quarta-feira, 11 de junho de 2008

Uma Certa Paranóia

Bah, tudo bem que o poema tava horrível, mas não precisava esnobar também... alguma alma caridosa podia ter dito algo sobre ele. Enfim, só de raiva vou colocar um negócio aqui pior ainda. Topam?

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Hitler e Stalin, redivivos, saltam das paredes e me encaram. Sorrisos doentios em suas caras febris, suas mãos largas balançando alicates à minha frente. Eu ouço as almas dos judeus gritarem nos fornos. Seus corpos estrebucharem sob o peso do gás. Os inimigos do regime serem fuzilados. Um, dois, três. Todos eles com suas cabeças cortadas e as orelhas direitas em sacos, para efeito de contabilidade. A morte de milhões é estatística.

O Judeu Errante agarra meu pé. Veio cobrar a dívida. Ele conhece meus sonhos. Trinta moedas de prata e um corpo pendulando de um lado para o outro. Sua pele é do amarelo da vergonha, mas a imagem é difusa. Os olhos embotados querem se aproximar, mas um movimento de minhas pernas o repele. Ele sai correndo, sua corcunda inominável, pés tortos, um saco de riquezas nos ombros.

Na névoa, eu chocalho minha cabeça, tento derrubar esses pensamentos ruins. Ai deles. Tão perseguidos, tão sofredores, a troco de nada. Foram tirados das terras da servidão, e expulsos da terra prometida. E tiveram que sacrificar seus filhos ao novelo de ouro e daí nasceu o Belo Povo. Eu os vejo em festa, pulando alegres, comemorando em círculos. Cobertos de leite e mel, em rejúbilo, sorrisos reluzentes.

Mas o leite e o mel escarlateiam, numa vermelhidão pegajosa. Sobre eles, cimitarras e montantes e homens explodindo. Tirem-lhes os bancos, tirem-lhes os bens, tirem-lhes os filhos. Deixe que a Gloriosa Legião marche sobre suas cabeças. Deixe que o gás e o fogo os liquefaçam. Deixe que seus gritos se tornem inaudíveis. Faz parte da ordem do universo.

Enquanto eu, deitado só em meu canto, penso neles, suas mães gritam. O Judeu Errante vem exigir seu quinhão, mas sou eu o ventríloquo. Ai de mim! Ele vem me pegar. Ele vai me colocar no saco e me levar embora, e cobrar meu peso em ouro. Enquanto Seu Lobo não vem, me preparo para submergir. A escuridão se torna menos espessa, a luz mais próxima. E quando aliviado surjo para o sol e o ar puro, estou pisando numa pasta grudenta e amorfa de judeus mortos.

Meus olhos se rasgam ofegantes, as pálpebras para cima e para baixo, emitindo intermitentes o ar, reminiscência da respiração presa, indecisa. A cama está encharcada. Levanto devagar, desgrudando minhas costas do pano empapado. Abro a janela, sem força, e de cueca começo a passear no escuro. O piso parece mole, mas uma revigorante brisa me envolve. Alcanço o aparador, e começo a verter água de uma garrafa que ali repousava para o copo.

Levo o recipiente aos lábios, e deito neles a água fresca. No silêncio monótono, um estampido vem interromper a ordem. Uma porta batendo, forte. Engasgo. Deixo o copo e, rápido, alcanço meu quarto. A porta fechada me encara, como se de seus umbrais pudesse me desafiar. Receoso, giro a maçaneta e lanço um olhar para dentro do quarto. As cortinas esvoaçantes me indicam o agente da comoção.

Balanço a cabeça, repreendendo-me por uma preocupação de natureza tão idiota. Fecho a janela e volto a deitar. Deixo meus músculos relaxarem e meus membros se acomodarem no colchão. Só então fecho os olhos, e me entrego ao sono. Ele, contudo, não vem me levar. Fico esperando, de olhos fechados, mas parece inútil. Torno a abrir os olhos, e os fecho novamente. Reviro na cama, arrastando a colcha e os lençóis, mas continuo a não enxergar o sono se aproximando. Impaciente, entrego os pontos finalmente, e começo a mirar o teto, tentando encontrar algum carneiro para contar.

Ali, na insônia e na escuridão, ouço a casa gemer. As luzes estalam, o soalho apita, as portas uivam. E o sono não vem me levar. Só o que eu sinto são seus passos leves, passeando pela casa toda, trancando janelas e conversando com os móveis. Meus olhos tentam acompanhar sua caminhada invisível. Uma vez, e mais uma, e ainda outra, eles se voltam, para lá e para cá, buscando o som dos passos do sono. A perseguição os deixa exaustos. As hostes das pálpebras começam a avançar. A falange das pestanas vai fechando-se lentamente, enquanto o exército dos olhos despertos em perseguição vai sendo derrotado, soldado por soldado, até que as duas fileiras se encontram... e um estampido forte as faz recuar.

Como se estivesse emergindo de um afogamento, salto da cama quase a me debater. O susto e o movimento brusco fizeram meu coração disparar em cavalgada. Deixo para ir atrás dele depois, e opto por acender as luzes. Elas permanecem frias, contudo, decerto obra do destino cruel, e novamente perco o controle. Dessa vez, foram meus dedos que começaram a fugir de meus comandos. O coração relinchou mais forte, também, e os joelhos por um instante vergaram.

Prossegui, todavia, tateando pelas paredes na escuridão, muito silenciosamente, buscando ouvir algum movimento, algum indício da origem do barulho. Ao me aproximar da sala, antevejo uma estranha luminosidade, como se a porta estivesse aberta para a noite. Ainda mais lentamente, dou outro passo, com as mãos arrastando-se pelas paredes indivisíveis. Meus dedos trêmulos se soltam e voltam a descer sobre a superfície desconhecida, e os pés vão languidamente perseguindo sua orientação.

Quando estou a pouca distância de poder ver a sala e a fonte da estranha luminosidade, minha mão desce em falso e meu pé escorrega para a um buraco, disparando então a manada das minhas sensações. É como um estouro morro abaixo, o coração sendo arrastado e outros animais rolando junto a ele, e atropelando meus exércitos dos olhos e do nariz e da boca. Bato em várias quinas, sinto alguns animais agonizarem. Finalmente, com um baque apocalíptico, a disparada acaba. O coração está ferido, vários outros animais também. Meu rosto está pegajoso, ele sangra.

À medida que consigo restabelecer a ordem da manada e das tropas, arrasto-me, buscando algum apoio. Choco-me com alguns objetos, e mais lentamente ainda continuo. Minhas mãos doem muito, minha língua está inchada. Acho que a mordi. Finalmente, encontro uma parede, e largo meu corpo sobre ela.

Após alguns segundos de respiração e calma, meu coração volta a cavalgar em disparada. Ele está vindo me pegar, eu penso. Eu sei disso, por isso meu coração está fugindo. Ele me empurrou escada abaixo, e agora só espera ter certeza de onde estou para descer. Será um massacre. Ouço um degrau ranger, e eu sei do que se trata. O Judeu Errante me encontrou, e agora vem cobrar sua dívida.

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Encontraram o velho morto no porão pela manhã. Estava num estado deplorável, só de cueca e coberto de sangue coagulado. Pobre coitado, mal se mudara e acontece isso. Era alemão, ao que parece, mas ia de país para país há tempos. Caiu da escada, disseram. E, na escuridão, não conseguiu encontrar o caminho de volta.

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