segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Todo Dia, VIII - Histórias

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1, 2, 3, 4 – e a música começou a tocar, simpática, melodia e ritmo bem conhecidos, soando com clareza nos sinais elétricos de sua mente, de onde ele não saía há mais de dez minutos. Lavava a louça com um esforço displicente, deixando o filete de água escorrer sobre os pratos, garfos e copos enquanto com a bucha já carente de sabão executava lentos e monótonos movimentos circulares e de vai-e-vem. Não enxergava, de fato, a louça à sua frente - seus olhos estavam separados de seu cérebro, comunicando-se diretamente com as mãos responsáveis pela ação. Mas a música começou a tocar em sua mente, e por um instante ele cambaleou no limiar entre torpor e consciência, e então lentamente começou a sair de dentro de si, no compasso das notas que, graciosamente, passara a cantarolar. Em movimentos contínuos e interligados, ele fechou a torneira, balançou as mãos molhadas e esfregou-as no pano da pia.

- Honey pie, you are making me crazy…

Ele lembrava bem dessa parte da letra.

- I’m in Love but I’m lazy… so won’t you please come home?

Suaves, os versos saíam de sua boca sem acompanhamento, enquanto no silêncio de sua imaginação ele ouvia o pianinho da música original. Continuou cantando ao ir até a geladeira e abrir a porta, e também ao pegar a garrafa de água gelada para beber. Não cantou enquanto a água descia por sua garganta, mas tão logo pôde suspirar “ah!” de refresco voltou a cantar, dessa vez uma outra música.

- The weather outside is frightful…

E enquanto o fazia sorriu, ciente do suor que grudava a camiseta às suas costas.

- But the fire is so delightful...

Por um instante sentiu-se em Nova York, numa noite de outono ou começo de inverno, quando o frio ainda não é tão severo, e as pessoas caminham encapotadas pelas ruas direto para dentro de casa, cena tão bem retratada em todo um gênero de filmes (e séries de TV) passados na cidade, assim como nas músicas de Sinatra, cuja audição de somente umas poucas notas já remetia imediatamente ao astro e à Big Apple.

- Since there’s no place to go, let it snow, let it snow, let it snow.

Nesse momento, já alcançara o corredor, e viu a irmã no quarto, curvada sobre o computador. Foi até ela e apertou-lhe as bochechas, obrigando-a a beijar seu rosto, saindo logo depois de perto dela. Ela riu e veio atrás dele, tentando agarrá-lo, mas ele se esquivou sem muita dificuldade. Se virou para ela e, fazendo uma dança estranha, começou a cantar uma das músicas que haviam inventado juntos. Ele ora balançava os braços, ora tentava sambar de um jeito que nenhuma escola de samba jamais havia presenciado, e nisso sua irmã o seguia, acompanhando-o nas coreografias já familiares para ambos, e cantando as letras simples, jocosas e nonsense que haviam surgido do nada em algum dia impreciso do passado dos dois.

Ele dançaram e pularam e riram, e até mesmo repetiram as danças e as músicas para seus pais, mas a energia deles, ainda que tenha durado, foi acabando, e terminaram por voltar cada um para seu próprio silêncio interior.

Ela para a cama e o computador, ele para o sofá azul na sala de tons pastel, onde sentou cansado e sorriu, um pouco contrariado, como se aquele momento pós-sonoro, aquele período de estafa após a execução de sua obra desde já para sempre perdida, tivesse algo de solene e exigisse uma postura séria, um espírito de contemplação indiferente que casasse perfeitamente, por oposição, ao descontrole expansivo das músicas que somente um instante atrás acabara de cantar, esperançoso de que a alegria e a expressão daqueles momentos eufônicos fossem capazes de libertá-lo da sórdida e sub-reptícia melancolia que não largava dele por nada.
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Um comentário:

João G. Viana/Pudim disse...
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