sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Todo Dia, IX - Histórias

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“As guerras médicas são uma série de violentos conflitos que vem ocorrendo há séculos entre os alopatas e os homeopatas pelo controle das águas de São Pedro e Serra Negra, entre outras. O conflito também tem raízes ideológicas, sobretudo na discussão sobre a utilização do bordão de Esculápio ou do Caduceu como insígnia, razão inicial da cisão entre os hipocráticos. No final da Idade Média, o conflito atingiu seu ápice épico na batalha de Sar-Amiador, em que os exércitos do general Kikura, dos homeopatas, e do senhor da guerra Sarah Ali, dos alopatas, enfrentaram-se definitivamente, numa tentativa de encerrar a contenda que, já naqueles tempos, vinha se arrastando por anos sem conta. A batalha foi largamente documentada pelos cronistas da época, e por isso é possível fazer um descrição detalhada de seus movimentos e contrações internos.

Uma das principais características dessa batalha foi a presença maciça de diversos órgãos ou facções alinhadas com um ou outro sistema de pensamento. É possível analisar os resultados do conflito somente estudando-se as ações de cada facção. De fato, não surpreende que os homeopatas tenham sido derrotados. Suas forças não apresentavam a mesma coesão da dos alopatas. Com efeito, muitos dos ‘aliados’ dos homeopatas não estavam sequer interessados em combater, mas antes em praticar rituais que pareciam não ter nenhuma relação com o curso da batalha – embora, após a derrota, com a permanência dessas facções, esses rituais fossem revelar-se muito efetivos. Os únicos realmente dispostos a lutar eram a própria Velha Guarda do general Kikura, que mantinham a linha de frente e a retaguarda, destilando os blocos altamente condensados de soldados inimigos.

Enquanto isso, do outro lado do campo, o senhor da guerra Sarah Ali coordenava eficientemente seus batalhões. Os odontologistas, armados até os dentes, formavam a linha de frente. Todo o aparelho de guerra deles era polivalente, e permitia cortar, rasgar e esmagar os inimigos. Os geriatras, por sua vez, com toda a experiência acumulada de veteranos, mantinham os flancos, com movimentos pequenos, mas eficientes. Os oftalmologistas agiam como batedores, permitindo a Sarah Ali ter uma visão melhor do que acontecia – na verdade, toda a cabeça da operação estratégica do senhor da guerra foi eficientíssima: os nefrologistas filtravam as informações trazidas pelos oftalmologistas, e os neurologistas, em conjunto com Sarah Ali, planejavam e ordenavam as ações mais adequadas, coordenando todas as forças.

No entanto, nem todo o exército de Sarah Ali estava saudável. Os dermatologistas, recrutados para dar suporte à linha de frente, preferiam ficar se coçando a lutar, levando os ortopedistas a tentar corrigir sua postura, o que gerou um conflito dentro das forças alopáticas. Nesse momento, os odontologistas haviam construído uma ponte sobre o canal que cortava o campo de batalha, o que melhorou a circulação dos cardiologistas, que puderam fazer maior pressão sobre as linhas de frente homeopáticas. Os endocrinologistas, cheios de adrenalina, seguiram os cardiologistas, enfraquecendo sobremaneira o lado direito das forças similiares. No lado esquerdo, porém, uma surpresa! Os urologistas mudaram de posição, aderindo aos homeopatas e, levantando-se de sua posição de prontidão, onde até então se encontravam, formaram uma falange e penetraram no batalhão dos ginecologistas, dando uma nova mobilidade à batalha. Numa última tentativa desesperada, os acupunturistas, aliados dos homeopáticos, espetaram em vários pontos os exércitos alopatas, mas não foi suficiente. Os oncologistas, surgindo sombrios e inesperados da retaguarda da armada alopática, se espalharam rapidamente, dando a todos os batalhões um novo ânimo, e o conjunto de soldados avançou maciço sobre as linhas inimigas.

Acuados, os homeopatas fugiram para uma cidade próxima, onde estava situado seu governo, e tentaram se isolar. Mas os proctologistas, especialistas em arrombamentos, destruíram os ‘Portões de Fogo’ da cidade e deram a vitória aos comandados de Sarah Ali.

Os homeopatas, no entanto, não desapareceram. Como já apontava a caótica desunião de suas forças em Sar-Amiador, os inimigos dos alopatas dividiram-se em diversas correntes alternativas, como os próprios homeopatas e acupunturistas, além dos ayurvédicos, quiropráticos e adeptos da medicina ortomolecular, entre outros. As guerras, portanto, já encontraram seu fim, mas ainda persiste uma certa inimizade entre os descendentes de Hipócrates.”

(Introdução à História das Guerras Médicas, de Lobato Légio)

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(com L. Servidoni e J.G. Viana)
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3 comentários:

João G. Viana/Pudim disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Homeopatia é uma coisa que eu nunca vou entender na vida.

Amortecimento com sc????

Tuma disse...

O do blog é com "sc", por causa da origem do nome. No post de aniversário do ano passado eu explico isso.