sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Todo Dia, XIV - Poesia

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RETRATO DE UM VELHO SÓ

1- Com os mesmos raios
Que tocam meus olhos
Neste fim de tarde,
O sol banha
O apartamento
Até onde consegue entrar.

Parado na varanda, não me decido
Se fico ali ou volto pra dentro
Se permaneço em pé ou me sento
Ou se é melhor olhar para o sol até ficar cego.

Passos lentos, e estou aqui de novo,
A sala parece cansada, cheira a mofo
E recende, ainda, ao odor do cão,
Que ela lutou tanto tempo para ter.

Agora ela não está mais aqui,
Nem ele. Mas em meu passear sinto-os:
Seus cheiros, o peso dos dois sobre o chão,
As vozes que nunca deixaram de se esconder, ecoando,
Nos cantos do teto.

Eu gostava tanto de você
Sem roupa, inteira nua sobre a cama,
Me chamando para seus braços.
Mas depois dele não estávamos nunca a sós,
Éramos sempre três, eu, você,
E o cão, deitados na cama, olhando o teto,
Sem fazer nada.

E um dia quando você já tinha esquecido
De que uma vez deitara nua sobre a cama -
Eu já me conformara de não te ter mais só para mim –
Desnudaram-te mais uma vez, alguém que não tem nome,
Pela última vez tirando sua roupa, até aquela
Com que nascera, e mandando-te para longe.

Perdi o sorriso, minha voz ficou fraca.
Ficamos eu e o cão nos encarando durante meses,
Até ele fugir não sei como do 11º andar,
E eu não ir atrás dele procurando-o.

Sobrou-me de ti a cama, e o apartamento,
Esse lugar onde agora estou.
Vou dando passos, e lembro-me de muitas coisas,
Mas não de tudo.

2- Quando tenho fome, ligo o microondas
E esquento uma lasanha
Ou outra comida congelada,
Uma das que atulham o freezer
Desde que você partiu.

Nunca aprendi a cozinhar, minha mãe não me ensinou,
Nem você, que sempre sorria ao espetar o bife na panela.
No domingo você me perguntava o que eu gostaria de comer,
Tão gentil, e generosa preparava o arroz, o feijão, a carne assada,
Ou às vezes macarrão e peixe quando tínhamos vontade.
Depois, durante a semana, era a mesma coisa:
Você esquentava a comida do domingo e íamos comendo,
Pouco a pouco,
Todos os dias.

No sábado eu te levava para comer fora, no restaurante que você
.[escolhesse,
E ficávamos conversando a tarde toda, olhando os carros passar,
E falando sobre o tempo e a vida.

Agora, que você não está mais aqui, o cheiro de comida não preenche
.[mais o apartamento.
A Sra. Fernandes, uma moça muito boa do andar de baixo,
Faz as compras do mês com o dinheiro que lhe dou,
E às vezes me leva ao médico, quando preciso.

Ela nunca me cobrou nada em troca disso,
E os olhos dela me lembram dos seus.

3- O apartamento que compramos é bem comum:
- Dois quartos, um para o filho que nunca tivemos.
- A cozinha, branca e pequena.
- A sala de visitas e da TV,
Cuja tela apagada, repleta de poeira,
Não se acende há muitos meses.
- Um lavabo, atulhado agora de velharias,
E o banheiro, onde nos encontrávamos pela primeira vez após
.[o sono,
Os rostos estranhos, tortos, amassados pela noite,
Lentamente se abrindo a alguma luz,
Alguma espécie de rejuvenescimento na mansidão da manhã,
Enquanto nos olhávamos, as pálpebras caídas,
E pensávamos um no outro.

Hoje fico nos quartos, nos dois,
Lendo até me cansar, e depois deitado,
Simplesmente, olhando para o teto cheio de manchas,
Tentando me lembrar de onde elas vieram.

4- Não tenho saído daqui,
Do apartamento.
Esse lugar me cerca.

Dizem que a vida é curta,
Mas eu me lembro de tanto,
E há tanto ainda por lembrar...

Dizem que o passado não volta,
Mas é só ele que volta, só ele que permanece.
O presente não existe, é um lugar limítrofe,
Sem largura ou comprimento,
Entre o que vem e o que foi.
E meu futuro se esvai, diminuindo lentamente,
Até que encontre a aniquilação na frieza de um túmulo.

Só o passado existe, só o passado conta,
E todo o meu passado está aqui,
Entre essas quatro paredes,
Perdido no meio dos cheiros que não se vão,
Dos sons que não se vão,
Das imagens que não se vão,
Das sombras que permanecem.

Uma bola de ferro está atada ao meu tornozelo,
Mas eu não posso vê-la.

5- Não posso sair,
Não posso.
Tudo o que eu tenho está aqui.

Estou na varanda, o sol se põe.
A mente brilha, cheia de memórias,
E depois degrada, até a escuridão.

Eu estou aqui, não posso sair.
Só a esse ponto posso chamar de lugar.

Irreversível, o espaço.
Reversível, eu passo.

Everything alive dies alone.
Tudo vivo morre só.
.

2 comentários:

João G. Viana/Pudim disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Juka disse...

Eu já disse que você é genial? Se não disse, digo agora.
E enfatizando: o Amortescimento me deixa sem palavras.