso e frenético da modernidade, com suas câmeras digitais e YouTube's da vida, Cloverfield (assim como o Batman) criou um fênomeno cultural que foi muito além das telas de cinema.

10. Trovão Tropical, de Ben Stiller: No lugar de Desejo e Reparação, que continua sendo um dos melhores do ano passado, coloco aqui esta espetacular comédia que por sua mistura de nonsense e paródia me conquistou, embora tenha deixado muita gente decepcionada.

Além desses, cito o Desejo e Reparação renegado nessa nova lista, as comédias ótimas Segurando as Pontas, que infelizmente não foi lançado nos cinemas por aqui, Vicky Cristina Barcelona, filme divertidíssimo de Woody Allen, e Queime Depois de Ler, hilariante obra dos Coen, o competente faroeste Os Indomáveis, o terror O Orfanato, o cruel (no "bom" sentido) O Nevoeiro e o musical Sweeney Todd, último filme do Tim Burton. Às escuras, falo dos que acho que valem a pena: Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto, do Sidney Lumet, Ensaio Sobre a Cegueira, do Fernando Meirelles, Linha de Passe, do Walter Salles e da Daniela Thomas, O Escafandro e a Borboleta, de Julian Schnabel e Senhores do Crime, de David Cronenberg.

Pois então, é isso. 2008 foi um ótimo ano, cinematograficamente falando, e espero que 2009 seja ainda melhor. Esperemos, e veremos!
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