quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Leituras: Novembro de 2008

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Um só vê absurdo e vazio na existência. O outro enxerga e acredita numa transcendência possível e no lado místico das coisas. Um escreve de forma direta, seca, um estilo que não dá margens para a dúvida: a vida é assim mesmo. O outro possui um estilo poético, enfeita, deixa as palavras fluírem. Ambos estão entre os grandes escritores do século XX. Albert Camus e João Guimarães Rosa, autores de O Estrangeiro e Primeiras Estórias, têm pontos de vista bastante diferentes sobre a realidade. Isso não significa, porém, que um deles esteja errado. Afinal, o contrário de uma Grande Verdade, já nos dizia Niehls Bohr, também é verdadeiro.

O Estrangeiro, de Albert Camus: Livro aberto a muitas interpretações, esse de Camus. O filósofo existencialista escreveu vários livros, que são geralmente tratados como alegorias para o estado das coisas naquele nosso século XX. Sou da opinião de que em livros do tipo do Estrangeiro as coisas parecem sempre muito piores e mais sombrias do que são, mas isso não tira o valor delas, nem tampouco impede que elas estejam exprimindo uma verdade válida. Encarei O Estrangeiro, em princípio, como o julgamento de um criminoso pelos motivos errados. Mersault matou um homem sem motivo nenhum, isso é fato. Mas acabou sendo julgado (pela sociedade, pelo sistema...) por não ser hipócrita, por ser pragmático, por não ter chorado no enterro da mãe simplesmente porque não via motivos para isso. Ele é culpado, sim, mas seus pares o acusam de crimes inexistentes. O retrato de Mersault é o de um homem sem-motivo, o de todo homem (ou mulher, ser humano enfim), que vive apoiado em valores alheios, para manter as aparências, mas a partir do momento em que todos fazem isso, é bem óbvio constatar que simplesmente não existem mais valores, de nenhum tipo, e todas essas pessoas estão apoiadas em um arcabouço ilusório chamado, ta-da!, civilização.

Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa: O maior escritor brasileiro do século XX (talvez de sempre), após alcançar um nível sublime com os contos longos em Sagarana, as novelas em Corpo de Baile e o romance em Grande Sertão: Veredas, resolveu aplicar sua arte nas estórias, os contos curtos que povoaram boa parte de sua obra posterior. O cenário, como sempre, é o sertão. Não necessariamente um sertão localizado no tempo e no espaço, embora às vezes aconteça, mas um sertão mítico, como aprazia à Rosa. Os gêneros de cada conto são diversos, mas eles estão de certa forma emoldurados. O livro é composto por 21 contos, e o 11º, ou seja, o do meio, chama-se O espelho. O primeiro e o último contos, As Margens da Alegria e Os Cimos, apresentam os mesmos personagens no mesmo espaço. Assim, é possível identificar recorrências de temas, e suas variações. Tanto em Famigerado quanto em Fatalidade, por exemplo, um homem típico do sertão vem até a casa de algum doutor, professor, alguém ilustre, “civilizado”, “da cidade”, para pedir ajuda. No primeiro caso, porém, é um bandido que tem sua sede de sangue por alguém que poderia tê-lo ofendido apaziguada , enquanto no segundo é um pobre diabo sem violência que vem pedir ajuda a um homem da lei contra um valentão, que acaba morto pelos dois. Desse modo, Rosa vai nos apresentando a violência, o misticismo, o trivial, o psicológico, o engraçado do sertão e suas gentes. E nos ensina a olhar para o mundo e ver.
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