terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O Enigma de Kaspar Hauser

O título original desse filme de Werner Herzog é “Cada um por si e Deus contra todos”, e resume muito bem a situação do personagem título e, de maneira geral, de todos os protagonistas de Herzog. Como já havia comentado na crítica de Aguirre, Herzog se interessa por personagens deslocados, que enfrentam o mundo, e nesse filme ele trata especificamente da relação de um ser humano “puro” com a sociedade civilizada. Daí o título original, que expressa a situação de um homem, sozinho, posto contra Deus, ou a Natureza, ou o Universo...

Kaspar Hauser é um personagem de origem real, um homem – talvez de sangue nobre – que permanece a vida toda trancado, alheio ao mundo dos seres humanos, e recebendo comida de noite sem qualquer tipo de comunicação. Um dia, ele é retirado de seu cárcere e abandonado em uma praça de Nuremberg, com um chapéu e um livro de orações na mão direita e uma carta para o oficial da cavalaria local na esquerda. Encontrado por um morador, Kaspar é levado à delegacia, e começará sua vida no mundo civilizado europeu do século XIX.

A ambientação e o histórico de Herzog ajudam a situar o personagem: Kaspar Hauser é o louco iluminado dos românticos, o excluído que, por sua pureza, absorve a civilização e a realidade de forma imparcial, sem desvios, e pode assim enxergar o que o que os outros não vêem. Em uma sucessão de momentos bem definidos, conhecemos a história do pobre homem e de sua relação com o mundo, assim como de que modo o mundo o trata.

Os episódios que ilustram isso são exemplares. Hauser começa morando e aprendendo na prisão, sendo objeto de curiosidade da população, até que a prefeitura decide não gastar mais com ele. Ele vira então, por um curto período de tempo, atração de um circo, no mesmo patamar do rei anão e do índio americano. Depois disso, ele fica sob a proteção do Sr. Daumer, um homem rico da cidade. Durante esse caminho, será apresentado às coisas do mundo, às convenções sociais, filosóficas, racionais, e reagirá a elas da sua própria maneira.

Para cada conceito que lhe demonstram, Hauser tem uma resposta toda particular. À idéia de Deus, responde que antes precisa aprender a ler e escrever para compreendê-la melhor, num indício de que Deus derivaria do intelecto, e não o oposto. Quando confrontado com a verdade absoluta da ciência, representada pela lógica, Kaspar encontra um caminho totalmente anti-científico, mas igualmente válido. Trata-se de uma das melhores cenas do filme. A saída que Kaspar encontra para o problema lógico é tão eficiente, tão mais eficiente que a do professor de lógica, que nos deixa com um sorriso no rosto e uma idéia na cabeça, uma coceirinha metafísica incômoda, que só é ampliada pelo resto do filme e pelas outras ações de Kaspar.

Outras ocasiões se seguem, outros eventos sociais e civilizados estranhos aos quais Kaspar é apresentado, mas o mistério permanece. Mais do que uma visão crítica da sociedade, O Enigma de Kaspar Hauser é uma demonstração de que nosso modo de viver, ser e pensar nos é imposto não por nossa natureza, mas por nós mesmos, por nossa sociedade, por nossa história.

Quando Kaspar sofre um atentado no fim do filme, isso acontece provavelmente devido ao perigo de descobrirem a existência dele, atrapalhando assim uma linha de sucessão ou algo do gênero, mas também é algo representativo. Quando ele chega à civilização, o prendem, depois o mandam ao circo como uma aberração, e depois tentam doutriná-lo, enquadrá-lo nos modos de pensar vigentes, mas ele não cede. Embora seja amado pelos mais próximos a ele, Kaspar representa uma ameaça à sociedade, por ser a prova viva de que as coisas não são assim tão óbvias e absolutas.

Depois de sua morte, fazem uma autópsia, e os médicos crêem ter encontrado a explicação para sua existência. Fígado deformado, cerebelo superdesenvolvido, lado esquerdo do cérebro menor que o direito... pronto, é assim: a civilização destrinchou Kaspar Hauser e acabou com seu mistério. O escrivão, personagem cômico, comemora o protocolo que acaba de escrever, detalhando parte por parte a resolução do mistério, mas continua sendo ilusão.

Durante sua vida no mundo civilizado, Kaspar adorava contar histórias, mas só conhecia o começo delas. Sem dúvidas, ele via com clareza o que se colocava diante de seus olhos: os seres humanos caminhando na névoa, indo lentamente em direção à morte que se encontra no alto de uma montanha. A caravana no deserto, guiada por um homem cego, que se acha perdida por acreditar que aquelas montanhas-miragens no horizonte são reais... De maneira precisa, fábula, sonho e realidade são unificados pela inteligência da criança selvagem, a criança selvagem que enxerga com perfeição o que ninguém mais consegue ver. No segundo atentado que comete, o assassino de Kaspar Hauser deixa um bilhete, revelando parcialmente sua identidade. Mas nós, que durante todo o filme estávamos dentro da mente de Kaspar, conhecendo sua visão, sabemos que a confissão que o homem misterioso faz não é de um simples humano. Não, a confissão é a do oculto, que se revela a uns poucos e é capaz de acabar com eles, os pobres solitários que se postam sozinhos contra o absurdo da existência. E é por isso que o assassino, ou o desconhecido, ou, mais especialmente, o óbvio que ninguém consegue ver por estarem todos vendados, diz, no bilhete final: “Hauser saberá, sem dúvida, descrever como sou, e de onde venho. Para que ele não faça isso, vou lhes dizer de onde venho, e qual o meu nome...”
.

2 comentários:

Sib disse...

PUTZ esse filme é demais! eu preciso ver de novo.

Anônimo disse...

Um dos meus filmes preferidos muito bem resenhados pelo meu amigo Tuma!
Cara, ontem mesmo tava eu conversando com uma amiga cujo pai baixou esse filme da web mas teve problemas com a legenda. O "coitado" ficou a ver navios e tive que dar uma pálida idéia do roteiro para minha amiga passar ao pai...ufa.
Eis que agora vou indicar seu blog, claro!

Abraços, compadre! E vamos ao "ringue" na piauí! (risos)

Inté, bicho.