quarta-feira, 1 de abril de 2009

Leituras: Fevereiro e Março de 2009 - A Montanha Mágica, de Thomas Mann

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Em fevereiro não teve aqui no blog o habitual “Leituras” porque eu ainda não havia terminado de ler A Montanha Mágica, o livro daquele mês. De fato, só fui terminar de lê-lo há poucos dias, no final da semana passada, após aproximadamente dois meses de contato com a obra. A justificativa para tamanho alongamento não está em mim, em eventuais problemas que eu tenha tido que me impediram de ler com freqüência. Está, na verdade, no próprio livro, pois como diz o narrador, no “Propósito” que o abre: “Não será, portanto, num abrir e fechar de olhos que o narrador terminará a história de Hans Castorp.” Tal característica, de exigir uma alongada leitura, é intrínseca a A Montanha Mágica, não só pelo seu tamanho – a edição que li tem 950 páginas – mas sobretudo pelo seu espírito, pelo manejo peculiar que faz do tempo de seu enredo e que acaba nos conduzindo a entrarmos nós mesmos em seu ritmo.

Lançado por Thomas Mann em 1924, seis anos após o final da Grande Guerra, o romance é vasto e complexo, e trata dos mais variados temas. Também, pudera: A Montanha Mágica é a crônica do espírito europeu às vésperas da Grande Guerra, das idéias que percorriam o continente e de como a relação entre elas acabou levando a Europa até a Guerra. É, portanto, um livro simbólico – para não dizer alegórico -, cheio de “coisas que significam” e de imagens e pensamentos que se intercruzam e referenciam. No entanto, ao mesmo tempo é uma obra profundamente realista, de um estilo clássico, de prosa bela, reminiscente dos franceses do início do século, de retrato minucioso de personagens e acontecimentos. Assim, percebe-se naturalmente outra característica central do livro: a ambigüidade. Mas, antes de prosseguir nessa toada de exposição das idéias do romance, vamos voltar um pouco no caminho e descobrir do que se trata, afinal, o livro.

A história começa quando Hans Castorp, “jovem singelo” recém-formado em engenharia naval, chega a Davos, na Suíça, para visitar seu primo, Joachim Ziemssen, internado há alguns meses em um sanatório para tuberculosos nas montanhas. Ziemssen quer entrar para o exército, é um rapaz sério e sisudo, enquanto Castorp é um “paisano”, não está preocupado com muitas coisas além de seus charutos honduranos e alguns passeios para espantar o tédio. No entanto, a caminhada do tempo trará mudanças dentro de Hans Castorp, à medida que ele for conhecendo novas pessoas e a si mesmo. Seus pensamentos e experiências, tais como a disputa que os intelectuais Settembrini e Naphta travam por ele, seu amor por madame Chauchat, e a amizade com Mynheer Peeperkorn, cada uma dessas coisas o levará um passo adiante em sua descoberta como indivíduo. No entanto, ao invés de terminar o romance como um indivíduo maduro e experiente, ele desce da Montanha Mágica e vai lutar na Grande Guerra que acaba de estourar, quando é insinuada sua morte nos campos de batalha. Pode-se falar, então, de A Montanha Mágica, como um grande romance de formação, mas, ao mesmo tempo, como a paródia de um romance de formação, pois Hans não completa o ciclo, não atinge o final de sua jornada, já que a Guerra o “tirou do caminho”. Temos aqui, então, mais ambigüidade. Romance de formação ou paródia? Indivíduo pleno ou destruído pelas circunstâncias? Tais perguntas, e outras de natureza semelhante, colocam-se em nossa mente no decorrer da leitura.

A Montanha Mágica é, pois, um livro ambíguo ao máximo, recheado do espírito relativista que impregnou o século XX. Todas as ideologias e atitudes dos personagens são relativizadas. Dão-se longas discussões teóricas mas ninguém “sai vencendo”, tanto um quanto outro argüidor parecem estar ao mesmo tempo certos e errados. Personagens a princípio apresentados como tolos se mostram majestosos, e logo depois como tolos novamente, e assim sucessivamente, numa alternância de tolice e majestade que não chega a um termo a não ser pela violência, assim como as supracitadas discussões filosóficas não encontram vencedor, mas somente o fim, com a violência. São atitudes simbólicas do que aconteceu com a Europa na Primeira Guerra Mundial. Mas, antes de falar do conjunto, voltemos novamente, para falar, dessa vez, dos indivíduos que pontuam a narrativa.

Hans Castorp, o protagonista, passa sete anos no sanatório. Inicialmente, vai para ficar três semanas, mas descobre ter também focos de tuberculose, e acaba permanecendo ali. Ao longo do romance, é ele o centro do enredo, a medida das coisas que são contadas. Sua mente é devassada para nós, num dos trabalhos mais completos e complexos de penetração psicológica já feitos, e acompanhamos as transformações por que ela passa. Nos sete anos que ele passa ali, um dos temas que mais lhe ocupam a mente é o do tempo, a descoberta do que ele é e o que significa. Essa pergunta, no entanto, permanece sem resposta. O mais próximo disso que temos é a constatação de que o tempo passa não segundo o relógio, mas segundo nossa cabeça. Como comentei no início do texto, o tratamento do tempo no romance é singular, justamente por expressar essa situação: os cinco primeiros capítulos – aproximadamente metade do número de páginas – dão conta do primeiro ano de Castorp no sanatório. O sexto capítulo – as duzentas e cinqüenta páginas seguintes – falam dos próximos meses. E o sétimo e último capítulo, que percorre as páginas restantes, fala sobre os outros cinco anos do rapaz do sanatório, anos esses tomados por grande tédio. Assim, é expressa de maneira singular a percepção temporal do protagonista, percepção da qual nós mesmos acabamos compartilhando. Falarei mais de Castorp adiante, mas antes, observemos as figuras que o rodeiam.

As principais, na primeira parte do livro, são Settembrini e Naphta, os intelectuais opositores que disputam o espírito de Hans Castorp. São freqüentemente citados como personificações do pensamento liberal e conservador do início do século, mas não é tão simples. Settembrini é um republicano, um beletrista que sempre fala plasticamente e expõe suas idéias de maneira pedagógica, é um intelectual que quer resolver os problemas da civilização. Naphta, por sua vez, é um descendente de judeus e ex-jesuíta que, embora seja a personificação do radicalismo religioso, antimaterial, é também defensor do comunismo. Digo embora porque hoje, ou mais tardiamente no século XX, o “progressismo” está mais associado à esquerda, enquanto o “conservadorismo” à direita. Independente da vacuidade de tais rótulos, hoje e sempre, é por esse motivo que não se pode chamar o confronto entre Naphta e Settembrini de um confronto entre a ideologia progressista e a conservadora, mas antes entre o confronto de duas visões de mundo bem diferentes. Como se sabe, porém, quando duas pessoas pensam ter idéias totalmente opostas, naturalmente a semelhança entre elas é maior do que imaginam. No caso, Naphta e Settembrini compartilham um certo desprezo pelo indivíduo enquanto tal, e tratam de suas idéias somente no campo da generalização e da lógica pura e simples, sem levar em consideração o sentimento humano.

Para este, Hans Castorp precisa recorrer aos outros dois “coadjuvantes principais” do livro, madame Chauchat e Mynheer Peeperkorn. A primeira é o grande amor de Hans, a mulher que lembra a ele um rapaz que o encantava na infância, uma mulher de ar misterioso que se entrega aos poucos. Peeperkorn, por sua vez, é um homem rico, imponente, com uma vida pautada pelo deleite, uma personalidade absolutamente magnética que, por outro lado, não consegue dizer uma frase que seja por completo, só diz coisas vazias e genéricas. Finalmente, há Joachim Ziemssen, o primo de Castorp, um homem profundamente ligado ao seu dever.

São esses os personagens que orientam a caminhada de Hans Castorp pela Europa do início do século, representada no microcosmo do sanatório. E, ao mesmo tempo, são eles que o conduzem em sua própria caminhada, na jornada de Hans para encontrar a si mesmo. Settembrini é o iluminismo, Naphta é o radicalismo, Joachim é o dever, Chauchat é o amor, Peeperkorn é o hedonismo... mas o mais importante é que eles são Settembrini, Naphta, Joachim, Chauchat e Peeperkorn. Em seus primeiros anos de estada no sanatório, Hans Castorp deixa-se influenciar profundamente pela pedagogia de Settembrini e Naphta, e cresce em sua capacidade filosófica. Em um dado momento, porém, na época que seu primo sai do sanatório para servir no exército, Castorp sai para esquiar na neve e, perdido em uma tempestade, tem uma visão aterradora: pessoas vivendo uma felicidade plena, iluminada, mas atrás delas, no meio daquela felicidade, há um edifício sombrio e misterioso, e ao adentrá-lo Hans Castorp vê duas mulheres velhas de aparência horrível devorando uma criança. Quando acorda do sonho, ele medita um pouco sobre aquilo, renega a influência que Naphta e Settembrini tinham sobre ele, e conclui: “Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos.”, que é também a única frase em itálico do livro. Esse é o ápice da formação de Castorp: ao alcançar o topo da Montanha Mágica, ele descobriu uma Verdade. No entanto, quando desce de volta para o sanatório, esquece tudo o que pensara, e a sabedoria alcançada perde-se. Embora após essa experiência Hans Castorp esteja mais maduro, o essencial se perdeu. Aí está a verdade sobre sua formação como indivíduo (e a formação do europeu como indivíduo, por extensão), aí está a triste verdade do espírito da época, o espírito que acabou na Grande Guerra.

Pois, após esse momento, é ladeira abaixo para Hans. Passamos a gostar mais dele, por uma certa serenidade que ele alcança. No entanto, as coisas ao seu redor vão se fragmentando, concedendo-lhe somente um pouco de alegria antes de desaparecer. Joachim retorna ao sanatório, mais doente do que nunca, e acaba por morrer. Chauchat, que partira há anos, volta finalmente, mas acompanhada de Pepperkorn. Tomado pelo ciúme, Hans Castorp chega a desprezar o homem, mas é atraído de tal maneira por ele que se tornam grandes amigos. Essa alegria dura pouco, porém: em seu último discurso, Peeperkorn atinge o auge do vazio ao falar contra o barulho de uma cachoeira e não ser ouvido. Todavia, ironicamente era aquele o discurso mais importante que jamais fizera, pois estava anunciando seu próprio suicídio, que comete no dia seguinte. Após isso, Chauchat parte, deixando a Castorp somente a lembrança de um beijo e uma chapa (de raio-x) de seu pulmão. Mais sozinho que nunca (pois não podia contar nem com a esperança do retorno), Hans vê os anos passarem cada vez mais rápidos, iguais e tediosos ali em cima, e vê as pessoas ao seu redor serem tomadas ao mesmo tempo por um grande tédio e uma grande irritação, que culminam, em sua visão, no bater de armas final, a Grande Guerra. Até mesmo Settembrini e Naphta, até então tão controlados, se ofendem e marcam um duelo, no qual o último, indignado com a atitude do primeiro de atirar para cima, aponta a arma para a própria cabeça e puxa o gatilho. São essas as imagens e os símbolos do que acontecia na Europa. A violência contra si mesmo, a desintegração das unidades, o esvaziamento dos discursos. Como Pynchon escreveria anos depois, sobre a Segunda Guerra (que foi uma extensão da primeira): a Europa afundava nos próprios dejetos.

E ainda assim, há algo para segurar-se. No final, influenciado pela memória do primo e pela audição de A Tília, uma canção de Schubert, Hans conclui que vale a pena lutar e morrer por uma “canção mágica”, morrer com uma “nova palavra de amor” nos lábios. Ele conclui, enfim, que da morte pode surgir a vida e o amor, e que vale a pena morrer e lutar para que, dos destroços do passado, surja um futuro luminoso. Assim, Hans Castorp vai para a Guerra, e na última vez que o vemos ele está em uma batalha, no meio de névoa, chuva e crespúsculo, cantarolando A Tília. Mesmo aí, portanto, nas linhas finais de sua obra-prima, Thomas Mann não cede espaço às certezas e ao absoluto. Mesmo no final há ambigüidade, há dúvida, e por isso ele termina com perguntas. As implícitas, como “Hans Castorp morreu ou não?”; “Há ou não esperança?”; “A vida pode surgir da morte?”; e a definitiva, que toma a última linha, em que somos levados indagar – especialmente hoje, quase meio século após a tragédia, após cem anos de outras tragédias ainda maiores -: “Será que da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?”

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Esta foi uma singela tentativa de abarcar o espectro geral de A Montanha Mágica. Obviamente, é um resumo/crítica muito falho, especialmente se considerarmos o principal conselho que Thomas Mann dá ao leitor do livro: “leia-o duas vezes”. No entanto, acho que da visão geral dos personagens e acontecimentos consegui extrair alguma coisa. Ainda voltarei, no decorrer dos meus dias, a ler esse livro novamente, com certeza. Por enquanto, porém, contento-me com a lembrança, com os momentos que surgem de repente, me surpreendendo ao saltar detrás de um arbusto da memória, e trazem para mim nos dentes um novo pedaço da compreensão, uma nova partícula da Verdade que eu encontrei – mas esqueci, após menos de um segundo – ao escalar A Montanha Mágica.
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