sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Citação de Sexta: Contemplai as minhas obras, ó poderosos...


“I met a traveller from an antique land
Who said:—Two vast and trunkless legs of stone

Stand in the desert. Near them on the sand,

Half sunk, a shatter'd visage lies, whose frown


And wrinkled lip and sneer of cold command
Tell that its sculptor well those passions read

Which yet survive, stamp'd on these lifeless things,

The hand that mock'd them and the heart that fed.

And on the pedestal these words appear:

'My name is Ozymandias, king of kings:

Look on my works, ye mighty, and despair!’


Nothing beside remains: round the decay

Of that colossal wreck, boundless and bare,

The lone and level sands stretch far away.”

- Percy Bysshe Shelley, Ozymandias
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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O Informante

O mundo é muito mais complexo do que supõem os idealismos, e está regido por forças às vezes imperceptíveis que não conhecemos. Assim nos ensina Michael Mann em um de seus grandes filmes, O Informante. O épico de quase três horas sobre o cientista demitido que tem informações importantes sobre a indústria do cigarro e o jornalista que luta para veicular essas informações é soberbo, um fantástico filme com tudo que o tema pode oferecer.

O Informante é, pois, ultradiversificado, no sentido em que não se detém em um determinado aspecto do enredo, mas expande suas aspirações e, mais importante, as preenche por completo. O longa é dividido em duas partes. A primeira é focada em Jeffrey Wigand (Russel Crowe), o cientista que trabalhava para uma empresa de tabaco, e seus conflitos sobre se deve ou não contar o que sabe, a despeito das conseqüências. A segunda é focada em Lowell Bergman (Al Pacino), respeitado produtor do programa 60 Minutes, e na sua luta para que a entrevista de Wigand, após ser gravada, vá ao ar.

O enredo é cheio de acontecimentos e detalhes, mas a mão de Mann impede que o filme se torne confuso ou chato. Ao imprimir a dramaticidade e o ritmo certos para cada cena, ele constrói um thriller, uma obra em que a tensão fica nas alturas a maior parte do tempo. No entanto, o talento do diretor e dos roteiristas (Eric Roth, de Forrest Gump, e o próprio Mann) impede que O Informante se resuma a isso, a um thriller. Sem perder o elemento da tensão, temos várias passagens em que o psicológico dos personagens é aprofundado, e acompanhamos de perto os conflitos, medos e erros tanto de Wigand quanto de Bergman. O cientista, por exemplo, só resolve contar tudo após ser demitido. O jornalista, por sua vez, embora crie a ilusão de que a decisão de tudo está nas mãos de Wigand, manipula as emoções e valores do cientista para que ele fale. Desse modo, mesmo os “heróis” da vez são vistos não como santos, mas como pessoas reais, que nem sempre fazem a coisa certa pelo motivo mais louvável, ou da maneira mais correta.

Além disso, há a velha história das verdadeiras forças que movem o mundo. Ou da verdadeira força que o faz, desde sempre, e que todos nós com certeza conhecemos muito bem. Sem recair nas armadilhas do vilanismo ou do preto-e-branco, O Informante expõe os mecanismos, cuja matéria prima é o dinheiro, que impedem as informações de vir à público, que tolhem a justiça, que fazem mesmo os mais valorosos e audaciosos jornalistas pensar duas vezes antes de embarcar em um desafio a uma grande corporação. Não se trata de suborno e corrupção, e sim das armas que alguém abastado possui para se proteger e atacar os menos providos que o desafiarem.

Denso e eletrizante, O Informante é uma obra moderna, e essencial para compreender o “mundo em que vivemos”.
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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

A Roda #12 - Coincidências, Parábolas e o Universo


por Lobato Légio

Ontem, vejamos... Sim, ontem. Foi ontem que, após caminhar por páginas e horas de leituras quase atentas, um círculo se fechou sobre mim. Ontem, terça-feira de Carnaval, eu, lendo um grande livro, colosso a ser escalado pelos amantes das letras, deparei-me com uma coincidência inegável. Certas coincidências são contestáveis, é preciso exagerar muito para enxergá-las. Algumas são uma questão de interpretação: tanto se pode dizê-las coincidências supremas como dois fatos sem relação. Outras, porém, e é dessas que falo, são tão claras em sua relação que paradoxalmente tornam-se obscuras, inexplicáveis, e causam assombro. Ontem, enfim, vivi uma dessas coincidências. No momento a que me refiro, lia o último trecho do quinto capítulo do supracitado grande livro, quando me dei conta de que aquele capítulo se passava na noite de uma terça-feira de carnaval. Ora, aquele que leu até aqui se recorda, com certeza, de que eu lia esse mesmo trecho, eis a coincidência, na noite de uma terça-feira de Carnaval. Sem premeditação alguma, portanto, incidiram, concomitantemente, em meu espírito, dois espaço-e-tempo diferentes, o espaço-e-tempo exterior a mim e aquele do livro que entrava por meus olhos. Sem premeditação, repito, ou previsão possível, aqueles dois ciclos temporais se tocaram, produzindo uma coincidência.

Mas que forma tem uma coincidência no Universo? Digo, se o Mundo fosse composto de símbolos, que símbolo representaria a Coincidência? Qual seria seu desenho? Para encontrar a resposta, imagine o gráfico que descreve uma equação de segundo grau, e retire o plano cartesiano: aí tens a figura da Coincidência. Uma meia parábola, duas linhas que vem do infinito mas estão predestinadas a se encontrar. Não, não são retas paralelas que súbitos alteram seu curso, não. São caminho que seguem, constantes, seu tracejado inescapável, o trajeto que leva a um único destino: a incidência concomitante no mesmo ponto.

E se uma meia parábola é uma coincidência, que será a parábola inteira? Uma parábola inteira é um conto moral, de significado ao mesmo tempo flagrante e misterioso, uma história freqüentemente recheada de grande sabedoria, que pretende expressar uma maneira de ser e de se comportar frente ao mundo. Ora, se metade da parábola é uma coincidência, a incidência concomitante de personagens, acontecimentos, componentes do cenário, estados físicos e psicológicos e integrantes imateriais, contra todas as expectativas, no mesmo instante simbólico, a outra metade é o significado que essa união, essa coincidência adquire. A união de uma coincidência e seu significado: eis a parábola inteira.

Destarte, é razoável supor que, se a parábola simbólica apresenta tal aspecto, uma outra parábola, tão imaginária quanto, também apresente. Falo das parábolas celestiais, os trajetos que os corpos celestes percorrem no espaço. Essas parábolas compõem o Universo e, à maneira fractal, são a imagem reduzida de como o Todo do Universo, a soma de todas as parábolas, se apresenta. As parábolas do céu possuem, como as simbólicas, dois centros, e esses centros, tanto numa quanto noutra são opostos, posto que um é “material”, sólido, e o outro é imaterial, ou mesmo vazio, mas só à primeira vista. Pois quando vemos o Sol que se ergue num dos centros da parábola que nossa terra-mãe, a Terra em si, percorre todos os anos, nos espantamos, por seu brilho e solidez que mal podem ser contemplados, tamanhos eles se apresentam. Mas, ao dirigir os olhos para o outro centro, e encontrá-lo vazio, desdenhamos dele, e chegamos mesmo a considerá-lo nulo, quando na verdade deveríamos pensar nele, e ser curiosos a respeito, e tentar descobrir seu papel. E ao fazê-lo, acharíamos sensato considerar que não é porque não vemos nada ali que não há nada de fato. Desse modo, com a mente limpa de julgamentos apressados, seríamos capazes de sentir o que de fato há no segundo centro da parábola, pois da mesma maneira que, ao fechar os olhos e voltá-los para o sol, somos capazes de sentir sua presença, ao abrir os olhos e voltá-los para o segundo centro, seremos capazes de perceber que ele está ali. Assim é a parábola: o Sol, a Coincidência, esses são incontornáveis. Mas o Significado, o Segundo Centro, esses precisam ser buscados, pois se mesmo de olhos abertos eles não se apresentam facilmente, que dirá de olhos fechados, virados para dentro, voltados para a escuridão que lá reside.
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terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Onde Começa o Inferno

Geralmente, quando escrevo uma crítica, procuro enxergar o que o filme oferece de texto, contexto e simbologia para extrair um sentido dos acontecimentos, falas e personagens. Isso nem sempre é fácil, posto que muitos filmes não tem essa característica de expressão de idéias muito marcante. Que dizer então do cinema de Howard Hawks, mítico diretor estadunidense que disse “Nunca fiz nenhum filme com mensagem e espero nunca fazer”? Obviamente, “mensagem” é bem diferente de “sentido”, mas o objetivo de Hawks na direção era contar uma boa história, e isso sempre ficou bem claro.

Essa característica se reflete no próprio estilo do cineasta, que era, praticamente, não ter “estilo”. Mas isso seria uma bobagem de se dizer, visto que sua obra é muito marcante e própria, e possui sim a marca de seu próprio estilo de fazer as coisas. O que ocorre é que ele tentava contar suas histórias de maneira simples, sem um estilo visual marcante ou rebuscado. E isso ele fazia muito bem, o que o credencia entre os grandes cineastas de todos os tempos.

Onde Começa o Inferno é, pois, um filme fantástico. O título brasileiro, embora soe maravilhosamente, não tem lá muito a ver com a história do filme, o que de resto se tornou clássico nos títulos de faroeste (e de outros tipos de filme, também) no Brasil. O título original (Rio Bravo), embora mais simples, é direto e eficiente: na cidadezinha de Rio Bravo, Joe Burdette se envolve numa confusão e acaba matando um homem desarmado. O xerife local, John T. Chance (John Wayne, em mais um papel memorável) o prende na delegacia, à espera do delegado regional passar e levar o criminoso para a forca. O problema é que o irmão de Joe, Nathan, é um homem rico e poderoso, cheio de pistoleiros contratados, que fará de tudo para libertar o irmão. E o problema maior é que, para defender a cidade e manter Joe preso, Chance conta com apenas um pequeno grupo de ajudantes, quais sejam: Dude (Dean Martin, numa excelente atuação dramática), antigo auxiliar de xerife que, após fugir com uma mulher, volta só e desolado, e torna-se um bêbado; Stumpy (Walter Brennan, vencedor de três Oscar de melhor ator coadjuvante, simplesmente espetacular no papel, que por si só já é ótimo), um velho resmungão e irascível que acaba funcionando como principal personagem cômico do filme; Colorado (Ricky Nelson), um jovem pistoleiro que não tem muita vontade de se envolver mas acaba ajudando muito o xerife; e Feathers (Angie Dickinson, carismática e provocadora), mulher bela e desbocada que se envolve com Chance.

Como se vê, é uma situação tensa, que Hawks administra primorosamente. De modo singular para um faroeste, ele desenvolve exemplarmente o psicológico dos personagens, dando espaço tanto para o cômico (as cenas com Stumpy e o dono do hotel) quanto para o dramático (o problema com o álcool de Dude), tanto para a ação (os tiroteios e perseguições) quanto para o romance (a relação de Chance e Feathers), além das diversas cenas extremamente tensas que pontuam o longa, com o suspense nos fazendo prender a respiração. Isso torna o filme um pouco longo (2:20h), mas nada cansativo, justamente por essa alternância de momentos e ritmos distintos. O cinema, afinal, não é feito só de fotografia ou enquadramentos excepcionais. É feito também de montagem, direção de atores, e, principalmente, de roteiro e personagens, e Hawks foi um contador de histórias como poucos.

No fim, embora não terminemos o filme com uma “mensagem” propriamente dita, ou uma idéia instigante que foi revelada, saímos dele para a realidade com uma sensação reconfortante de ter visto uma ótima história ser contada, uma história do velho tipo, sobre amizade, lealdade e coragem, além de amor, claro, e outras coisinhas mais. E o que é melhor: tudo isso contado no mais natural e fluido estilo cinematográfico, desses de dar água na boca.
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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Grandes Desfechos de Livros 4 (de 5)

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Se ficaram incomodados com o final-que-se-recusa-a-sê-lo de Finnegans Wake, certamente o desfecho de O Castelo, de Franz Kafka, há de ser ainda mais assustador. Isso por que esse foi um dos romances que o autor tcheco deixou para a posteridade - na verdade ele não deixou, e sim mandou queimá-los, mas o amigo Max Brod fez questão de contrariá-lo - sem ter terminado. Ainda assim, O Castelo, tal como O Processo, outra de suas obras inacabadas, figura entre as obras-primas do escritor, símbolo de seu estilo, seus temas e suas preocupações.

K. o personagem principal, é um agrimensor que, contratado para trabalhar em um castelo, não consegue sequer entrar lá, ficando à mercê de outros personagens que têm contato com os donos do castelo, e acaba passando o livro todo em uma aldeia próxima. As interpretações do livro são diversas, e não nos aprofundaremos nesse tema. Entretanto, é muito significativo que o livro termine no meio de uma frase, sem que nenhum dos problemas de K. tenha encontrado solução, sem que nenhum resquício de resposta tenha sido deslumbrado. Ironicamente, o romance-inacabado de Kafka é a forma perfeita para os temas que lhe são peculiares, das coisas inescrutáveis, do absurdo, da escuridão além. Por mais que, no fim da vida, Kafka não quisesse, de forma alguma, entregar ao mundo uma obra inacabada, essa "falha" suposta acaba sendo uma das características mais marcantes da obra, um desfecho infinitamente misterioso, infinitamente perturbador, e infinitamente simbólico de tudo o que Kafka explorou.
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O Castelo, de Franz Kafka. Tradução de Modesto Carone.

“A sala na cabana de Gerstacker estava iluminada fracamente só pela chama do fogão e por um toco de vela, sob cuja luz alguém, inclinado num nicho debaixo das traves do teto, que ali se projetavam oblíquas, lia um livro. Era a mãe de Gerstacker. Ela estendeu a K. a mão trêmula e o mandou sentar-se ao seu lado; falava com esforço, era preciso se esforçar para entendê-la, mas o que ela disse”
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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A Roda #11 - Tratado Universalizante da Xurepa, Introdução


por Lobato Légio

Xurepa é o que eu escrevo. Xurepa é o que você fala. Xurepa é o que nós pensamos. De fato, qualquer idéia organizada ou expressão comunicativa, queira por palavra - escrita ou dita -, queira por pensamento, é a Xurepa. A Xurepa é o espírito do convívio social e da civilização. Contudo, não só do “convívio” ou “civilização” em termos humanos, e sim em termos de qualquer ente que possua dois princípios, quais sejam: existir e se relacionar com outros entes que possuam as mesmas duas premissas no espaço alcançável e imaginável. Ver-se-á, no entanto, que as duas premissas são em verdade a mesma, e que é impossível uma ser válida sem que a outra também o seja. Analisemos, pois, ambas as características, de modo a demonstrar esse conceito.

Comecemos, portanto, pela Xurepa em si. Definir a Xurepa é o exercício de metalinguagem supremo, o que o torna extremamente importante e nada trivial. Como se vê por esse próprio texto, a Xurepa tem muitas definições, e cada uma delas é válida. Descrevê-la por completo seria uma tarefa exaustiva, quiçá interminável, então procurar o cerne de todas as definições, o que todas elas têm em comum, é o único meio praticável de definir a Xurepa. Arrogo-me o direito de tentar fornecer essa definição, ainda que ela possa ser, ainda, outra faceta, e não o âmago definitivo.

Para começar, partiremos de definições mais genéricas da Xurepa, para depois tentar extrair delas um aspecto comum. Quando um ser humano fala com outro, ocorre um processo de comunicação. Há um ente que diz e um ente que ouve. Mas o processo, a relação entre eles, é a Xurepa. Do mesmo modo, quando se escreve, a caneta faz pressão no papel, e o papel cede, sendo então marcado pela tinta. Ocorre aí um processo mútuo. Isso é Xurepa. Ao se olhar para o céu à noite, vê-se estrelas, e as estrelas são vistas. Isso é Xurepa. Ao se sentar em uma cadeira, a parte animada entra com o traseiro e a inanimada, com o assento. Isso é Xurepa. Uma árvore cai na floresta. Não há ouvidos para ouvir sua queda, mas esta continua provocando o deslocamento do ar, deslocado por ela. Aí também está a Xurepa. A Xurepa é, portanto, uma troca - ainda que inconsciente, posto que pode ser realizada por seres sem consciência. É o equilíbrio das forças comunicativas no universo. A linguagem mais básica de comunicação, de relação entre entes, uma espécie de Kether lingüística da qual emergem todas as outras formas de se relacionar no Universo.

Pois bem, isso posto, qual a relação que isso tem com a existência em si? Não é matéria para esse estudo questionar as filigranas e questiúnculas sobre o que é realidade, mas isso não o impede de fazer uma proposição a respeito de pergunta geral: o que significa, exatamente, existir? Descartes sugeriu o famoso postulado Cogito ergo sum – Penso, logo existo -, mas essa relação obviamente só é válida para seres racionais. Sobre isso ele erigiu a tradição do ceticismo, de duvidar de tudo até níveis paranóicos. Entretanto, não se pode dizer que a fala de alguém - essa combinação etérea de pensamento, vibrações das cordas vocais e ar – existe? Não se poderia dizer que a imagem de uma pedra em nossa imaginação também existe, enquanto imagem de uma pedra na imaginação?

A verdade é que prerrogativas como tangibilidade e consciência são mancas para explicar a qualidade de algo existente. São extremamente arbitrárias ao condenar a imaginação, a ilusão, o pensamento, até mesmo a música, à categoria de não-coisas, de coisas que não existem por não serem tangíveis ou imagináveis. Mas, se não for isso, pergunta-se: o que poderia justificar ou caracterizar a existência? E se responde, prontamente: a Xurepa. O estado de estar se relacionando com outras coisas.

Essa visão é, por certo, fonte de esperança mesmo em frente à desolação do vazio. Um átomo largado no vácuo é algo que existe, assim como o nada ao seu redor existe também. Somente o nada absoluto, livre de qualquer contraste, não-existe. Mesmo que toda a história da humanidade fosse o sonho de um deus adormecido, isso não retiraria a solidez do fato de que existimos.

É uma definição abrangente, mas definições tem o costume, raramente contrariado, de serem abrangentes. Se fosse algo específico, não seria definição, e sim descrição. A Xurepa tem muitas descrições, mas a definição, sobre o que ela é, acima de tudo, é só uma. Existir e se relacionar, portanto, é uma única e mesma coisa, e a Xurepa é o caminho entre o nada e a existência.

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Nesse estudo, analisaremos mais a fundo outras facetas da Xurepa, com exemplos, histórias e descrições, e forneceremos um painel abrangente de como ela foi tratada e retratada pelo gênio humano, na arte e na filosofia, durante a história, focando-se especialmente em seu aspecto de linguagem que expressa idéias, sentimentos e abstrações.
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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Platoon

Escrito e dirigido por Oliver Stone baseado em sua própria experiência na Guerra do Vietnã, Platoon é uma visão mais histórica e profunda do conflito em si. Se O Franco-Atirador demonstrava o impacto da guerra no homem comum americano e Apocalypse Now era um tour-de-force dramático-psicológico que extrapolava o evento, Platoon entrou para a história como um registro do dia-a-dia dos soldados, de seus dramas e suas perdas.

O cartaz do filme já alertava: “Na guerra, a primeira baixa é a da inocência.”, e o que vemos em Platoon é a transformação de um idealista em um realista. A transformação de um jovem que acreditava na importância de lutar por seu país em um homem mais cético, de um assustado com a violência em alguém que conhece a crueldade humana.

Chris Taylor (Charlie Sheen), o protagonista, espécie de alterego do diretor, era um universitário quando decidiu largar a faculdade e se alistar. É então jogado no Vietnã para ficar um ano. Logo na chegada ao aeroporto, já encara o que será sua vida dali por diante: corpos em sacos plásticos e soldados que passam com o rosto cinzento e olhos marcados pelo esgotamento. Ele é integrado a um pelotão do exército americano, a Companhia Bravo, sob o comando dos sargentos Barnes (Tom Berenger) e Elias (Willem Dafoe).

Os dois sargentos são um a antítese do outro. Elias é gentil, prestativo e pacifista, sempre ajudando os novatos como Taylor. Já Barnes é durão, cruel, violento, e prefere educar os outros na base da porrada. A inimizade entre os dois é, basicamente, o que conduz o filme. Isso porque não existe um enredo a seguir. Assim como os recrutas jogados no meio da selva para lutar uma guerra fantasma, o espectador é jogado dentro do filme quase sem referências. Sabe que há os americanos, os vietcongues, e a selva. E a guerra explodindo entre essas partes. Mas não há nada além disso, nenhuma missão especial ou objetivo significativo além de lutar e sobreviver.

Por isso, Stone investe nos personagens, o que faz muito bem, enchendo o filme de trechos da rotina dos soldados no Vietnã, suas relações, suas personalidades. Cada soldado do pelotão ganha uma personalidade, mais ou menos desenvolvida, dependendo do caso, mas sempre tangível e humana. Há O’Neill, o falso-durão e puxa-saco dos superiores; Bunny, moleque sem noção e psicótico; Big Harold e King, dois negros simpáticos e gentis que se tornam os mais próximos de Taylor; assim como a turma da marijuana, comandada por Rhah e pelo sargento Elias. São, em suma, um retrato diversificado dos jovens que lutaram pelos EUA naquela guerra, contaminados em sua maioria pelo zeitgeist do final dos anos 60.

À medida que o filme avança, personagens morrem, outros são feridos, outros ficam abalados psicologicamente. Taylor, por sua vez, aparece em diversos momentos sendo atacado por formigas e até sanguessugas. O pelotão, assim como Taylor, está sendo devorado pelo Vietnã, a consciência e a vida de cada um fragmentando-se pouco a pouco. Quando perdem companheiros, quando são feridos, quando atacam e queimam aldeias milenares, quando assassinam e torturam vietnamitas com crueldade, quando simplesmente presenciam tudo isso in loco, esses jovens estão sendo devorados.

A batalha final, na qual culminam as pequenas histórias de cada um, é o símbolo definitivo do que foi o Vietnã. A selva envolvendo tudo, e o inferno queimando por entre as árvores. Os soldados são levados ao limite e forçados a revelar quem realmente são. Tudo depende das escolhas que cada um toma para enfrentar o caos. Taylor, sobrevivente, toma sua decisão, ao caminhar por cima dos corpos e encontrar, ainda vivo, um certo inimigo. Se, quando recruta, ele fora incapaz de explodir algumas minas para matar uns vietcongues, agora ele mata a sangue frio. Mas isso está certo, porque aquilo é a guerra, e a inocência já não pode ser recuperada. Resta o ódio, a vingança, a expiação.

Ao voltar para a base, após a batalha, na iminência de ser mandado de volta para casa, Chris reflete, pela última vez, sobre sua experiência na guerra. Chega à conclusão de que, em uma guerra, um povo não luta contra um inimigo, mas contra si mesmo. E percebe, mesmo com o sol, branquíssimo, ofuscando sua imagem, que a guerra, mesmo tendo acabado para ele, estará viva para o resto de seus dias, assim como está viva, até hoje, no coração de cada um que já esteve em um combate, nos túmulos dos que morreram numa batalha, na pele da terra que padeceu sob as bombas e o sangue, e na alma violenta do ser humano.
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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O chamado

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Lia um livro quieto e contente. Deitado na cama, virava as páginas rapidamente, ansioso de presenciar as próximas cenas. Os olhos passavam pelo texto até o fim da página, e então retornavam ao topo, só para descer novamente. Do meio de substantivos, verbos, conjunções, adjetivos e letras emaranhadas que se exibiam aos seus olhos, surgiu uma palavra que ele não conhecia.
Meio lerdo e preguiçoso, levantou-se e foi até o computador procurar o significado. Entrou no dicionário online pelo menu dos favoritos e digitou as mesmas letras que compunham a palavra misteriosa, na mesma seqüência. O resultado logo carregou e enquanto passava os olhos pela tela pensou ter ouvido chamarem-no.
Como sempre fazia, abriu a porta já dizendo que foi e encontrou a irmã e o pai na sala. A voz que ouvira era de mulher então perguntou pela mãe e rindo-se a irmã respondeu que ela não estava em casa. Também rindo, ele falou que a voz que o chamara parecia a da avó. O pai disse que ele tinha imaginado aquilo mas ele ficou preocupado.
Já ouvira histórias de pessoas que ouviam parentes próximos chamarem e depois iam descobrir que eles tinham morrido por volta daquele horário. Um pouco nervoso um pouco rindo, ligou para a avó, para assegurar-se de que nada mesmo tinha acontecido. A mulher atendeu-o com a voz carinhosa de sempre e ele logo desligou.
Esquecendo-se daquilo voltou para o quarto e retomou a leitura apressada do livro. Queria terminar de lê-lo ainda aquele dia. Já passara muitas páginas quando de novo ouviu chamarem seu nome. Dessa vez, a voz parecia ser a da mãe, e chamava baixo. Saltou da cama abriu a porta com rapidez e foi para a cozinha ver se a mãe tinha chegado.
A irmã, antes mesmo dele chegar até lá, adivinhando suas intenções gritou ninguém te chamou. Já rindo ao encontrá-la tomando água, disse que tinha ouvido uma voz chamando-o novamente, e ponderou que talvez fosse algum barulho de cano ou estampido de lâmpada que ele confundira com o próprio nome.
De novo voltou para a cama e retomou a leitura do livro, fazendo anotações e conjecturas enquanto a história seguia. Perto das dez terminou de lê-lo e como sempre acontecia foi tomado por uma indescritível sensação, mistura de curiosidade pelo além-fim e de nostalgia pelo que já passara. Abriu a porta do quarto, foi beber água e escovar os dentes, o pai desejou-lhe boa noite e com seu passo pesado voltou para o quarto.
A tela acesa do computador o convidava para um intercurso e sem pestanejar ele sentou na cadeira e começou a navegar pela internet. Acessava sites, notícias, blogs, fóruns... sua conduta típica quando estava na frente do computador.
Concomitante a tanto texto imagem e propagandas faiscantes, o episódio das vozes chamando por seu nome voltava-lhe lentamente à cabeça. Agora se lembrava de que na infância quando brincava com os amigos ou jogava bola era freqüente ouvir chamarem seu nome e procurar em vão pelo dono da voz. Achou engraçado aquela recorrência, mas no fundo ficou um pouco preocupado pelos chamados voltarem depois de tanto tempo em silêncio.
Quando a mãe veio desejar-lhe boa noite, ele a abraçou bem forte e disse que a amava. Já de madrugada desligou o computador e ao deitar resolveu que iria até a casa da vó no dia seguinte. Embora racionalmente considerasse que simplesmente havia tomado um som qualquer por seu nome, no fundo ele tinha medo de que alguma voz do além tivesse voltado a procurá-lo.
Por um minuto, imaginou que aquele chamado talvez tivesse vindo através do tempo, e que um dia com certeza sua vó e sua mãe o teriam chamado, ou chamariam, daquele jeito. Mas o sono logo veio e esses medos e suposições se perderam no sono...

Acordou de repente, com a impressão de que alguém o chamara. A casa estava vazia, nem sua mãe, nem sua irmã nem seu pai haviam dito seu nome.
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terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O Enigma de Kaspar Hauser

O título original desse filme de Werner Herzog é “Cada um por si e Deus contra todos”, e resume muito bem a situação do personagem título e, de maneira geral, de todos os protagonistas de Herzog. Como já havia comentado na crítica de Aguirre, Herzog se interessa por personagens deslocados, que enfrentam o mundo, e nesse filme ele trata especificamente da relação de um ser humano “puro” com a sociedade civilizada. Daí o título original, que expressa a situação de um homem, sozinho, posto contra Deus, ou a Natureza, ou o Universo...

Kaspar Hauser é um personagem de origem real, um homem – talvez de sangue nobre – que permanece a vida toda trancado, alheio ao mundo dos seres humanos, e recebendo comida de noite sem qualquer tipo de comunicação. Um dia, ele é retirado de seu cárcere e abandonado em uma praça de Nuremberg, com um chapéu e um livro de orações na mão direita e uma carta para o oficial da cavalaria local na esquerda. Encontrado por um morador, Kaspar é levado à delegacia, e começará sua vida no mundo civilizado europeu do século XIX.

A ambientação e o histórico de Herzog ajudam a situar o personagem: Kaspar Hauser é o louco iluminado dos românticos, o excluído que, por sua pureza, absorve a civilização e a realidade de forma imparcial, sem desvios, e pode assim enxergar o que o que os outros não vêem. Em uma sucessão de momentos bem definidos, conhecemos a história do pobre homem e de sua relação com o mundo, assim como de que modo o mundo o trata.

Os episódios que ilustram isso são exemplares. Hauser começa morando e aprendendo na prisão, sendo objeto de curiosidade da população, até que a prefeitura decide não gastar mais com ele. Ele vira então, por um curto período de tempo, atração de um circo, no mesmo patamar do rei anão e do índio americano. Depois disso, ele fica sob a proteção do Sr. Daumer, um homem rico da cidade. Durante esse caminho, será apresentado às coisas do mundo, às convenções sociais, filosóficas, racionais, e reagirá a elas da sua própria maneira.

Para cada conceito que lhe demonstram, Hauser tem uma resposta toda particular. À idéia de Deus, responde que antes precisa aprender a ler e escrever para compreendê-la melhor, num indício de que Deus derivaria do intelecto, e não o oposto. Quando confrontado com a verdade absoluta da ciência, representada pela lógica, Kaspar encontra um caminho totalmente anti-científico, mas igualmente válido. Trata-se de uma das melhores cenas do filme. A saída que Kaspar encontra para o problema lógico é tão eficiente, tão mais eficiente que a do professor de lógica, que nos deixa com um sorriso no rosto e uma idéia na cabeça, uma coceirinha metafísica incômoda, que só é ampliada pelo resto do filme e pelas outras ações de Kaspar.

Outras ocasiões se seguem, outros eventos sociais e civilizados estranhos aos quais Kaspar é apresentado, mas o mistério permanece. Mais do que uma visão crítica da sociedade, O Enigma de Kaspar Hauser é uma demonstração de que nosso modo de viver, ser e pensar nos é imposto não por nossa natureza, mas por nós mesmos, por nossa sociedade, por nossa história.

Quando Kaspar sofre um atentado no fim do filme, isso acontece provavelmente devido ao perigo de descobrirem a existência dele, atrapalhando assim uma linha de sucessão ou algo do gênero, mas também é algo representativo. Quando ele chega à civilização, o prendem, depois o mandam ao circo como uma aberração, e depois tentam doutriná-lo, enquadrá-lo nos modos de pensar vigentes, mas ele não cede. Embora seja amado pelos mais próximos a ele, Kaspar representa uma ameaça à sociedade, por ser a prova viva de que as coisas não são assim tão óbvias e absolutas.

Depois de sua morte, fazem uma autópsia, e os médicos crêem ter encontrado a explicação para sua existência. Fígado deformado, cerebelo superdesenvolvido, lado esquerdo do cérebro menor que o direito... pronto, é assim: a civilização destrinchou Kaspar Hauser e acabou com seu mistério. O escrivão, personagem cômico, comemora o protocolo que acaba de escrever, detalhando parte por parte a resolução do mistério, mas continua sendo ilusão.

Durante sua vida no mundo civilizado, Kaspar adorava contar histórias, mas só conhecia o começo delas. Sem dúvidas, ele via com clareza o que se colocava diante de seus olhos: os seres humanos caminhando na névoa, indo lentamente em direção à morte que se encontra no alto de uma montanha. A caravana no deserto, guiada por um homem cego, que se acha perdida por acreditar que aquelas montanhas-miragens no horizonte são reais... De maneira precisa, fábula, sonho e realidade são unificados pela inteligência da criança selvagem, a criança selvagem que enxerga com perfeição o que ninguém mais consegue ver. No segundo atentado que comete, o assassino de Kaspar Hauser deixa um bilhete, revelando parcialmente sua identidade. Mas nós, que durante todo o filme estávamos dentro da mente de Kaspar, conhecendo sua visão, sabemos que a confissão que o homem misterioso faz não é de um simples humano. Não, a confissão é a do oculto, que se revela a uns poucos e é capaz de acabar com eles, os pobres solitários que se postam sozinhos contra o absurdo da existência. E é por isso que o assassino, ou o desconhecido, ou, mais especialmente, o óbvio que ninguém consegue ver por estarem todos vendados, diz, no bilhete final: “Hauser saberá, sem dúvida, descrever como sou, e de onde venho. Para que ele não faça isso, vou lhes dizer de onde venho, e qual o meu nome...”
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segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Grandes Desfechos de Livros 3 (de 5)

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Na primeira semana dos Grandes Desfechos de Livros, vimos uma final que concluía, que recapitulava a narrativa e então a levava a um fecho. Na segunda semana, vimos um final que desaguava no começo, um final que se recusa a sê-lo, o final irremediavelmente ligado ao princípio. Agora, na terceira semana, o final que aparece na lista é de um outro gênero: é um final que responde.

Sem dúvida, ele tem algumas semelhanças estruturais com o final de O Barão nas Árvores, visto que também faz uma espécie de recapitulação. Entretanto, o que temos no final de Grande Sertão: Veredas, este que é o Grande Romance Brasileiro, inegavelmente a obra que mais longe foi em suas pretensões (cumpriu todas, é bom dizer) e abrangência, são palavras gigantescas, que a despeito do tamanho físico contém significados abrangentes, adquiridos durante a narrativa, e que põe um fecho, ainda que já anunciado, nas divagações e dúvidas de Riobaldo, o narrador-herói que vendeu (ou não) a alma para o Diabo, o Fausto jagunço apaixonado pela dualidade personificada no ser amado, Diadorim.

Nessas últimas palavras, Riobaldo afirma suas crenças e conclusões, dando por fim espaço ao símbolo do infinito, ao infinito da travessia que é a troca entre dois opostos, entre dois mundo. A linguagem mágica de Rosa, os significados profundos que ele sonda e o sentido poético que ele dá ao livro fazem do final de Grande Sertão: Veredas um dos mais emblemáticos de toda a literatura mundial, assim como é emblemática essa obra-prima que merece o reconhecimento.
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Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa.

“Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.”

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sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Citação de Sexta: Ambigüidades covalentes


“Na última terça parte de sua vida, Laszlo Jamf adquiriu – era a impressão que tinham os que, nas arquibancadas de madeira do anfiteatro, viam suas pálpebras pouco a pouco tornar-se granulosas, manchas e rugas estampar-se em sua imagem, desintegrando-a em direção à velhice – uma hostilidade, um estranho ódio pessoal dirigido à ligação covalente. A convicção de que, para que a síntese tivesse futuro, era necessário aperfeiçoar – alguns alunos chegavam a entender que o sentido era “transcender” – a ligação. Para Jamf, a idéia de que uma coisa tão mutável, tão frágil, quanto um compartilhamento de elétrons constituía o âmago da vida, da sua vida, parecia uma humilhação cósmica. Compartilhar? Era tão mais forte, tão mais duradoura, a ligação iônica – em que os elétrons não são compartilhados e sim capturados. Tomados! – e aprisionados! polarizados, positivos ou negativos, esses átomos, sem ambigüidades... como ele amava aquela clareza: sua estabilidade, sua teimosia mineral!”

- Thomas Pynchon, O Arco-Íris da Gravidade
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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Pílulas Cinematográficas, Edição 13: Especial Orson Welles

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Na véspera de uma sexta-feira 13, a décima terceira edição das Pílulas! Hoje, mais uma edição especial, dessa vez com os filmes de um diretor único: Orson Welles. Welles é uma figura estranha. Seu primeiro filme é o melhor de todos os tempos por excelência, e o segundo poderia ter chegado lá, não fosse a interferência do estúdio. Ele tem ainda, em sua filmografia, ao menos duas obras-primas do cinema noir, duas obras-primas baseadas em Shakespeare, e uma obra-prima expressionista. Entretanto, o diretor nem sempre é lembrado como um dos maiores de todos os tempos, o que de fato é. De qualquer forma, com esta edição das pílulas presto pela primeira vez tributo ao gênio de Welles, que, indiscutivelmente, transformou o cinema que veio depois dele.
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Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941): Nove em cada dez listas de melhores de todos os tempos o colocam no topo, e a razão disso é bem simples: nunca um filme inovou tanto. Aproveitando-se de sua experiência no rádio e no teatro, Welles imprimiu no filme inovações na edição do som, utilizando-o para marcar a transição de uma cena para a outra. Além disso, inovou também nos ângulos de câmera, na montagem e, sobretudo, na narrativa. Ao contar a história da vida de Charles Foster Kane (corajosamente inspirada em um personagem real – William Randolph Hearst), Welles não poupou flashbacks nem a platéia, exigindo dela menos passividade e mais cérebro para acompanhar o que se desenrola na tela. Acumulando as funções de diretor, produtor, ator e co-roteirista, Welles realizou todas com perfeição, entregando ao público uma obra perfeitamente engendrada, infinitamente original e, cada vez mais, mítica.
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A Dama de Xangai (The Lady from Shanghai, 1948): A primeira obra-prima noir de Welles foi um fracasso retumbante, mas afinal, as bilheterias nunca foram mesmo muito amigas dele. Aqui, pela primeira vez, Welles investiga a fundo as crueldades da alma humana, e o faz em grande estilo. Rita Hayworth, linda e loira, interpreta uma femme fatale misteriosa, inescrutável, que envolve Michael, o personagem de Welles, em uma intrincadíssima trama de traição e suspeita. Com habilidade, Welles revela o aspecto "tubarão" do ser humano, sem no entanto deixar de investigar os motivos e mecanismos que levam as pessoas a agirem como bestas ouriçadas pelo sangue dos iguais. No final, ainda somos presenteados com uma cena emblemática, cheia de significado e beleza.
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A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958): Dez anos depois, Welles volta ao noir e aos recôncavos escuros do ser humano (metafisicamente falando, por favor). Mas dessa vez ele está ainda mais sombrio. Num memorável plano-sequência, ele inicia o filme apresentando-nos várias informações importantes que terão seu reflexo durante a narrativa. A partir desse ponto, personagens apresentados, ele se aprofundará neles, exercendo seu talento quase incomparável de sondar o caráter e as motivações dos personagens utilizando-se da linguagem cinematográfica. Nesse filme já parece haver uma guinada em seu discurso sobre as ações humanas, ao introduzir as instituições e mecanismos sociais como símbolos da corrupção, e os seres humanos como meros peões que, embora possam, sim, fazer as tais escolhas, às vezes simplesmente estão no lugar errado, na hora errada, fazendo a pior coisa possível...
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O Processo (The Trial, 1962): Adaptação do romance de Fraz Kafka, O Processo é uma obra expressionista condizente com o livro do autor tcheco. Anthony Perkins, o Norman Bates de Psicose, interpreta Josef K., que certamente foi caluniado por alguém, visto que certa manhã o prendem, sem que tenha feito qualquer mal. De uma hora para a outra, K. é introduzido no mundo da Lei e dos tribunais, e conhece personagens típicos desse mundo. Em momento algum ele descobre de que é acusado, e mal tem direito de defesa. O romance de Kafka permaneceu inacabado, mas o escritor chegou a escrever um capítulo que poderia ser o último do livro, com K. sendo executado por dois oficiais da polícia a facadas, “como um cachorro!”. Welles optou por alterar um pouco esse final, mantendo K. desafiador até o último segundo. No filme, os policiais não têm coragem de esfaqueá-lo, e acabam sendo alvos da pilhéria de K.. Por fim, eles jogam uma dinamite no buraco em que o homem estava e o explodem. Welles justificou essa adaptação como uma atualização do romance para depois do Holocausto, mas o fato é que o filme é uma visão pessoal do diretor sobre a obra de Kafka. Extremamente claustrofóbico e escuro, o filme é visualmente impactante, e memorável. A interpretação de Perkins é fabulosa, e o clima que Welles impõe ao filme é exato. Ver a obra como uma alegoria contra a Lei e o sistema penal é reduzi-la, embora sem dúvida ela passe por isso. O mais correto (e impactante) é absorvê-la como se fosse a própria escuridão que ela tange, e entender que lá se esconde toda a culpa, a da alma, a do corpo, a do ser humano, do cidadão, do inocente...
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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

A Roda #10 - Panorama do Vale de Legium, parte 5


por Lobato Légio

- Ontem fará trinta anos que eu não terei visto meu pai.

- Tudo isso? Meu amigo, não lembrava que já fazia tanto tempo.

- A última vez que encarei aqueles olhos foi há trinta longos anos. Nunca os havia penetrado tão profundamente, mas no último momento mergulhei neles e quando saí já estava a uma grande distância do homem que me criou.

- Também me lembro disso, de estar ao seu lado antes de você sair para encontrá-lo, de te encorajar a ser franco sobre seus sentimentos.

- Não há meio de agradecê-lo por isso, foi a melhor coisa que eu poderia ter feito, mas foi o suficiente somente para diminuir a dor, não para acabar com ela.

- A dor... ainda hoje você a sente não?

- Hoje, propriamente, não sei, mas a sinto em ciclos que se repetem pelos meus anos. Não se pode pensar na dor em termos científicos, claros. Ela não diminui nem aumenta com o tempo, ela é um movimento constante, repetitivo. Após a partida de meu pai, ela foi crescendo, e depois diminuiu, e desde então assim se repete seu movimento, picos que surgem, arrasadores, cercados por todos os lados de sentimentos mais amenos... Tranqüilidade e boa nostalgia pontuadas por instantes excruciantes, breves no tempo contado mas imensos nas horas que passam dentro de mim.

- É como se de repente o tempo mudasse e você se visse de volta ao instante chave, ao momento da ruptura, e toda a dor daquele fato caísse de novo sobre você.

- Mas é isso mesmo, exatamente isso... como sabe?

- Meu amigo, você entende. Todos nós já vivemos isso.

- Sim, como não saber? É uma verdade tão universal, tão agarrada em nossa pobre alma estropiada.

- É uma verdade do tempo e da memória, e do sangue e das lágrimas, e dos sinais elétricos que se repetem em nossos corpos, reforçando a mesma mensagem, criando fantasmas na nossa carne...

- Como eu gostaria de poder ter evitado tudo o que aconteceu, de ter percebido antes o rumo que as coisas estavam tomando, de ter enxergado a tempo a que fim meus atos levariam...

- Você não pôde, amigo, nem poderia, de maneira nenhuma. Você pôde reparar os sentimentos, mas não os fatos. Você deixou seu pai em paz, e assim encontrou sua própria paz, mas nunca teria podido mudar o destino que havia escolhido para si.

- O tempo é tão estranho... Nos momentos de dor, quando o aperto surge silencioso e recrudescente, um bolero cruel, eu sinto que estou de novo mergulhando nos olhos do meu pai, e lá dentro eu encontro momentos da minha infância, quando ele vinha quieto me ver brincar, e ficava lá, parado num canto, sorrindo e deixando que as imagens do filho se gravassem em suas retinas, em sua memória. É exatamente como se eu voltasse àquele momento, e enquanto a dor perdura, vivo uma vida inteira de novo, mas quando a dor termina, nem um minuto se passou.

- O tempo não existe a não ser dentro da gente, a não ser na nossa alma. O único contador de tempo confiável é nossa própria consciência. E ainda assim, esse pedaço da existência, esse movimento indecifrável, o tempo, não tem nada de humano. O tempo é implacável, irredimível, irreversível, e por mais que nos postemos firmes contra ele, acabamos devorados de dentro pra fora, reduzidos sem perdão a uma última camada de pó.

- E no entanto, permanecemos.
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terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A Fonte da Donzela

Inspirado em uma fábula sueca medieval, A Fonte da Donzela traz claros os sinais de sua ascendência, mas ao tempo se encaixa perfeitamente na cinematografia de Ingmar Bergman, ao tratar de seus temas majoritários: a religiosidade e as relações humanas/familiares. A história da virgem que vai à igreja do vilarejo levar velas na sexta-feira santa e é estuprada e morta por pastores que depois encontrarão abrigo na casa de seus pais funciona não só como um drama contundente e arrasador, mas também como uma reflexão, à maneira bergmaniana, sobre violência e vingança.

Trata-se, é bom dizer, de um dos filmes mais acessíveis do diretor. A história é direta, linear e contida em um curto espaço de tempo. Ganhou o Globo de Ouro e o Oscar de melhor filme estrangeiro, além de uma menção especial no Festival de Cannes, mas não é um dos filmes mais adorados pelo diretor. Entretanto, considerando de quem estamos falando, mesmo um filme renegado pode adquirir status de obra magnífica.

As duas protagonistas do longa representam, de certa maneira, embora não em todos os sentidos, posto que o filme não é uma alegoria, as duas forças espirituais que ainda contrastavam na Suécia da Idade Média: o paganismo e o cristianismo. Karin, a donzela do título, é a única filha viva de uma família cristã devota, e recebe muito carinho do pai e da mãe. Embora seja um pouco mimada (e saidinha), é amorosa e boa com todos. Sempre sorrindo, inocente, tem a pele clara, os cabelos louros, e olhos brilhantes. Ingeri, por sua vez, é filha da empregada da casa. Suas aparições são sempre um pouco assombreadas, e ela está sempre suja e com a cara fechada. Pagã, adoradora de Odin, está grávida, de pai desconhecido, e vive amargurada.

Quando Karin é mandada pelo pai para levar as velas, leva Ingeri junto, e o decorrer dos acontecimentos revela que as duas não são, afinal, tão diferentes assim. A narrativa é pontuada por situações simbólicas. Ao preparar o pão de Karin para a viagem, Ingeri coloca um sapo dentro, para descontar na outra sua inveja e raiva. Como ela revelará depois, ela desejava, naquele momento, que algo ruim acontecesse a Karin, que ela fosse tomada por algum homem para aprender a não brincar com fogo. Depois, quando já estão no caminho, Ingeri, que sempre se portara como conhecedora de coisas que Karin nem imaginava, fica com medo da floresta escura e deixa a outra prosseguir, sozinha e despreocupada. Karin então é abordada pelos pastores – dois homens e uma criança -, que a levam para tomar um lanche em uma clareira. A tensão começa a aparecer, mas a donzela percebe tudo muito lentamente. Finalmente, ao oferecer mais um pão aos homens, o sapo salta de dentro dele – símbolo da “maldição” de Ingeri-, e Karin é estuprada e morta, enquanto a serva, que se decidira a segui-la até ali, acompanha tudo perplexa e sem ação.

Bergman demonstra, assim, as fraquezas e idiossincrasias de cada uma das moças, e o que suas atitudes provocam, em si mesmas e nos outros. Depois, quando os pastores chegam à casa dos pais de Karin, são muito bem recebidos, embora os pais estejam preocupados com a demora da filha em voltar para casa. Nesse último ato do filme, os protagonistas são o garoto, irmão dos pastores que acompanhou o ato criminoso dos mais velhos em silêncio, e Töre, pai de Karin. Um senta na frente do outro, à mesa, na hora da refeição noturna. O garoto não consegue comer nada e permanece inquieto, enquanto Töre permanece em silêncio sentado em sua cadeira de patriarca. Os fatos se desenrolam e a mãe de Karin acaba por descobrir que os pastores mataram a filha, o que corre para contar ao marido.

Töre, a partir desse instante, revelará o que o atormenta, deixando pouco a pouco seus sentimentos, que até então permaneciam escondidos, serem expressos por seus lábios e por suas ações. Acontece que Töre, a despeito do fervor da mulher, era um homem prático, sem grandes arroubos de fé. Ao saber da morte da filha, no entanto, começa a se desequilibrar, e sua praticidade se converte em desejo de vingança. Com a ajuda de Ingeri, que retornara e permanecia desesperada, culpando a si própria pela morte de Karin, Töre pratica um ritual pagão para ter forças em sua vingança. Invade o salão onde os pastores dormiam, os acorda e apunhala os dois mais velhos, para depois, sem piedade, atirar o mais novo contra a parede e assim matá-lo. Imediatamente depois, ele roga piedade pela primeira vez, e sua mulher abraça o corpo da criança.

Esses são os acontecimentos mais fortes usados para denotar a questão da vingança e do conflito entre cristianismo e paganismo. Töre é cristão, mas quando a praticidade e os sentimentos "exigem" retorna ao paganismo, para executar sua vingança. Depois, ao encontrar o corpo da filha, se prostra de joelhos e questiona a Deus o porquê daquilo estar acontecendo. Mesmo sabendo que era errado, ele matou por vingança, e Deus deixou que ele o fizesse, assim como deixou que os pastores estuprassem e matassem sua filha. Ainda assim, Töre promete que, para reparar seus pecados, construirá com as próprias mãos uma igreja, no exato lugar em que a filha morreu.

Bergman, no entanto, mais uma vez à sua maneira, deixa que algo novo aconteça, após o manifesto de desolação do pai. Ao retirarem o corpo de Karin do chão, começa a jorrar água de onde estava sua cabeça, água que desce até riacho que corre ao lado, e faz alguns se encolherem em adoração, enquanto o fade out engole suas imagens. Bergman, pois, não dá respostas fáceis, mesmo em seu filme mais acessível, nem absolutas. Bondade e crueldade se sobrepõem, amor e ódio. A mesma pessoa é capaz de praticar atos belos e atos maus, e Deus é capaz de deixar que o pior aconteça, assim como de acalentar os corações dilacerados com uma fonte de águas claras. O fato de a fonte ser a última coisa a aparecer no filme o coloca como uma mensagem de esperança, mesmo diante do vazio e da dor, mas, novamente, não existem respostas fáceis, nem absolutas: existe o mundo, e nós seres humanos, e o que fazemos dele, e por fim as conseqüências, sejam elas quais forem.
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segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Grandes Desfechos de Livros 2 (de 5)

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Dando sequência à lista de melhor desfechos de romances, vem hoje o ubíquo Joyce. Ao contrário do final da semana passada, recapitulador e conclusivo, o final de hoje é de uma natureza bem diferente, único, eu diria. Finnegans Wake, como já tratei aqui no blog, é um romance singular, então nada mais adequado que seu final ser singular também.

Acontece que, nesse colossal labirinto ainda por ser desvendado, a última frase de suas linhas é nada menos que o começo da primeira frase do livro. Ou, em outras palavras: a última frase termina na primeira página, e a primeira frase começa na última página. Joyce, assim, dá ao livro um aspecto circular, interminável, perfeitamente adequado às idéias do filósofo Giambattista Vico, das quais Joyce tirou um pouco da estrutura do romance.

Além disso, como é marcante no escritor, que fez isso tanto em Ulisses quanto neste Finnegans Wake, o romance termina numa torrente, um fluxo de consciência feminino, e nesse caso, literalmente um rio caudaloso desaguando no mar. ALP, Anna Lívia Plurabelle, o espírito do Liffey, a consciência feminina do ser humano, do mundo, de todo o universo, flui nas páginas entre nossos dedos, e por fim une suas águas às de seu pai, o mar, desintegrando-se e dando lugar a um novo começo que se personifica em sua filha, e na primeira linha do romance, que volta a fluir, reiniciando o ciclo. De deixar boquiaberto qualquer um não?

No Brasil, o título foi traduzido como Finnicius Revém pelos irmãos Campos, que também traduziram alguns trechos em seu Panaroma de Finnegans Wake. Anos depois, o gaúcho Donaldo Schüler tomaria para si a tarefa de traduzir o livro integralmente, tarefa que executou de forma sublime. Deixo aqui, portanto, as últimas linhas do Finnicius Revém, a "versão brasileira", de Donaldo Schüler, para a odisséia lingüística, simbólica, filosófica e artística de Joyce.
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Finnegans Wake, de James Joyce. Tradução de Donaldo Schüler.

“Estou de partida. Que amargo fim! Sorrateiramente partirei antes que acordem. Não vão me ver. Nem saber. Nem recordar-me. E é velha e velha é triste e velha é triste e exausta volto a ti, velhegélido pai, velhegélido indômito pai, meu velhegélido indômito, patético pai, até a mara vista da mera forma dele, as miolhas e miolhas dele, monotonando, me ressalgam, me ressacam e me arremesso, meu início, em teus braços. Eisque seelevam! Salvem-me desses tríveis dentes! Dos más uno dos homomentos mais. Só. Avelaval. Minhas folhas derivam de mim. Todas. Só esta me resta. Paro e porto comigo. Pra remembrança de. Lff! Suave esta manhã, tanto, a nossa. Sim. Leva-me contigo, papito, como quando quedos percorremos a feira dos brinquedos! Se eu o visse baixar sobre mim sob suas alvestendidas asas como que vindo de Arkângelos, penso que pensa findaria a seus pés, húmil, dúbil, débil, laudante. Sim, tá em tempo. Cá estamos. Início. Passamos pastagens, basculhem o bosque a. Vvôo! Gaivvota. Gaivvootas. Apelos do pai. Já vvou, pai. Eis o fim. Nós então. Finn, revém! Toma. Serenamente, remememora-me! Té que thausentes. Lps. As chaves a. Cá tens! A via a lenta a leve a leta a long a”
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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A Roda #9 - Tratado Universalizante da Xurepa, Prelúdio


por Lobato Légio

Xurepa, jureva, czureta. Xurepa, jureva, czureta. Xurepa, jureva, czureta. Vem, língua-mãe do Universo. Dai-nos palavra, eloqüência e sentido. Pa lavra e Loqüência sem tido. Dainos, palavraeloqüênciasentido.

Doravante a visão da Xurepa em glória, terror e delícia do Universo, a Palavra-Sagrada. As línguas revolvam nas bocas, os palatos tremam e soem, os dentes estalem e as cordas vocais vibrem! Cavalguem as canetas, dancem as penas, os lápis pululem e as teclas batam! Divulguem todos a linguagem que É.

Dita, proferida, proclamada, composta, escrita, desenhada, imaginada, pensada, gritada, cantada seja! Ouçamo-la com os ouvidos, ouçamo-la com a mente, ouçamo-la com o coração, ouçamo-la com a Alma! Eis a Idéia, eis a História, eis a Língua!

Xurepa que Fala, conceda-nos ouvir-te.
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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Entre Dois Amores

A África é, provavelmente, o maior “problema” que a civilização globalizada tem em mãos. Esse continente destroçado – em primeiro lugar pela colonização e escravidão impostas pela Europa durante cinco séculos, e depois por todos os males decorrentes desse processo... miséria, guerra, violência étnica, epidemias... -, ainda que riquíssimo em vários aspectos, precisa de uma solução. Talvez esta seja deixá-los em paz, talvez seja ajudá-los, talvez seja voltar no tempo e desfazer todos os erros que levaram o continente até onde está hoje... espera-se que ela seja descoberta a tempo.

Mas, desde muito tempo, a África foi cenário, personagem ou objeto de muitas obras de arte "ocidentais", desde os romances de Kipling e Verne até filmes como Hotel Ruanda ou Senhor das Armas, extremamente contundentes e críticos sobre a situação da terra que é a origem da humanidade. Algumas obras, porém, são mais sutis, preferindo usar a África como pano de fundo para uma história, mas sem deixar, claro, de fazer algum comentário sobre o que foi feito dela... é o caso de Entre Dois Amores (Out of Africa, no original), filme de Sidney Pollack com Meryl Streep e Robert Redford que venceu o Oscar em 1986 (concorrendo com A Cor Púrpura – que eu acho melhor).

Streep é Karen Blixen, dinamarquesa com algum dinheiro que se casa com Bror Von Blixen, um barão, para receber um título de nobreza. Os dois se mudam então para África, onde pretendem ter uma fazendo de leite. Bror porém logo muda os planos e planta café, o que deixa Karen nervosa a princípio. Apesar das constantes ausências de Bror, que sai para caçar, uma paixão se desenvolve no meio do casamento de conveniência dos dois, até que Karen pega sífilis do marido infiel. Depois desse episódio, a relação dos dois fica estremecida, e Bror acaba se mudando da fazenda e indo morar na cidade. A partir daí, Karen terá uma longa paixão com o aventureiro inglês Denys Finch-Hatton (Redford), ao mesmo tempo que administrará a fazenda e sua relação com os empregados, nativos da tribo dos quicuios. Com o tempo, o idílico equilíbrio que se estabelece entre essas coisas começa pouco a pouco a ceder, e tudo culminará num final trágico que forçará Karen a voltar, mais uma vez solitária, para sua terra, onde se tornará uma renomada escritora...

Essa história é real, e o filme é uma adaptação da biografia da escritora Karen Blixen. Com calma, e muito bem apoiado nas interpretações de seus protagonistas, Pollack constrói um belo melodrama, versando sobre a solidão e sobre como as relações humanas se desenvolvem dentro de um jogo entre liberdades e compromissos individuais. Ao mesmo tempo, sem colocar a África no centro dos acontecimentos, Pollack aproveita para mostrar a postura dos colonizadores em relação ao continente, e como seus desígnios se davam, sendo Karen e Denys, de maneiras diferentes, duas das únicas vozes solitárias que se erguiam para defender os nativos e seus modos de vida. Assim, unindo drama e crítica, o filme nos entrega duas horas e quarenta que, se não passam voando, são muito bem aproveitadas.
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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Leituras: Janeiro de 2009

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Em janeiro, li dois livros que disputam um posto muito especial, e ainda vago: o de Grande Romance Americano. Ambos já foram colocados nessa posição, mas nunca houve um consenso sobre qual, dentre os dois e dentre outros, obra merece tal título. Ambos, também, cada um à sua maneira, apresentam inovações e dificuldades em sua leitura, embora, como em qualquer livro, elas possam ser superadas com somente boa vontade e dedicação. As semelhanças entre os dois vão um pouco mais longe, ao menos para os exegetas mais obsessivos, mas paremos por aqui. O importante é que, seja pelos mares do mundo caçando um cachalote branco, seja pela Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial, os dois livros, como a Literatura em si, proporcionam viagens inesquecíveis, marcantes, insuperáveis... viagens pela nossa própria alma.

Moby Dick, de Herman Melville

Moby Dick é um romance peculiar. De fato, não é exagero dizer que ele é anacrônico. A metade do século XIX (o livro foi lançado em 1851) não parece adequada para esse livro, não mesmo. Moby Dick é uma obra quase um século à frente de seu tempo, um romance moderno encravado no ápice do romantismo. Certo, a linguagem do livro é romântica o bastante, cheia dos exageros e da imagética típico do estilo. Entretanto, a estrutura e a organização do livro são impressionantemente modernas. Vejamos... O enredo, embora emblemático, é um fiapo: Ismael, o narrador, torna-se amigo do arpoador Quiqueg e embarca no baleeiro Pequod, capitaneado pelo capitão Acab (Ahab no original), cuja perna foi arrancada por Moby Dick, um imenso cachalote branco, e portanto empreende essa viagem para se vingar. Então, o barco vai viajando pelo mundo, encontra vários outros baleeiros, mata algumas baleias, e no final encontra Moby Dick, que com sua fúria o destrói e faz toda a tripulação afundar e morrer, à exceção de Ismael, que escapa do naufrágio e muitos anos depois conta a história da viagem... O livro é uma enorme parábola sobre os impulsos da humanidade, e sobre como a obsessão e os sentimentos de um homem podem sozinhos destruir muitas vidas. Está recheado de metáforas fascinantes, de comentários pertinentes sobre o ser humano, de digressões sobre o significado das coisas. Apropriando-se de um enredo até certo ponto trivial, Melville construiu um Grande Romance, um tratado abrangente da alma humana. E, quanto à forma, ele foi pioneiro. A história em si, como já mostrado, é reduzida, mas ao invés de introduzir enredos paralelos para aumentar o livro, Melville o transformou numa verdadeira enciclopédia sobre as baleias, enchendo-o de digressões a respeito da espécie e da atividade baleeira através dos séculos, entre outras coisas. Apesar do livro ser contado em primeira pessoa, há passagens em que se usa a estrutura de uma peça de teatro, e várias outras em que o pensamento de outros personagens se intromete na narrativa, um verdadeiro fluxo de consciência à moda do século XIX que cria, assim, o novíssimo narrador personagem onisciente. Inovador ao extremo, Melville não foi, é claro, compreendido à sua época. Mas o tempo o colocou em seu devido lugar, o posto de um dos maiores escritores que a América já teve, e um dos grandes entendedores do ser humano.

O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon

Eles adoram dizer que certos livros são ilegíveis. Segundo o lugar-comum oficial, os livros que se encaixam nessa categoria são vários... Ulisses e Finnegans Wake, de James Joyce, Crítica da Razão Pura, de Imannuel Kant, O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon... mas espere aí. Se o livro estiver escrito (ou traduzido) em uma língua que o leitor conhece (ou domina), que motivos haverá para que ele não consiga lê-lo? Pois é. O conto da “ilegibilidade” de certos livros é facilmente espalhado por todos os cantos, e todo mundo acredita. A questão poderia ser então “Por quem essa história é espalhada?” – e a resposta entraria facilmente em várias suposições, digamos por aqueles que lêem esses tais livros, para afirmarem sua suposta superioridade intelectual, ou pela editora rival da que imprime os livros ilegíveis, para que ninguém os compre -, mas isso não vem ao caso, agora. O que vem ao caso, ou, em outras palavras, o que é realmente importante é: não, nenhum livro é ilegível. Afinal de contas, independente de quais idéias revolucionárias ele possa trazer em seu entrecho, ou de quão complexas elas sejam, um livro é só um livro, e um livro, como já afirmado no início desse texto, é para ser lido, desde que ele e o leitor compartilhem o mesmo tipo de linguagem. Assim, ler um livro não é, por si só, um ato que deveria gerar algum tipo de respeito (ouviram, intelectuais superiores?), mas também é algo cuja destinação básica é, isso mesmo, ler, e portanto não seria nada mal se todos comprassem livros e os lessem (ouviram, editoras rivais?).

Posto isso, podemos passar à próxima etapa dessa resenha: livros não são ilegíveis, certo, mas eles podem, sim, apresentar dificuldades. É o caso de O Arco-Íris da Gravidade. Esta obra monumental é única na literatura mundial, só pareada, em certos níveis, por outros dos livros do autor, Thomas Pynchon, um americano recluso de quem se sabe relativamente pouco, e que possui poucas fotos conhecidas, todas da época em que era jovem. O livro, passado no final da Segunda Guerra Mundial, um período de aproximadamente nove meses entre o fim de 44 e o meio de 45, conta múltiplas histórias e tem inúmeros plots, mas sua linha principal, pode-se dizer, acompanha (ou tende a perseguir, ou gira em torno de, ou ziguezagueia com, ou explode pra todo lado em) Tyrone Slothrop (anagrama de Sloth or Entropy – Preguiça ou Entropia), tenente americano em missão em Londres. Slothrop, na infância, foi cobaia dos experimentos pavlovianos de um cientista alemão chamado Laszlo Jamf, e condicionado a sentir tesão (no vulgar: ficar de pau duro) ao sentir o cheiro de um plástico especial chamado Imipolex G. Agora, no final da Guerra, quando Foguetes alemães com o composto sintético em suas coberturas estão caindo sobre Londres, ele sente a presença do plástico antes mesmo dos foguetes serem lançados e fica excitado, terminando por fazer sexo nos locais onde, dias ou semanas depois, um foguete vai cair. Intrigado com isso, um cientista que trabalha para o governo o envia para a Europa destruída, e Slothrop, o maior paranóico do Universo, assim como são paranóicos todos os outros personagens, começará sua busca por algo que ele ainda nem sabe ao certo o que é... Ou seria uma fuga d’Eles, que o perseguem por toda parte? Será que ele faz isso por vontade própria, ou continua sendo manipulado por Eles? Será que ele terminará a jornada do herói como começou, O Louco que passa pelos 21 Arcanos Maiores, pelos dez sephirah e retorna ao estado inicial, será que ele transcenderá, ou será que acabara se desintegrando no caminho? Maluco, complicado? Sim, e tem mais, muito mais... O livro mergulha fundo na paranóia, nos sistemas de controle, na Entropia e na inevitabilidade, na tendência de todas as coisas para a morte e a desintegração, assim como na Contraforça de tudo isso, a morte que surge da vida, o preso que se liberta, o amor que aquece as pessoas no frio mais pesado...

O site RinkWorks, que apresenta diversos trabalhos ligados à literatura, tem um resumo muito divertido e apropriado para o livro: “Uma coisa que grita atravessa o céu. É um foguete V-2 carregando cinco toneladas de simbolismo, e está vindo cair bem na sua pobre e iludida cabeça pós-moderna.” Ora, o romance é considerado um ícone do pós-modernismo, e não por menos: o livro está cheio de referências estruturais e culturais aos quadrinhos e ao cinema, e reúne também em suas páginas passagens relativas à química e a física modernas, ao mundo corporativo e político alemão na primeira metade do século XX, às teorias psicológicas/sociológicas de Pavlov e Skinner, aos acontecimentos da SG (Segunda Guerra), especialmente no final, a Rossini, Beethoven e Webern, e, principalmente, ao Foguete V-2, personagem principal e razão de ser do romance, tudo isso desempenhando um papel importante e constante na história. A prosa de Pynchon é densa, às vezes até demais, o que leva o livro a ser, por vezes, um pouco opressivo. Mas é, ao mesmo tempo, um livro extremamente engraçado, um dos mais engraçados que eu já li, cheio de momentos inacreditáveis e hilários, descrições pormenorizadas de fetiches sexuais bizarros, musiquetas engraçadinhas que irrompem no meio de uma cena séria, concepções estranhas do mundo e dos acontecimentos... um verdadeiro romance enciclopédico, com mais de 400 personagens e inúmeros acontecimentos sucedendo-se à toque de caixa, e também uma obra totalmente insana, cheia de fluxos de consciência, idas e vindas no tempo, transições de fatos, alucinações, sonhos e lembranças sem aviso, plots que começam e não dão em nada, pistas falsas emergindo o tempo todo....

É, em suma, uma obra exigente. Teoricamente, todo livro exige uma postura participativa do leitor. No entanto, na maioria dos livros, essa necessidade não é uma premissa básica para o seu acompanhamento, o que leva o leitor (qualquer leitor) a acompanhar o enredo passivamente. Já em PynchonO Arco-Íris da Gravidade, pelo menos – o envolvimento do leitor – de seu pensamento – é indispensável para acompanhar o que está acontecendo. Não é, repito, nenhuma tarefa impossível: basta boa vontade, e talvez um computador ligado para eventuais consultas, e uma ou outra anotação, se for necessário, e qualquer um poder ler o livro e compreendê-lo, ao menos superficialmente, a contento. Essa é uma leitura imediata, mas pode ser a única desejada para o leitor. Todo grande romance esconde em suas entranhas segredos que exigem muito estudo, pesquisa e dedicação para serem descobertos, e esses livros cheios de mistérios e enigmas, como O Arco-Íris da Gravidade, são especialmente pródigos em estudos e interpretações. Mas, para acessar alguns deles, há diversas teses – acadêmicas ou não – a respeito do livro, basta procurá-las.

Quem deseja ir além da leitura superficial, entender melhor o que aconteceu e procurar significados ocultos nas páginas deste grande livro vai encontrar um material farto, quiçá interminável. O livro, assim como Ulisses, outro grande romance-pedreira do século, está estruturado sobre uma obra clássica, no caso as Elegias do poeta alemão Rainer Maria Rilke. Além dela, também desempenham papel fundamental no livro o Tarô e a Cabala, fontes simbólicas riquíssimas, das quais Pynchon se apropria muito bem. Se quiserem um exemplo de simbolismos e segredos escondidos no livro, tomemos as iniciais de Slothrop, T.S.: porque não dizer que o anti-herói caminha, durante o livro, pela Terra Desolada que é a Europa no final da SG? Analogia perfeitamente possível e significativa, embora, talvez, um tanto quanto fácil para o nível pynchoneano de confusão, mas nada impede que essa seja só uma camada de significado que o nome – o nome! – do protagonista esconde. Da mesma maneira, diversos outros enigmas se apresentam, surgindo sem aviso, indo embora sem deixar rastros, confundindo e ao mesmo tempo fornecendo um certo prazer por sua existência...

Magistral, belíssimo, cômico, trágico, científico, popular, erudito, vulgar, obsceno, violento, mágico e sublime, O Arco-Íris da Gravidade é uma singularidade, um objeto infinitamente pesado que distorce o espaço e atrai tudo para seu interior, sem misericórdia... uma obra-prima da literatura, e o maior livro escrito na segunda metade do século XX, sem dúvida alguma.
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terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Fale Com Ela

Na arte, o trivial torna-se único, o comum torna-se excepcional, o momento se transforma em eternidade. Às vezes, a única tarefa de uma obra de arte é conceder as condições ideais para um evento corriqueiro e ver o que acontece, mover as cordas de maneira precisa para formar um quadro em que a vida, embora ficcional, flui perfeitamente, e acaba desembocando em nosso coração...

Alguns artistas preferem ser mais frios, outros mais céticos, outros mais realistas, mas nenhum nos toca tanto quanto o que nos toma pela mão e nos vai conduzindo por nossa própria vida, por nossas próprias experiências, transformando-as em nossa memória em obras de arte, assim como é obra de arte aquilo que apreciamos na tela, na página, no palco...

Pedro Almodóvar é um dos principais cineastas a surgir a partir da década de oitenta, e um dos maiores talentos do cinema espanhol em todos os tempos. Em Fale Com Ela, ele dirige uma de suas obras mais emblemáticas, a história de quatro vidas que [insira o barulho da agulha arranhando o disco milhões de vezes tocado do clichê] se cruzam e constroem entre si suas significâncias. Ou mais ou menos isso. Na verdade, temos quatro personagens. Alicia, bailarina, filha de um psicólogo, sofreu um acidente de carro e entrou em estado vegetativo. Benigno, um trintão que por vinte anos cuidou de sua mãe adoentada, sem se relacionar com mais ninguém, sempre observava Alicia na academia de balé da janela de sua casa, e torna-se enfermeiro da moça, por quem nutre uma paixão platônica. Lydia, toureira renomada, está vivendo um momento complicado na vida, após romper um relacionamento com o maior toureiro da Espanha, e acaba se envolvendo com Marco, jornalista apaixonado por música brasileira que saiu de um relacionamento recentemente e se emociona muito fácil. Então, Lydia acaba sendo atingida por um touro e também entra em coma, o que leva esses quatro personagens a se encontrarem na mesma clínica. A partir daí, eles vão começar a se relacionar e coisas vão acontecer...

É impressionante a sutileza com que Almodóvar trata o tema. Esse é o primeiro filme dele que eu vejo, e imagino que seja uma marca sua. A despeito dos aspectos técnicos, que são primorosos (fotografia belíssima, trilha sonora, com participação ao vivo de Caetano Veloso, espetacular, etc.), a maneira com que ele conta sua história é ao mesmo tempo tranqüila e divertida. Sem ser didático, ele vai mostrando os acontecimentos e deixando para nós inferirmos algumas relações entre sentimentos e ações. Como o próprio diretor declarou, o filme é sobre comunicação e solidão, e ele exemplifica isso de maneira tocante e preciosa. Os personagens, mesmo os que cometem as piores asneiras, tornam-se simpáticos aos nossos olhos, nos atraem de alguma maneira. Sem arroubos sentimentais, ele naturalmente deixa que o sentimento tome conta da tela, com passagens sutis mas plenas de amor, de carinho.

Embora seja, por seu enredo, trágico, o filme é, por sua condução, caloroso, gostoso de assistir e ao mesmo tempo fomentador de idéias, de pensamentos novos, de reflexões sobre a vida, o amor, e tudo mais.
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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Grandes Desfechos de Livros 1 (de 5)

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Em Novembro passado, fiz um top semanal com cinco dos Inícios de Livros que eu mais gostava. Agora, tomo o lado oposto, fazendo uma lista com cinco dos melhores finais de livros (romances) para mim. Com certeza, colocar o final de um livro em uma lista é bem diferente de colocar o começo, mas eu adoro desfechos de livros e acredito que, tendo um destino como os que eu colocarei nesse top, a viagem torna-se ainda mais agradável. E além do mais, não é um último parágrafo que vai estragar nada de uma história.

Para começar a lista, um final clássico, do tipo conclusivo. Um dos livros da trilogia Os nossos antepassados, O Barão nas Árvores, que já foi analisado por esse blog, tem um enredo interessante: o barão Cosme Chuvasco de Rondó, após discutir com a família, sobe em uma árvore e de lá não desce nunca mais - mesmo. Entremeando o livro, narrado pelo irmão de Cosme, há várias passagens digressivas, sobre as florestas, as pessoas, o estado antigo das coisas...

É uma característica comum da trilogia de Italo Calvino: gente que presenciou de perto os acontecimentos narrados lembrando e contando algo que faz parte de sua própria história, embora os narradores não sejam os personagens principais. É uma trilogia que, embora engraçada, divertida e aventuresca, é sobretudo melancólica, um painel pitoresco e delicado de uma Europa durante a Idade Média até o fim do século XVIII, uma Europa que se perdeu. Assim, nada mais adequado para encerrar um livro (ou a trilogia) do que um parágrafo como o que posto a seguir.
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O Barão nas Árvores, de Italo Calvino. Tradução de Nilson Moulin.

“Penúmbria não existe mais. Olhando para o céu vazio, pergunto-me se terá existido algum dia. Aquele recorte de galhos e folhas, bifurcações, copas, miúdo e sem fim, e o céu apenas em clarões irregulares e retalhos, talvez existisse só porque ali passava meu irmão com seu leve passo de abelheiro, era um bordado feito no nada que se assemelha a esse fio de tinta, que deixei escorrer por páginas e páginas, cheio de riscos, de indecisões, de borrões nervosos, de manchas, de lacunas, que por vezes se debulha em grandes pevides claros, por vezes se adensa em sinais minúsculos como sementes puntiformes, ora se contorce sobre si mesmo, ora se bifurca, ora une montes de frases com contornos de folhas ou de nuvens, e depois se interrompe, e depois recomeça a recontorcer-se, e corre e corre e floresce e envolve um último cacho insensato de palavras idéias sonhos e acaba.”
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