quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A Série - S01E10

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Dizem que a coisa mais importante numa série de TV são os roteiristas, mas na verdade os criadores principais é que recebem todos os louros, enquanto o vasto time de co-roteiristas, que mesmo não inventando histórias faz a coisa acontecer escrevendo diálogos e organizando cenas, é muito pouco lembrado. No caso da Série os Co-Roteiristas são quatro, quatro homens de família, casados e felizes, que trabalham juntos já há um bom tempo entre Nós.

Não são todos os dias que eles vêm ao estúdio, mas quando vêm estão sempre do mesmo jeito. Vestidos elegantemente, de fraque e cartola (as gravatas borboleta enfeitam rigorosamente seus colarinhos), eles entram em fila, batendo suas bengalas no chão do galpão e rumando sorridentes para o Departamento de Roteiro.

A primeira reunião que eles tiveram com o Autor se deu ali, em volta de uma mesa com um tampo de mogno largo, logo que Eles designaram o galpão perto de Wild Sierra para a gravação da Série. Os quatro entraram em fila pela porta pontualmente no horário combinado, o primeiro virou para a direita, o segundo para a esquerda, o terceiro para a direita, o quarto para a esquerda, e sentaram-se dos dois lados da mesa oval, o primeiro (que na verdade se chama Ringo) e o terceiro (que na verdade se chama Django) de um lado, e o segundo (que na verdade se chama Giuliano) e o quarto (que na verdade se chama Clint) do outro.

Vinte minutos depois, o Autor (que na verdade se chama Martin Madusky) apareceu, vestindo um sobretudo preto e óculos escuros, e carregando uma pasta em uma das mãos. Ele sentou, colocou a pasta sobre a mesa e tirou os óculos, revelando seus olhos apertados e vermelhos. Pigarreando, disse:

- Erhm, nós estamos aqui para que eu apresente a vocês o que a série vai ser, e para combinarmos algumas coisas que deverão acontecer agora, os produtores já falaram com vocês sobre isso, eu acho...

Ringo, o primeiro, tomou a palavra.

- Ahm, bom dia, você é Martin Madusky, eu presumo. Muito prazer, meu nome é Ringo Gillespie, e esses – ele disse, apontando para o segundo, o quarto e o terceiro, sucessivamente – são Giuliano Ellington, Clint Parker e Django Reinhardt. Nós somos os co-roteiristas da sua série.

- Sim, erhm, muito prazer, é para isso que estamos aqui, sim.

Ringo sorriu. Madusky ficou em silêncio, depois falou.

- Não sei muito sobre trabalho com co-roteiristas, é a primeira que eu trabalho com eles, erhm, vocês. Eu escrevi “The Brotherhood of Heaven and Hell” sozinho. Mas me disseram que o padrão desse tipo de trabalho é eu dizer para vocês tudo sobre minhas idéias para que vocês possam executá-las o mais perfeitamente possível.

Martin foi falando cada vez mais baixo até sua voz ser engolida pelo silêncio. Percebeu que enquanto falava os outros não manifestavam nenhum tipo de reação. Ringo ficou sorrindo e os outros permaneceram quietos, imóveis e sem expressão, somente os olhos voltados em direção a ele. Quando ele terminou de falar, manteve a boca aberta, prestes a proferir algum outro discurso, mas não disse nada. Após um momento de quietude absoluta, Ringo alargou seu sorriso e falou, pontuando as sílabas:

- Senhor, permite-nos?...

Após o que ele levantou-se de um salto e, apontando para Madusky, começou a cantar.

Você parece precisar de algo em especial
Pois agora eu vou cantar pra subir sua moral!
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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

A Série - S01E09

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Apresentação sucinta do Brilhante Elenco de Coadjuvantes:

ROY BUFFALO (Homem de uns quarenta anos), ator de longa carreira, 30 anos da última vez que contei, perfeitamente alocável na “regra Stanton-Walsh”, segundo a qual nenhum filme com Harry Dean Stanton ou M. Emmet Walsh em papéis de coadjuvante pode ser ruim, no caso nenhum filme com Roy Buffalo (alterego de Ronald Oxfield, Jr.), portanto “regra Stanton-Walsh-Buffalo”. “Estreou na frente das câmeras em ‘Cavalgar das Estações’ (Mrs. Winnipig no original), no papel do menino que oferece seu brownie com chantili para a Sra. Winnipig, após o que atuou em algumas propagandas para a televisão e dizendo uma ou duas falas em episódios de telenovela. Depois disso ele viajou com sua família pelo mundo - seu pai era diplomata – passando algum tempo na França, na Argélia e no Camboja. Voltando de lá co-estrelou por 6 anos a série ‘Carlos: Matador’ (Hitman Carlos), em que interpretava o jovem assistente e pupilo do personagem do grande astro Mexicano Carlos Naranja-Lima. Sua volta ao cinema se deu com o papel do médico em ‘Rotina Avassaladora’ (Days at the Hospital), que é forçado a ajudar o protagonista, um paciente terminal, a reencontrar sentido na vida. Após esse retorno ele atuou em diversos filmes de grandes diretores do passado e contemporâneos, até ser chamado a atuar na nova série do criador de ‘The Brotherhood of Heaven and Hell’, Martin Madusky.” (Fonte: Press-release)

TINA TORNADO (Os homens dizem Aaahh, as mulheres dizem Hmmm), atriz pornô de formação, depois cristã renascida, enfim atriz competente de (no começo) telenovelas e (atualmente) séries semanais. Falemos mais dela num futuro qualquer.

JUSTIN CASE (O topete loiro tem uns cinco dedos de altura, a pele e os olhos estão sempre brilhando), que não é tão charmoso quanto dizem as pré-, pós- e adolescentes desvairadas, nem tão gay quanto afirmam seus namorados e amigos. De fato, passou bem da carreira infantil, como uma das crianças do programa de “Birno, o tricerátops amarelo”, pela pré-adolescente, como um dos irmãos de “Enzo e Romeo”, até a teen, onde agora se encontra, como ídolo midialógico capaz de acelerar o despertar hormonal das pubescentes.

LIA LISPECK (Esses olhos sonhadores, perdidos no nada, que me dão ganas de... Espere, eu falei isso?), “cantriz e atora”, uma espécie de contraparte feminina de Justin Case conquanto mais polivalente, dado sua habilidade de canto e com o violão. Seu álbum de baladas folk, lançado mais ou menos na época de uma versão para o cinema da série de TV que ela estrelava, “Garotas da Praia” (Girls from Dalmoly County Bay), embora não seja exatamente audível, tem algumas notas interessantes que, recombinadas, poderiam constituir um grande sucesso futuro.
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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A Série - S01E08

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MiNHA DEUsa, estrela solitária de todas as telas, quer as de cinema quer as da televisão, única real virtude de todo o exército de rostos e corpos e pérfidos artifícios, único ser verdadeiro deles todos.

Conheço a história de sua vida parte por parte, não porque ela foi esmiuçada em “Flor de Verão”, sua primeira biografia, que a tratou bem mas não conseguiu expressar sua Verdade; não pelas falsas acusações contra ela empreendidas em sua segunda biografia, “Estrela Opaca”, cujo venenoso autor tem vendido até a alma para pagar as indenizações por danos morais a minha deusa; nem mesmo pela autobiografia que ela com tanta bondade escreveu, “Samantha Simplesmente”, cujos francos depoimentos desmentem todas as acusações do outro livreco insidioso; mas tão somente porque a história de Samantha Sugarcane está impressa em cada frame projetado pelo homem da sala iluminada sobre a tela branca, para o deleite dos mortais que se alinham para vê-lA nas poltronas da sala escura.

O rosto dEla transparece o que ela é, seus gestos exprimem verdades indizíveis, sua voz sussurra segredos sagrados.

Eu a vejo nas fotos das revistas de celebridades, cujo papel pobre e má impressão não fazem jus à sua beleza (e quão perigosas são essas revistas, cheias de boatos e mentiras!).

Eu a vejo na telinha da televisão, nas entrevistas generosas que ela concede para os repórteres de programas de fofocas, nos programas de auditório que ela tão assiduamente freqüenta, para o deleite de seus adoradores, nas séries, minisséries, novelas e telefilmes em que ela atua, tão francamente sendo ela mesma por meio de ser sua personagem.

Eu a vejo ao vivo, olhos nos olhos, sempre que possível. Me meto no meio de seus outros fiéis, estendo os braços, grito, e frequentemente a toco, num momento de êxtase. Ela emite um brilho suave natural, e já tenho centenas de autógrafos com sua letra.

Eu a vejo, e ai, não há maior êxtase que esse, nem momento mais sublime e indizível, na grande tela do cinema. A música ambiente para, as luzes se apagam, os créditos rolam desinteressantes, paisagens, rostos, e então ela surge, em toda sua glória, uma visão divina, uma rosa flamejante enorme sorrindo para mim, seu perfeito rosto aumentado impossivelmente até ocupar toda a tela.

Minha deusa, como eu te desejo e adoro! Espero um dia poder provar do seu melaço.
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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A Série - S01E07

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Olá tudo bem nome é John. Claro que eu poderia me valer da famosa “fórmula James Bond” e me apresentar falando meu sobrenome, depois meu nome e sobrenome juntos. Mas eu sou proibido de falar meu sobrenome, por isso não falo. Sobrenome, sobrenome, sobrenome. Ninguém o conhece, só Eles, que assinam meus contratos. O resto das pessoas me conhece por John B., o diretor de “Dois Caminhos para Bortelega”, que é o título mais decente para essa Série que fui contratado para dirigir. Claro que o autor, Martin M., tinha outros títulos em mente, assim como eu cheguei a sugerir um ou dois além desse que eu já citei. Mas Eles resolveram por [censurado], que é uma bosta de título, convenhamos.

Sempre me perguntam por que eu não posso falar meu sobrenome, então eu já tenho meio que uma história pronta. Você ainda não perguntou, mas como eu já tenho meio que uma história pronta, não custa nada contar.

Você provavelmente conhece Eles, e Eles na verdade são sempre muito parecidos. Mas cada Emissora e Estúdio tem seus Eles, a despeito do que possa parecer. A questão é que se cada um dEles resolvesse agir de um jeito, Eles iriam perder força, por isso Eles têm seus próprios Eles, que na verdade são Eles mesmos, só que juntados numa coisa só. Essa Coisa são os Eles de tudo que existe, e a Coisa tem várias Coisas-menores ligadas a ela. Uma dessas Coisas-menores é nossa indústria de, como chama mesmo?, Cinema e TV!, e os Eles dessa coisa-menor, juntos com os Eles da Coisa, que na verdade são os mesmos Eles, criaram algumas regras para essa coisa-menor, que são regras que têm tudo a ver com as regras da Coisa.

Uma dessas regras é a de que diretores com o mesmo nome (especialmente diretores chamados John) não podem ter sobrenomes começados com a mesma letra, para não confundir o público. Por isso, existe uma Lista, elaborada por Eles, a Lista Secreta de Johns, que lista o diretor John de cada letra. Assim, no topo da lista há o John A..., e no fim o John Z..., e no meio todos os outros. As concessões feitas por eles são as seguintes: Johns de épocas diferentes podem tem sobrenomes iniciados com a mesma letra, assim como Johns de mídias diferentes. Frankenheimer, que foi um diretor sobretudo televisivo, podia conviver na indústria com Ford, que era mais antigo e cinematográfico. Ainda assim, frequentemente há disputa entre Johns pelo controle da primeira letra do sobrenome. Frankenheimer, quando decidiu dirigir filmes de cinema, desafiou Ford para uma luta no Ringue Lamacento dos Johns, mas, por cima de seus óculos redondos, o bom e velho Ford fustigou-o com o olhar e se negou a praticar tal baixeza. Foi aí que Eles decidiram ser mais flexíveis quanto à temporalidade dos diretores, e resolveram que somente Johns contemporâneos não poderiam ter o sobrenome começado com uma letra repetida. Isso livrou Cassavetes e Carpenter de lutarem na lama, assim como Huston e Hughes. Mas não livrou a mim.

Comecei a dirigir, produzido por Ruther Cardigan, no meio dos anos 60 (anos de amor e barato), na mesma época em que Boorman solidificava sua carreira. Como ele era um estrangeiro desbravador da indústria-do-cinema de NGP, e eu somente um dos muitos aspirantes a diretor patrocinados por Cardigan, desafiei-o para uma luta no Ringue Lamacento dos Johns. Essas lutas costumam seguir um padrão muito rígido, ditado por um dos Apêndices da Lista Secreta dos Johns. Os dois diretores devem estar usando somente meias brancas e uma sunga-calção de borracha, e deve haver somente uma fonte de luz no recinto, ou seja, a lâmpada da luminária que pende do teto. A luta se dá dentro de uma piscina de dois mil litros repleta de lama (i.e., água com terra) sem impurezas. O raio de um metro da borda da piscina deve permanecer vazio, e após este a platéia pode se amontoar à vontade. A posição inicial é os dois oponentes com as mãos nos ombros do outro (a menos que um deles não tenha um ou mais braços, nesse caso o candidato com o maior número de braços leva o sobrenome), e ganha quem mantiver o outro com a cara sob a lama por um minuto primeiro, embora a luta possa, segundo o Apêndice, continuar após isso.

Como atesta o fato de Boorman ostentar vergonhosamente seu sobrenome por aí, enquanto eu preciso me esconder atrás desse enigmático e pobre John B., eu fui derrotado. Dei uma bela surra nele, é verdade, mas antes disso ele me manteve sob a lama tempo suficiente para garantir a vitória. Desse modo, hoje eu ando por aí sem sobrenome, somente uma letra que pode levar a um número quase infinito de caminhos, até os mais idiotas, tipo “Bostão” ou “Bastardo”, só porque o Boorman enfiou minha cara na lama durante um minuto. Merda. Odeio lembrar essa história, mas fazer o que, é a Verdade. Pelo menos meus filmes são melhores que os dele.

Addendum: Esqueci de dizer que a Lista Secreta de Johns só contempla os diretores de Nosso Grande País, ou que trabalharam sobretudo por aqui, por isso caras como Woo não precisam competir com Waters; e obviamente não há nenhum conflito em haver cineastas chamados João, Giovani, Juan, Ivan ou mesmo o ubíquo Jean, que domina a Gália com seus Epstein, Renoir, Cocteau, Vigo, Luc Godard, etc., ad infinitum, e provavelmente tem sua própria Lista de Controle.
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