terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A Fonte da Donzela

Inspirado em uma fábula sueca medieval, A Fonte da Donzela traz claros os sinais de sua ascendência, mas ao tempo se encaixa perfeitamente na cinematografia de Ingmar Bergman, ao tratar de seus temas majoritários: a religiosidade e as relações humanas/familiares. A história da virgem que vai à igreja do vilarejo levar velas na sexta-feira santa e é estuprada e morta por pastores que depois encontrarão abrigo na casa de seus pais funciona não só como um drama contundente e arrasador, mas também como uma reflexão, à maneira bergmaniana, sobre violência e vingança.

Trata-se, é bom dizer, de um dos filmes mais acessíveis do diretor. A história é direta, linear e contida em um curto espaço de tempo. Ganhou o Globo de Ouro e o Oscar de melhor filme estrangeiro, além de uma menção especial no Festival de Cannes, mas não é um dos filmes mais adorados pelo diretor. Entretanto, considerando de quem estamos falando, mesmo um filme renegado pode adquirir status de obra magnífica.

As duas protagonistas do longa representam, de certa maneira, embora não em todos os sentidos, posto que o filme não é uma alegoria, as duas forças espirituais que ainda contrastavam na Suécia da Idade Média: o paganismo e o cristianismo. Karin, a donzela do título, é a única filha viva de uma família cristã devota, e recebe muito carinho do pai e da mãe. Embora seja um pouco mimada (e saidinha), é amorosa e boa com todos. Sempre sorrindo, inocente, tem a pele clara, os cabelos louros, e olhos brilhantes. Ingeri, por sua vez, é filha da empregada da casa. Suas aparições são sempre um pouco assombreadas, e ela está sempre suja e com a cara fechada. Pagã, adoradora de Odin, está grávida, de pai desconhecido, e vive amargurada.

Quando Karin é mandada pelo pai para levar as velas, leva Ingeri junto, e o decorrer dos acontecimentos revela que as duas não são, afinal, tão diferentes assim. A narrativa é pontuada por situações simbólicas. Ao preparar o pão de Karin para a viagem, Ingeri coloca um sapo dentro, para descontar na outra sua inveja e raiva. Como ela revelará depois, ela desejava, naquele momento, que algo ruim acontecesse a Karin, que ela fosse tomada por algum homem para aprender a não brincar com fogo. Depois, quando já estão no caminho, Ingeri, que sempre se portara como conhecedora de coisas que Karin nem imaginava, fica com medo da floresta escura e deixa a outra prosseguir, sozinha e despreocupada. Karin então é abordada pelos pastores – dois homens e uma criança -, que a levam para tomar um lanche em uma clareira. A tensão começa a aparecer, mas a donzela percebe tudo muito lentamente. Finalmente, ao oferecer mais um pão aos homens, o sapo salta de dentro dele – símbolo da “maldição” de Ingeri-, e Karin é estuprada e morta, enquanto a serva, que se decidira a segui-la até ali, acompanha tudo perplexa e sem ação.

Bergman demonstra, assim, as fraquezas e idiossincrasias de cada uma das moças, e o que suas atitudes provocam, em si mesmas e nos outros. Depois, quando os pastores chegam à casa dos pais de Karin, são muito bem recebidos, embora os pais estejam preocupados com a demora da filha em voltar para casa. Nesse último ato do filme, os protagonistas são o garoto, irmão dos pastores que acompanhou o ato criminoso dos mais velhos em silêncio, e Töre, pai de Karin. Um senta na frente do outro, à mesa, na hora da refeição noturna. O garoto não consegue comer nada e permanece inquieto, enquanto Töre permanece em silêncio sentado em sua cadeira de patriarca. Os fatos se desenrolam e a mãe de Karin acaba por descobrir que os pastores mataram a filha, o que corre para contar ao marido.

Töre, a partir desse instante, revelará o que o atormenta, deixando pouco a pouco seus sentimentos, que até então permaneciam escondidos, serem expressos por seus lábios e por suas ações. Acontece que Töre, a despeito do fervor da mulher, era um homem prático, sem grandes arroubos de fé. Ao saber da morte da filha, no entanto, começa a se desequilibrar, e sua praticidade se converte em desejo de vingança. Com a ajuda de Ingeri, que retornara e permanecia desesperada, culpando a si própria pela morte de Karin, Töre pratica um ritual pagão para ter forças em sua vingança. Invade o salão onde os pastores dormiam, os acorda e apunhala os dois mais velhos, para depois, sem piedade, atirar o mais novo contra a parede e assim matá-lo. Imediatamente depois, ele roga piedade pela primeira vez, e sua mulher abraça o corpo da criança.

Esses são os acontecimentos mais fortes usados para denotar a questão da vingança e do conflito entre cristianismo e paganismo. Töre é cristão, mas quando a praticidade e os sentimentos "exigem" retorna ao paganismo, para executar sua vingança. Depois, ao encontrar o corpo da filha, se prostra de joelhos e questiona a Deus o porquê daquilo estar acontecendo. Mesmo sabendo que era errado, ele matou por vingança, e Deus deixou que ele o fizesse, assim como deixou que os pastores estuprassem e matassem sua filha. Ainda assim, Töre promete que, para reparar seus pecados, construirá com as próprias mãos uma igreja, no exato lugar em que a filha morreu.

Bergman, no entanto, mais uma vez à sua maneira, deixa que algo novo aconteça, após o manifesto de desolação do pai. Ao retirarem o corpo de Karin do chão, começa a jorrar água de onde estava sua cabeça, água que desce até riacho que corre ao lado, e faz alguns se encolherem em adoração, enquanto o fade out engole suas imagens. Bergman, pois, não dá respostas fáceis, mesmo em seu filme mais acessível, nem absolutas. Bondade e crueldade se sobrepõem, amor e ódio. A mesma pessoa é capaz de praticar atos belos e atos maus, e Deus é capaz de deixar que o pior aconteça, assim como de acalentar os corações dilacerados com uma fonte de águas claras. O fato de a fonte ser a última coisa a aparecer no filme o coloca como uma mensagem de esperança, mesmo diante do vazio e da dor, mas, novamente, não existem respostas fáceis, nem absolutas: existe o mundo, e nós seres humanos, e o que fazemos dele, e por fim as conseqüências, sejam elas quais forem.
.

Nenhum comentário: