Escrito para o certame literário da revista piauí, que acontece mensalmente pela internet. Eles dão a frase - no caso, de Antonio Muñoz Molina, em Beatus Ille: "Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite." - e tem-se que escrever, com ela no meio, um texto de no máximo 3.160 caracteres. Acabou saindo isso.
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Sob o rumorejar intermitente da chuva cadente, do vento soprando e da casa que gemia, ouvi com clareza o estrépito de seus passos. O barulho aproximou-se sem pressa, cadenciado, até o súbito obscurecimento da luz que vazava por entre a soleira e a porta revelar a presença de algo atrás da minha passagem para o mundo exterior.
Pensei por um segundo em erguer-me na cama, mas o estalo da maçaneta rodando me impediu, e acompanhei deitado o longo rangido que se seguiu. E então, recortada contra a luz que emanava da luminária do corredor, eu a vi. Toda de preto, desde os sapatos delicados até a longa cabeleira presa por uma presilha de prata sobre a orelha direita. Ela falou: Cheguei. Logo respondi: Mas já?
- Está na hora.
- Mas eu não estou pronto.
Silêncio.
- Não pode me dar mais um tempo, para eu me preparar?
- Desculpe, tem que ser agora. Venha assim mesmo.
- Mas eu estou de pijama!
- Não importa, eles não se importam com isso lá.
- Mas...
- Vamos.
- Certo, estou indo.
Ergui-me para acompanhá-la, mas assim que meus pés tocaram o chão um calafrio trespassou meu peito, e eu cambaleei. Questão de segundos, meu corpo voltou a cair na cama, e um silêncio mórbido se instaurou. Fiquei meio caído na cama, com os olhos arregalados, mas alheio ao que acontecia fora de mim, e afundava lentamente nas lembranças inclementes que me rodeavam.
Com as nuvens enormes de tempestade por pano de fundo, Joana sorria para mim seu sorriso límpido, emoldurado pela alvura viva de sua pele. Os cabelos pretos eram revolvidos pelo vento e se intrometiam na composição delicada de seus traços, mas acabavam por torná-la surpreendentemente mais bonita, como se aquele desarranjo, aquele descontrole momentâneo contivesse mais graça e beleza do que a milimétrica e exata composição que seu rosto sempre apresentava.
Caminhamos até a areia e, ao alcançá-la, Joana tirou os chinelos e começou a correr de mim. Persegui-a até a água, mas ela, com sua agilidade graciosa, se esquivou e voltou a fugir, até parar, triunfante, no topo da escada que descia até a areia. Sorri e a alcancei, para logo depois envolvê-la em meus braços e beijá-la, despejando nela todo o sentimento, a mistura de alegria, prazer e, é claro, amor que eu sentia naquele instante.
Mas começou a chover, e as gotas que lavaram o sangue dela da calçada naquele dia eram da mesma estirpe dessas que se lançavam contra a minha janela. Emergi ofegante do pesadelo-átimo e, apertando os olhos, disse para ela.
- Eu não consigo.
Sem responder, virou-se para a luz do corredor. Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite. Coloquei os pés de volta na cama e puxei o edredom para cobrir-me, ficando assim protegido do frio que oprimia. Esforçando-me para esquecer aquele meu fracasso, mordi o dedo bem forte e deixei que a dor se esvaísse lentamente, junto com a minha consciência que se apagava para a longa noite.
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2 comentários:
Gostei, amigo!
Escrita fluente e estimulante. E visualmente forte.
Vamos tentando...
Abraços.
PS: o texto acerca da Trilogia das Cores está saboroso!
ficou ótimo!
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