terça-feira, 14 de julho de 2009

Requiem aeternam dona eis

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Escrito em 2007, no primeiro semestre, e inalterado desde então. Interessante (pelo menos para mim) notar o que era minha prosa e em que ela se transformou. Esse texto, especialmente, tem em alguns momentos o que eu pretendia serem ecos de Joyce, meu ideal estilístico à época. Bom ou ruim, foi o início de uma etapa de amadurecimento da minha escrita.
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Tão só, o céu escuro observava a marcha fúnebre naquele deprimente ocaso invernal. Quatro figuras impávidas levavam o esquife azevíchico, a passos largos e lentos. Cabisbaixo, ele caminhava acompanhando a marcha, que avançava solene. O sol não era visível. O ocaso era somente sentido, pelo tom crepuscular da pouca luz que rompia as nuvens. Não chovia, mas um sopro suave levantava folhas ocasionais largadas ao chão, e as levava para longe da fortaleza funesta.

Pensamentos confusos, abstratos, apareciam aqui e ali, como marmotas que surgem da terra fofa. Evocavam atos recentes. Os mantos negros das carpideiras, esvoaçantes, como pensamento e memória, sorvendo as lágrimas indiferentes, ascendiam e ruflavam. O rumor insistente das ondas ia e vinha, trazendo uma imagem das profundezas, de onde estariam, talvez, os restos do homem que ele um dia chamara de pai. Tragado por elas, restou-lhe a possibilidade de ser lembrado, pelos corvos que aconselhavam os que permaneciam, ou pelas gaivotas pantagruélicas devoradoras de carne fresca.

O coração hesitante de sua mãe, ainda, saíra fugindo. Abandonou o corpo carcomido e sem forças, arrebentou a crisálida frágil que quedava insistente, e fê-la acompanhá-lo, até um lugar algum. Suas almas entrelaçadas podiam estar agora percorrendo a estrada de tijolos de pó estelar, sem destino. A elegia erguida para os mortos vinha, com as ondas, e permanecia quando elas recuavam. Na vigília, absoluto respeito e comiseração. Almirante Bronthothellis. Meus pêsames. Capitão Gancho. Meus pêsames. Marujo Jessélilick. Meus pêsames. Ele. Meus pêsames. Ela. Meus pêsames. Adeus. Nenhum ombro.

O pentalhão ainda andava. Ele esperava que os segundos se esvaíssem, que os instantes evaporassem, que os átimos tornassem-se átomos e explodissem absurdos. Mas não. O tempo ainda permanecia. Permanecia, enquanto a comitiva percorria as veredas entrecruzadas daquele labirinto, buscando endereços nefastos. À direita, uma balaustrada para um mausoléu sem nome erguido solene sobre o chão ainda vivo. À esquerda, moradas simplórias de mármore. Sobre cada túmulo, uma efígie. Um santo de pedra absorto em seus próprios pensamentos, com seu coração palpitando frio. Para que tamanha glória e pompa para restos humanos em decomposição, sumindo aos poucos enquanto afundam no solo? Era um mistério.

Chegam. Já percorreram os caminhos desencontrados de tal sodalício cadavérico. À sua frente, o último endereço de seus progenitores. Para ela, uma cova oblonga, a ser preenchida por um ser inidentificável. Para ele, um cenotáfio. Em memória de. O corpo pétreo de algum herói guerreiro lançava uma sombra sobre os cinco homens. Seu pai não estava ali, nunca estaria, mas aquela lembrança de granito duro só fazia tornar o ar mais pesado. O ataúde descia, silencioso, juntamente com o sol, sumindo no horizonte invisível. Salgado era o gado liliputiano que caminhava na grama molhada, assim como a visão do caixão descendo, semelhante às pálpebras semicerrando-se à fim de conter as lágrimas vazantes. Era amargo o som das roldanas roçando nas cordas que surgia de repente, e o azedume do vento turvava-lhe as sinapses, assim como a frieza fétida de sua própria saliva.

Quando o féretro tocou o solo profundo a sete palmos, montanhas precipitaram-se sobre ele. A terra o engolindo soltava grunhidos animalescos, como um animal demasiado faminto que encontra uma presa fresca. As próprias raízes do mundo retumbavam, proclamando a última ode que aquela mulher jamais teria. Ao seu lado, o cenotáfio permanecia silencioso. Ele rapidamente abandonou o sepulcro. De longe, a pequena elevação em que enterrara seus pais parecia o gólgota, recortado contra as nuvens sombrias que se erguiam imponentes. No cimo dos umbrais daquele calvário, uma frase eremítica estava marcada: Lembra-te que és pó. Pó, como aquele que se erguia do solo para abençoar algum lugar distante com o odor dos mortos. Pó.

A imagem da frase suscitava reflexões contraditórias em sua mente conturbada. Ela, mesma, se desfaria em pó algum dia. Cada página, cada pedra, mesmo se fosse gravada em diamante, a frase viraria pó. E então, ninguém mais se lembraria dela. Isso a tornaria menos verdadeira? Pelos séculos dos séculos, só o que subsistia dos séculos seculares passados era o pó. Mas subsistia. Os vestígios homéricos do início dos tempos ainda permaneciam em nós, assim como nós permaneceríamos em vestígio nos fins vindouros. Não parecia, a ele, muito animador.

Que espécie de repouso haveria para eles? Da genesíaca aparição no mundo, ela se tornara princesa absoluta, senhora de si e de muitos, por direito ou merecimento, intuição ou poder. A pompa gloriosa helênica ancestral não sobrevivera sequer à adolescência. A bancarrota, sincera ou subterfugidia, atinge a todos, do mais ancião menestrel à mais jovem donzela. Inocência não é algo que se compre por aí. Uma vez perdida, é para sempre, e assim foi, a ela. Ir más, mãos , primevos, secos e tristes. Pai ciência e Mãe temática. Ou vô ou Favó. Todos. Rodopiando impotentes, ao redor do fosso axial da desgraça. Só ela, quem diria, resistiu. Como um enclave, girando contra o redemoinho. De princesa, a plebéia, mas para sempre, ela.

Ele, mestre meu mestre. À moda da parônima da cidade dos mortos do Inferno, guardada pelos anjos caídos, encravada no continente primevo, nasceu do mar. Dos esferóides depósitos de vida do grande céu, esta, dos esferóides depósitos de vida d’algum marinheiro sujo, aquele. Ver nus os dias: vi Jó neles. Infância às toas, vêm-se os anos aborrecidos nebulosos excitantes e nada hesitantes da juventude. Desde já paixão: pela imensidão, segundo ele, da cor dos olhos de minha mãe. Foi na soma dos anos da soma do número bestial que ele ingressou na pequena Mar. Um dia, quando o sol subia na linha inencontrável, apareceu no cais, cansado. Lá estava ela, contando grãos de areia. Olharam-se. Seus olhos eram... os olhos de sua mãe. Um dia, enquanto o sal caía, incomensurável, partiam eles, casados.

Veio o primeiro. Você é? Veio a segunda. Veio o terceiro, ele. Vieram outros. O rochedo onde ficava o casebre confortável da família das famílias era sólido, e ali, onde as ondas rebentavam, um tom arroxeado tingia a pedra. Dia menos dia mais dia: dia. A canção do mar é ouvida, pela primeira vez com ardor, pelo jovem de nome de rei. Cheio de vontades, cheio de sonhos. Estes, foram rapidamente destroçados das rochas em meio a uma tempestade que não se soube. Nem o mar inteiro poderia conter as lágrimas da mãe. Tempo: dia mais dia menos dia: outro dia. A doença, de nome do titã monstruoso, filho da terra, que combateu Zé Deus, veio também. Mais uma que se vai. Mais uma que come pó. As lágrimas da mãe poderiam encher uma lagoa. Outros foram, todos. Como um inocente dominó monstruoso, derrubando lentamente as fundações da mente de cada um deles. Por fim, elas secaram. Restava um, ele, e o pôr-do-sol continuava o mesmo.

Por maior que fosse a dor do pai, e o amor do pai, o amor do pai pelo Mar, e a dor de abandoná-lo, era ainda maior: nem o mar poderia contê-la. Ano mais ano: anos. A separação, gradual e lenta, lenta e gradual, ocorreu como uma navalha cortando um filete de madeira. Eles, de um lado, ele, do outro. Mas, como numa dança, iam e voltavam, volviam e revinham. Nós, ele, eles, ainda eram uma família: o mar, a mãe, o pai, ele, o mar. As Aventuras do Grande Marujo Papai nos Mares Revoltos por ele amados. As Desventuras particulares da mamãe trancafiada em casa. Sempre faltava alguma coisa: no fim, os dois deram por sua falta: então, morreram.

Chegou em casa. A solidão gritava em seus ouvidos palavras de horror. Viu alguns bilhetes de pêsames. Ouviu alguns bilhetes de pêsames. Esboçou algo indefinível: há quanto tempo não sorria? Passo a passo, caminhou para a cozinha. Em um pequeno vidro, palavras minúsculas traçadas a mão. Então, foi. Tomo: capítulo: livro: papel. Palavras rabiscadas e jogadas ao lixo: uma por uma. Deitou-se.

Encarar o teto é um ato pacificador. Passo a passo, ele se tornou mais calmo, mais tranqüilo. A ânsia recente desaparecera. Pensou: o que ele queria para ele? O que ele queria para seus pais? Tanta tristeza, tanto sofrimento, ele não gostava disso. E então, achou a resposta. A felicidade era algo tão transitório por ser demasiado gigantesca para ser contida num corpo humano. Seu pai percorrera todos os sete mares e mais algum, buscando a fonte de seu amor: não encontrara. Sua mãe passara a vida dentro de casa, trancada: havia sido uma rocha contra as ondas, pouco a pouco se desgastando. Ele, situado entre dois opostos, nunca encontrara seu lado, somente pudera transitar de um lado ao outro em eterna exaustão. Agora, que o fim de aproximava, alegre, ele entendia. Sendo alma, seu pai se unira ao mar. Sendo alma, sua mãe se libertara de todos os grilhões e finalmente pudera voar. Juntos, percorreriam a eternidade. A morte é o caminho para o sublime.

Súbito, sentiu uma sensação diferente, um sentimento outro, estranho, fluindo por suas entranhas e conquistando seus pensamentos. Uma felicidade pura, sem motivo, que começava a correr por suas veias, irrigando todo o seu ser com essa calmaria surgida do nada. De repente, sem hesitação ou mistério, surgiu no nada a manifestação física dessa euforia, preenchendo o espaço ao redor.

Era o riso, incontrolável, brotando de sua boca como flores que se abrem para o sol, galhos novos, folhas verdejantes, girassóis se virando e sorrindo. Borbulhava, de fonte quente, nascente de rio que corre, sem bordas, vazando para os lados e altos, desembocando no mar luxurioso de alegria ímpar. Rãs pululavam de sua boca e se iam por campos vivos, plenos de pujança e abundância, o trigo nascendo do solo, pomares de frutas douradas, tomadas pela vermelhidão. Borboletas deslizavam como moscas na manteiga, enquanto peixinhos e peixões nadavam no mar de leite, lagoa branca, e seus píncaros afiados apontando para o céu da boca. O vale, garganta profunda, era bem visível, e a chuva, lágrimas do céu, vinha de espelhos brilhantes, para preenchê-lo. A natureza da face alegre serenou, então, finda a saga de desgraça e êxito que se espalhava a todos os ventos semeando calmaria. Finalmente, o silêncio. Havia paz.

Um último suspiro, um último sorriso, uma última exclamação, e então, repouso eterno.
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3 comentários:

Juka disse...

não tem nem o que comentar.
nunca mais reclamo das suas demoras, eu sempre quebro a cara porque você vem com algo maravilhoso pra mim logo depois e faz valer a espera.

Porém, há algo me intrigando...
o que tanto te atrai na morte e no jeito das pessoas a encararem?

Você fala disso de um jeito tão... ímpar.

Se é que a minha admiração por você tem como ser maior, acho que a cada texto ela cresce mais.

:*

João G. Viana/Pudim disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Bonito o fim, interessante a descrição.

Parabéns, Tuma!