A distopia é um gênero crítico por excelência. Elas simplesmente não são escritas sem ter como referência problemas e características do nosso próprio mundo atual. É assim com “A Laranja Mecânica”, é assim com “1984”, é assim com “V de Vingança”, “Fahrenheit 451”, “Matrix”, e outros. E é assim, também, com um dos grandes clássicos do gênero, “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, prolífico escritor inglês, neto do biólogo Thomas Huxley, o maior defensor das idéias de Darwin. Autor de obras como “Contraponto” e “Os Demônios de Loudun”, ficou célebre com este livro assustador e maravilhoso sobre as escolhas da humanidade e suas conseqüências.
O ano é 2540 d.C., mas para os personagens do livro é 632 d.F., ou seja, depois de Ford. Para eles, Henry Ford, criador das linhas de produção, foi o messias, e eles o invocam por meio do sinal de “T”, no peito, em referência ao célebre modelo do inventor. Nessa sociedade, todos vivem sob o imperativo da felicidade. São divididos em castas: os Alfas, Betas, Gamas, Deltas e Ípsilons. As duas primeiras são compostas de indivíduos únicos, mas as restantes passam por um processo que divide seus embriões e produz cerca de oitenta pessoas iguais. Tudo isso para que, trabalhando juntos, haja um sentido de identidade entre eles.
Mas não é só. Não há pais, mães ou relacionamentos duradouros. Os embriões são “montados” em linhas de produção, de acordo com sua casta. Desde o nascimento, são condicionados, seja por hipnopedia (repetição de frases durante o sono) ou outros métodos, a aceitarem a Morte e tratarem o Sexo como algo absolutamente trivial, para ser praticado sempre e com todos. Esse condicionamento os leva também a se sentirem totalmente satisfeitos com sua condição, seja a de pesquisador ou ascensorista. E se, porventura, algo de ruim acontecer, sempre é possível (e aconselhável), recorrer ao soma, droga alucinógena que traz de volta a felicidade.
No início, vemos Bernard Marx, personagem que passou por um trauma quando ainda era um embrião e se sente incomodado em sua posição. Mas consegue que Lenina Crowne, uma donzela assaz pneumática, vá com ele até a Reserva dos Selvagens, onde tribos de índios americanos ainda vivem como nos tempos antigos. Lá, encontram uma mulher Beta, que se perdeu na Reserva há muito tempo, e seu filho crescido. Interessado na fama que isso lhe trará, Bernard o leva para a “civilização”, coisa com que o jovem sempre sonhou, e veremos então o que acontece.
O livro é perturbador por fazer uma reflexão sobre o preço das coisas, e o que nos torna humanos. Para que não nos entristeçamos ou tenhamos que pensar coisas ruins, não há Arte. De modo análogo, a Ciência é suprimida. A única verdade que interessa é a dos Administradores Mundiais. Quem me conhece sabe que eu considero essas duas coisas a grande razão da vida humana. Ver uma sociedade sem essas coisas é como ver uma colônia de robôs. E de fato, são o que os seres desse futuro são: máquinas que reagem a estímulos.
Mas todos são felizes, não? De fato, a felicidade é algo fornecido pelo Estado e irrevogável. Mas em troca de quê? Isso me faz pensar em Cuba, a cujo governo oficial Fidel Castro recentemente renunciou. Uma medicina entre as melhores do mundo. Educação invejável. Garantia de emprego pelo resto da vida. Mas, por outro lado, não há liberdade de pensamento, de expressão. Não há arte no comunismo. Só o que importa é o que acontece, é a jornada do proletariado. Pode parecer algo demasiado subjetivo, vaporoso, comparado a ter saúde e educação, coisas concretas, essenciais. Mas, se sentimos aquele estranho revolver no estômago ao olharmos para esse “Mundo Novo” do livro, é porque de fato aquilo importa.
Shakespeare, a partir do momento em que o Selvagem entra em cena, pontua o livro. Ele é uma das expressões máximas da cultura ocidental. O nosso mundo é shakesperiano. Ele de certa forma criou o ser humano atual. Vê-lo em contraste com os robôs de plástico, todo uns iguais aos outros, é muito significativo. Como disse antes, a distopia é sempre uma alegoria de nossos tempos, um alerta. Olhar para o presente e ver coisas, se não tão assustadoras, assustadoras o suficiente, é motivo de um leve arrepio, de um certo mal-estar. Tenho medo do dia em que deixarmos de ser humanos em troca de casa, comida, e roupa lavada.
“Oh maravilha! Como há aqui seres encantadores! Como é bela a humanidade! Oh! admirável mundo novo, que contém criaturas tais!”
P.S.: A melhor sentença do livro aparece na conversa entre o Selvagem e Mustafá Mond. “Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado. [...] Eu reclamo o direito de ser infeliz.” Creio não ser necessário dizer mais nada.