Ingmar Bergman, Deus do Cinema, considerava
Andrei Tarkovsky o maior de todos os cineastas pois
“para ele o mundo dos sonhos não tinha segredos”.
Tarkovsky, cineasta russo da segunda metade do século XX, era famoso por seus filmes de planos longos, beleza visual e sonora, e por sua notória espiritualidade. Em
O Sacrifício, sua última obra, podemos identificar todos esses elementos levados às últimas conseqüências:
O Sacrifício é o trabalho síntese de uma vida. Não necessariamente o melhor filme do cineasta, mas com certeza o mais revelador.
O enredo, por si só, é genial. Um velho professor,
Alexander, melancólico e descrente, vê sua família e amigos reunirem-se em sua casa para seu aniversário: o amigo médico (de mudança para a Austrália), a mulher (que nutre uma paixão pelo médico), a filha mais velha, o carteiro amigo, e o filho mais novo, mudo por uma operação recente na garganta. Além deles, está por ali a cozinheira, uma mulher que vive sozinha no campo, e sua ajudante, uma jovem triste.
Logo que começa a festa, a cozinheira vai para sua casa. Os outros, porém, permanecem ali, num clima soturno, triste, inadequado para uma festa de aniversário. Tudo começa a piorar, entretanto, quando eles vêem na TV a notícia de uma guerra nuclear que começou. Pálidas de medo, todas as personagens começarão lentamente a se desesperar e mostrar suas verdadeiras faces.
Alexander, por sua vez, também viverá seu calvário. Desesperado por salvar sua família, vai até a casa da cozinheira, que o carteiro diz ser uma feiticeira. Ali, ele chora, implora pela ajuda dela, conta histórias da sua infância. Por fim, ajoelha-se e reza, e ela o aceita, e os dois se unem num ato sexual ao mesmo tempo libertador e reacionário, no sentido de que leva
Alexander de volta, através do tempo e do espaço, para o âmago das coisas, ou de si mesmo.
Passada essa cena,
Alexander acorda, num dia claro (seu aniversário?) no sofá de seu quarto. Terá tudo sido um sonho? O amor entre o médico e sua mulher, a festa, o fim do mundo, o ato sexual com a cozinheira, tudo um sonho? Não importa. No “sonho”, a mulher dissera que a casa era um lugar maligno, e
Alexander, pio, sabe o que tem de fazer.
Numa cena antológica, belíssima, indescritível, ele bota fogo em sua casa, e a vê queimar, enquanto chega uma ambulância do hospício, que o tenta levar, mas ele foge, e enfim o capturam, o médico e a mulher quase entrando junto no carro-de-loucos. É o fim... mas ainda há dúvidas.
A cozinheira aparece, andando de bicicleta, seguindo a ambulância... por que seria? E ali, à beira do lago, o filho de
Alexander está deitado ao lado da árvore que ele e o pai haviam plantado no início do filme. Mas espere... tudo não havia sido um sonho? Pela primeira e única vez, o filho fala:
“No princípio era o Verbo. Por que, meu Pai, por quê?”.
Sim,
O Sacrifício não é um filme óbvio. É, como os outros filmes de
Tarkovsky, uma experiência filosófica, sensorial e espiritual, um conto da alma. Nesse filme, o diretor diz muito sobre a loucura, a falta de amor, os sonhos, a morte, Deus... mas essas coisas não são compreendidas integralmente por nossa mente, e sim por nosso espírito.
Bergman, afinal, talvez estivesse certo. Para
Tarkovsky, o mundo dos sonhos não tinha segredos. E justamente, penso eu, por ele deixar-se mergulhar nessa matéria onírica, de corpo e alma, e de lá sair encharcado de símbolos, signos e sabedoria para colocá-los em movimento e transmiti-los ao mundo.
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