terça-feira, 9 de junho de 2009

O Nascimento de uma Nação

Como pode um dos melhores e mais importantes filmes de todos os tempos ser tão horrorosamente racista? Como pode um artista tão ciente de seus artifícios formais ser tão cego em relação ao odioso discurso que proclama? O Nascimento de uma Nação coloca-nos diante de uma questão importantíssima da arte, a de como compreender e aceitar uma obra que, por mais assustadoramente desumano seja o discurso que traz em si, continua sendo uma obra-prima. Os exemplos são inúmeros, e contundentes, o que reforça a importância dessa questão. Alguns artistas, como Richard Wagner, anti-semita, embora tivessem posições bem questionáveis, não as traduziam para sua arte. Em outros casos, como n’Os Lusíadas de Camões ou em outras obras medievais/clássicas, o racismo é latente, mas não assume um papel central. No entanto, há o caso das grandes obras-primas cujo fio condutor é a defesa de um discurso odiável. Nesse grupo, alguns dos mais recentes e eloqüentes exemplos são O Triunfo da Vontade, assombrosamente fantástica exaltação do nazismo, dirigido por Leni Riefenstahl, e o próprio O Nascimento de uma Nação, a polêmica obra-prima de D. W. Griffith.

Chega a ser cômico o racismo do filme. Baseado em um romance de Thomas Dixon, Nascimento é um retrato apaixonado da Ku Klux Klan e de como a organização “salvou o Sul da anarquia do domínio negro” (!!). Sim, é isso mesmo, o filme exalta a KKK como mantenedora da ordem e da civilização do Sul Americano contra o caos trazido pelo governo dos negros recém libertos e com poder de voto. Algumas cenas são inacreditáveis. Por todo o filme, há alguns atores negros, mas a grande maioria dos personagens negros é interpretada por brancos usando black face, principalmente nas cenas em que contracenam com atrizes brancas. Após o fim da Guerra Civil (que toma a primeira hora do filme) e o assassinato de Lincoln (que, embora seja mostrado como um homem justo, tem um aspecto sombrio), as eleições são manipuladas pelos republicanos do Norte, e os negros chegam ao poder na Carolina do Sul. Então, somos apresentados a uma seção da Assembléia legislativa do estado, cheia de negros desrespeitosos que põe os pés descalços sobre as mesas e escondem garrafas de bebida sob elas, enquanto os “helpless whitemen” assistem a tudo do fundo do plenário. No último terço do filme, a coisa piora. Os negros são retratados como baderneiros violentos, uma ameaça às famílias e à ordem civilizada. Chega-se ao extremo de mostrá-los retirando brancos à força de suas casas para cobri-los de piche e jogar penas sobre eles! Depois, quando a paz é restabelecida pelos “heróis” da KKK, estes marcham triunfalmente pela cidade que os acolhe aliviada. Nas próximas eleições, quando os negros saem de suas casas para votar, são acuados pelos cavaleiros, que os impedem de praticar de seu direito. E tudo isso mostrado forma gloriosa e enaltecedora.

Como já dito, o filme é uma obra-prima inquestionável. Reuniu em si inúmeras inovações narrativas, praticamente inaugurando a grande tradição americana de contar histórias. E apesar de longo, e mudo, tem um ritmo ótimo, que ajuda os que não tem costume de ver filmes da Era do Silêncio a acompanhar a história. Griffith foi um gênio, e aqui ele estava em sua melhor forma. Contudo, ele estava também cego por seus próprios costumes e educação. O Nascimento de uma Nação é um filme antibelicista, que insiste repetidamente na fraternidade universal e em quão horrível é a guerra, mas se sustenta sobre uma ideologia totalmente contrária ao próprio discurso que profere. Somente a cegueira pode justificar tal contradição num filme tão sólido e coeso. Por isso, pode-se dizer que O Nascimento de uma Nação nos deixa duas mensagens. A primeira é que é possível construir grandes obras de arte em um solo odioso. E a segunda é que um ser humano pode defender apaixonadamente dois discursos contraditórios sem perceber que um é tão contrário ao outro. Por isso, essa grande obra-prima da sétima arte merece se vista. Não só por seu imenso valor artístico, mas para nos lembrarmos de que a cegueira é imperceptível e é preciso permanecer atento para não afundar sob o peso de duas ideologias contraditórias.
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2 comentários:

Elienai Araújo disse...

Meu caro, que bom que tenha voltado. É sempre bom te ler.
Quanto ao filme em questão, apesar de toda a torpeza ideológica de que é revestido, e como você muito bem frisou, a inovação narrativa, mais precisamente os acontecimentos simultâneos, a montagem paralela, é algo a sempre ser louvado. Particularmente, prefiro, do mesmo diretor, "Intolerância", uma super produção na época e que, à parte os inevitáveis anacronismos técnicos, te prende na frente da tela. Para mim, ali Griffith mostra-se, creia, um grande humanista.
Abraços e nos falamos, buddy!

Juka disse...

Olha só quem voltou *-*
E voltou com tudo!!!
'...O Nascimento de uma Nação nos deixa duas mensagens. A primeira é que é possível construir grandes obras de arte em um solo odioso. E a segunda é que um ser humano pode defender apaixonadamente dois discursos contraditórios sem perceber que um é tão contrário ao outro.'

adorei (:

e posta maais, poxa.
quando tu disse que ia sumir eu achei que vc postaria uma vez por semana e panz...magoei com sua 'sumida' :3