quarta-feira, 11 de março de 2009

A Roda #13 - Panorama do Vale de Legium, parte 6


por Lobato Légio

Perto de Akurdati, cidade encravada nas cordilheiras da região mais setentrional do Império, lá onde os picos emergem do solo por vontade própria, implorando por alcançar o céu, e as aves carniceiras devoram suas companheiras moribundas em pleno vôo e não tocam o chão a não ser a cada um ano e um dia, há um pequeno vilarejo de choupanas de palha e gente simples, chamado pela tradição Panaita mas conhecido nos mapas dos desbravadores por Atulana.

O caminho que leva ao vilarejo começa num dos portões de Akurdati, e vai singrando a encosta das montanhas, tornando-se mais sinuoso e estreito a medida que se aproxima do topo do mundo. Grandes rochas e desfiladeiros tangem-no pelas beiradas, mas não se atrevem a invadi-lo, amedrontados de postar-se no caminho dos braços que todos os dias caminham montanha acima ou abaixo entre a cidade e o vilarejo.

Um desses viajantes constantes, da gente de sangue forte das alturas, percorria toda semana a trilha de Akurdati até Panaita, levando tecidos bordados e algumas garrafas de bebida forte, para agradar os homens e as mulheres. Chegava ao centro da aldeia no meio da manhã e sem estardalhaço atraía os vilãos para comprar seus produtos e descobrir novidades. Assim era e assim foi por muito tempo, e assim continuava sendo quando, num dia nublado, o vendedor de panos e águas chegou à aldeia.

Um pequeno grupo de pessoas logo se reuniu ao seu redor e muitos tecidos e bebidas foram vendidos. Os homens discutiam entre si o sabor e o aroma dos líquidos e as mulheres elogiavam com parcimônia o aspecto dos sólidos. Não demorou que um dos clientes mais contumazes do vendedor, como comumente acontecia, o convidasse para almoçar. Sorrindo, o vendedor aceitou, e acompanhou o cliente e a esposa até a cabana em que moravam, um aconchegante lar para o casal e seus quatro filhos. Refestelaram-se de comida e da bebida que o vendedor trouxera, e após a refeição aproveitaram o tempo fresco para cochilar nos almofadões que se espalhavam pelo chão.

Quando acordou com o barulho do vento, a primeira coisa que o vendedor viu foi a dificuldade de ver: o lusco-fusco que tomava conta do ambiente e a brancura que vazava pelas frestas das paredes. Notou que o resto da família ainda dormia, e preferiu não acordá-los. Levantou-se em silêncio e foi até a porta, que abriu com dificuldade. Lá fora, nevava intensamente, e mal se enxergava o próprio chão da rua, já coberto pela neve. Movido por um impulso desafiador, típico de sua juventude, o vendedor lançou um último olhar para os panos e garrafas que trouxera consigo e não vendera, e entrou na nevasca, fechando sem estrondo a porta atrás de si.

Ao acordar, já após o fim da nevasca, o chefe da família notou as pegadas do vendedor, e as seguiu por poucos metros, somente até onde a proteção do telhado cedia e os vestígios haviam sido encobertos pela neve.

O jovem vendedor não mais foi visto.
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Um comentário:

João G. Viana/Pudim disse...

Outra fábula cativante, ótima para matar a saudade dos textos de Lobato Légio.