quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Taxi Driver

Poucos conseguiram traduzir tantos sentimentos de época e lugar em um mesmo personagem cinematográfico como a dupla Robert De Niro e Martin Scorsese em Taxi Driver. Travis Bickle, protagonista do filme de 1975, é um acúmulo de tudo que o século XX havia produzido de ruim até então: paranóico, obsessivo, anti-social e reacionário.

O crescimento vertiginoso das cidades e o baby boom americano após a Segunda Guerra haviam produzido nas metrópoles terras da solidão, onde o homem pode se isolar em seu apartamento e sobreviver de maneira quase auto-suficiente (algo que só se agravou com o surgimento da internet e das compras por entrega).

Paralelo a isso, a revolução cultural da década de 60 produziu coisas inesperadas. Com efeito, nem todos os cidadãos eram revolucionários: aliás, só uma minoria era, os universitários e intelectuais insatisfeitos. Fora eles, havia uma multidão de pessoas que não havia lutado por nada mas viram os novos hábitos serem forçados goela abaixo. Se mesmo um autêntico revolucionário como Jack Kerouac (que apesar de tudo era um conservador) terminou a vida isolado e paranóico, quanto mais um membro da plebe, um cidadão que vê impotente tudo que ele conhece mudar diante dos seus olhos.

Assim é Travis Bickle: vindo de uma cidade do interior, vive em Nova Iorque sem amigos ou mesmo conhecidos. Tem insônia e, por isso, resolve virar motorista de táxi, para poder tornar suas noites mais produtivas. Mas, enquanto passeia pelas ruas da cidade, só o que faz é se lamentar pela escória que toma as ruas, as prostitutas, cafetões e viciados que exibem sem pudor suas atitudes mais íntimas e (segundo a visão de Bickle, ao menos) detestáveis. É um homem, como dito acima, paranóico e reacionário, sempre encarando as pessoas com os olhos esbugalhados sem confiar em ninguém.

Em suas andanças, Travis acabará conhecendo duas mulheres, que orientarão suas atitudes: uma delas, Betsy, é uma mulher linda e bem sucedida, que trabalha de campanha de um senador para a presidência. A outra, Íris, é uma menina de 13, 14 anos, prostituta. As duas, cada a uma a seu modo, são produtos da Women’s Lib, a libertação feminina, ocorrida na década de 60. Betsy é a mulher que pode trabalhar e produzir seu próprio sustento, senhora de si e de seu mundo. Íris, por outros lado, é a menina que acha que não precisa estudar, foge de casa, e acaba trabalhando para um cafetão nas ruas de Nova Iorque.

Travis, apesar de sua repulsa pelas conseqüências da revolução sexual, sente uma atração por ambas. Betsy é a sua chance de se integrar ao mundo novaiorquino, uma paixão possível, uma âncora num mundo mais consistente, menos solitário. Já Íris é sua pequena obsessão, um incômodo que aparece aos poucos, vai crescendo, até culminar no apoteótico final. Sua chance de redenção.

Travis tenta, de fato, escolher o lado bom da revolução, mas sua loucura o impede: ele se aproxima de Betsy, ela gosta dele, eles combinam de sair. Mas, ao invés de levá-la a um restaurante ou coisa que o valha, Travis a leva ao cinema pornô, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Transtornada, Betsy o abandona, retirando a muleta em que ele apoiara sua psicose nos últimos tempos.

E a partir daí, essa psicose só cresce: ele decide se tornar um vingador, considera-se o homem solitário de Deus, e sua missão é acabar com a vida do candidato à presidência, aquele mesmo, para quem Betsy trabalhava. Ao mesmo tempo, testa uma aproximação com o lado ruim da revolução, conhece Íris, tenta convencê-la de que a vida que ela leva é ruim, que ela deve ir para casa. Ela diz que ama seu cafetão, que ele é seu marido, mas ele acaba convencendo-a, de certa forma. Promete que dará dinheiro para ela voltar para casa, e que tudo ficará bem.

Mas, apesar desse exterior solidário, um monstro rosna sobre a superfície: o que Travis deseja é a expiação. Assim, faz uma pesada preparação física, compra armas, fala sozinho em frente ao espelho: é tudo parte do treinamento para sua missão. Quando chega o grande dia, raspa o cabelo em forma de moicano, e vai até o comício do senador, decidido a matá-lo. Sua missão, contudo, falha. Ele é lento, não consegue sequer sacar a arma, e acaba tendo que fugir dos seguranças.

Mais uma vez, a história se repete: ele não conseguiu matar o custódio da mulher-símbolo do lado bom da revolução. Decide fazer o mesmo, então, com o custódio do lado-ruim. Numa cena tensa e climática, Travis aborda o cafetão de Íris, o alveja, invade o prédio onde ela prestava seus “serviços”, mata o contador, e termina a carnificina atirando em um cliente. Depois, só o que vemos são a multidão, os policiais e os médicos, até que Travis acorda em um hospital e conhecemos sua vida após o massacre.

O final de Taxi Driver é um dos mais famosos da história do cinema, e pode ser interpretado sob diferentes óticas. Essa característica é um dos motivos que fazem a obra-prima de Scorsese ser considerada um dos maiores filmes de todos os tempos.

Uma nas abordagens é a niilista-redentora. A redenção é um tema comum de Scorsese, e aqui ela aparece quando Travis faz o massacre para se redimir de suas loucuras, e para curar os males que ele achava intoleráveis. É preciso destruir tudo para se construir algo novo. Assim, depois do massacre, ele é louvado como herói pela mídia, alvo dos mais sinceros agradecimentos dos pais de Íris, torna-se amigo dos outros taxistas, e até recebe em seu táxi a visita de Betsy, que parece querer uma reaproximação.

Contudo, essa interpretação um tanto quanto retilínea parece não casar com o resto do filme, pesado e denso. O fato é: como a mídia pode chamar de herói um doido como ele? Poucas horas antes de “salvar” Íris, ele quase se tornara o assassino do próximo presidente dos Estados Unidos. Por sua própria fraqueza (e não força), ele deixou de se tornar um monstro massacrado pela mídia para se tornar o herói da nação, um modelo de cidadão. Além disso, nada garante que debaixo da aparente nova amabilidade de Travis não continue se escondendo um louco psicótico. A linha é muito fina, muito tênue. Quem sabe se, num outro momento de solidão extrema, Travis não tentará novamente matar o presidente?

A última interpretação é a mais sutil de todas, mas tão válida quanto as outras. Postula, simplesmente, que tudo que acontece após o massacre não passa da imaginação e dos desejos de Travis no momento de sua morte. Ele não teria sobrevivido ao massacre, mas morrido ali mesmo e, em seus últimos segundos de vida, imaginado como seria louvado e adorado após tudo aquilo, enfim: mais um sintoma de sua loucura.

Bem: mesmo após falar um bocado, sinto que não dei conta de toda a complexidade do filme. De fato, é uma característica das grandes obras de arte: seus temas são inesgotáveis. Esse texto fica, porém, como um incentivo: para assistir ao filme e produzir novas interpretações, para enriquecer o entendimento não só sobre esse filme em especial, mas sobre o próprio ser humano e o mundo em que vive.
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