segunda-feira, 12 de maio de 2008

Um Conto de Duas Pessoas (XIII)

"Quem é o outro que sempre anda a teu lado?
Quando somo, somos dois apenas, lado a lado,
Mas se ergo os olhos e diviso a branca estrada
Há sempre um outro que a teu lado vaga
A esgueirar-se envolto sob um manto escuro, encapuzado
Não sei se de homem ou de mulher se trata
- Mas quem é esse que te segue do outro lado?”

-T.S. Eliot, The Waste Land (trad. Ivan Junqueira)

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Através do espelho, foram-se. Minven viu a trupe grotesca atravessar o vidro líquido como se passa por um umbral. Receoso, esperou alguns instantes até tomar coragem e avançar. De olhos fechados e os braços estendidos à frente, com as palmas das mãos voltadas para fora, andou em direção à porta de prata. Sentiu uma substância fria e pegajosa se agarrar à sua pele, mas após um segundo passo ela já se tornara lembrança. Abriu os olhos e viu que seu corpo e suas roupas pareciam os mesmos. Erguendo a cabeça, lançou ao redor um olhar rápido. Mas não foi o chão duro e seco ou o céu escarlate que atraiu sua atenção, e sim as estranhas formas que à sua frente seguiam, sem tomar nota da sua presença.

Liderando a comitiva, uma cobra bojuda rastejava. Atrás dela, uma grande chave se encontrava enterrada no chão, apoiada a uma gaiola, igualmente grande. Em princípio pareceriam imóveis, mas Myfriend, a cada vez que olhava para a dupla, a via mais à frente. Chamando a atenção em meio a todos, uma imensa boneca caminhava com vagar. Suas sapatilhas brancas já estavam sujas pelo solo poeirento, e seu vestido azul começava a amassar. Somente seus cabelos descendo pelos ombros continuavam incólumes. Atrás dela, quase imperceptíveis, pés caminhavam, sozinhos, sem pernas, braços, cabeça ou ser: somente pés, ora passeando rápido, ora devagar. Flutuando no ar, uma pequena esfera negra os seguia. Assemelhava-se a um raio globular, mas ao contrário: ao invés de emitir luz, a repelia, constituindo assim um vão escuro no espaço.

Não muito distante, um amontoado de coisas por pouco não constituía uma só unidade caótica. Com certo esforço, Miamiko distinguiu três entidades: a primeira podia ser confundida com um chaparral ressequido rolando ao sabor da brisa, mas um exame mais atento o revelava como sendo um amontoado de pêlos, unhas e sujeira engalfinhados. Seguindo-o de perto, uma caixa amarfanhada exalava um cheiro repulsivo, de cinzas, e deixava um rastro de pó fedorento por onde passava. Logo depois, quase invisível, uma espécie de homúnculo ou hominídeo caminhava. Era, mais especificamente, um borrão preto de forma humanóide, constituído por diversos pontinhos de sujeira.

Fazendo um barulho quase insuportável, objetos marchavam então. Patos, soldadinhos, macacos com pratos, caixas de música: toda sorte de ferramentas de som produzia uma balbúrdia exasperante. Mais silencioso, um enorme aspargo enraizava-se e desenraizava-se a cada passada em direção ao destino do grupo. Atrás de todos, finalmente, vinha a Anfitriã, em sua forma habitual, carregando uma menina pequena e pálida de olhos tristonhos. E, ao seu lado, uma mocinha agarrada a um caderno cantarolava mansamente.

Desconfiado, Ofilosmou apertou o passo até alcançar o Anfitrião. Ao alcançá-lo, tocou-lhe o ombro e exclamou: “Ei, parem!” Todos os seres então de voltaram para ele. Os que tinham olhos os arregalaram, espantados. A cobra sibilou uma vez e se calou. Os brinquedos barulhentos silenciaram, e a boneca gigantesca se agachou. A Anfitriã também estava com uma expressão surpresa, mas logo se recompôs e voltou a apresentar seu sorriso insondável característico:

“Ah, Mochara, não esperava isso de você.”

Um comentário:

Sib disse...

aooow malandro!
http://sibillaliantasse.blogspot.com/2008/07/um-conto-quatro-mos-xiv.html

HALLELUJAH /o/