quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009
A Roda #10 - Panorama do Vale de Legium, parte 5
por Lobato Légio
- Ontem fará trinta anos que eu não terei visto meu pai.
- Tudo isso? Meu amigo, não lembrava que já fazia tanto tempo.
- A última vez que encarei aqueles olhos foi há trinta longos anos. Nunca os havia penetrado tão profundamente, mas no último momento mergulhei neles e quando saí já estava a uma grande distância do homem que me criou.
- Também me lembro disso, de estar ao seu lado antes de você sair para encontrá-lo, de te encorajar a ser franco sobre seus sentimentos.
- Não há meio de agradecê-lo por isso, foi a melhor coisa que eu poderia ter feito, mas foi o suficiente somente para diminuir a dor, não para acabar com ela.
- A dor... ainda hoje você a sente não?
- Hoje, propriamente, não sei, mas a sinto em ciclos que se repetem pelos meus anos. Não se pode pensar na dor em termos científicos, claros. Ela não diminui nem aumenta com o tempo, ela é um movimento constante, repetitivo. Após a partida de meu pai, ela foi crescendo, e depois diminuiu, e desde então assim se repete seu movimento, picos que surgem, arrasadores, cercados por todos os lados de sentimentos mais amenos... Tranqüilidade e boa nostalgia pontuadas por instantes excruciantes, breves no tempo contado mas imensos nas horas que passam dentro de mim.
- É como se de repente o tempo mudasse e você se visse de volta ao instante chave, ao momento da ruptura, e toda a dor daquele fato caísse de novo sobre você.
- Mas é isso mesmo, exatamente isso... como sabe?
- Meu amigo, você entende. Todos nós já vivemos isso.
- Sim, como não saber? É uma verdade tão universal, tão agarrada em nossa pobre alma estropiada.
- É uma verdade do tempo e da memória, e do sangue e das lágrimas, e dos sinais elétricos que se repetem em nossos corpos, reforçando a mesma mensagem, criando fantasmas na nossa carne...
- Como eu gostaria de poder ter evitado tudo o que aconteceu, de ter percebido antes o rumo que as coisas estavam tomando, de ter enxergado a tempo a que fim meus atos levariam...
- Você não pôde, amigo, nem poderia, de maneira nenhuma. Você pôde reparar os sentimentos, mas não os fatos. Você deixou seu pai em paz, e assim encontrou sua própria paz, mas nunca teria podido mudar o destino que havia escolhido para si.
- O tempo é tão estranho... Nos momentos de dor, quando o aperto surge silencioso e recrudescente, um bolero cruel, eu sinto que estou de novo mergulhando nos olhos do meu pai, e lá dentro eu encontro momentos da minha infância, quando ele vinha quieto me ver brincar, e ficava lá, parado num canto, sorrindo e deixando que as imagens do filho se gravassem em suas retinas, em sua memória. É exatamente como se eu voltasse àquele momento, e enquanto a dor perdura, vivo uma vida inteira de novo, mas quando a dor termina, nem um minuto se passou.
- O tempo não existe a não ser dentro da gente, a não ser na nossa alma. O único contador de tempo confiável é nossa própria consciência. E ainda assim, esse pedaço da existência, esse movimento indecifrável, o tempo, não tem nada de humano. O tempo é implacável, irredimível, irreversível, e por mais que nos postemos firmes contra ele, acabamos devorados de dentro pra fora, reduzidos sem perdão a uma última camada de pó.
- E no entanto, permanecemos.
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Um comentário:
Nao ha o que dizer. "A Roda" comanda.
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