quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Leituras: Dezembro de 2008

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Em dezembro, finalmente consegui ler um pouco mais do que vinha lendo nos últimos meses. Esse mês, li três grandes clássicos da literatura universal. O primeiro, uma obra ultramoderna, escrita pelo gênio que ditou algumas regras da atual literatura. O segundo, uma sátira feroz e irônica sobre a humanidade, escrita por um dos maiores satíricos. Em terceiro, finalmente, um envolvente romance de um grande autor inglês, pérola do período romântico.

As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino

Com freqüência, obras cuja interpretação é complicada possuem algum trecho chave, que serve ao menos para extrair o sentido essencial (ou superficial) delas. Com Cidades Invisíveis, não é diferente. O romance mais conhecido do italiano Italo Calvino é uma espécie de As Mil e Uma Noites da descrição, em que o maior viajante de todos os tempos, Marco Polo, dirigindo-se ao imperador dos tártaros, Kublai Khan, o ser mais poderoso da terra, discorre sobre as cidades do Império deste, dando-lhe o conhecimento que ele não pode obter, devido à extensão de seus domínios e à quantidade de seus deveres. Partindo daí, Calvino traça um painel com 55 descrições de cidades, divididas em onze temas, tais como “As cidades e a memória”, “As cidades e o desejo”, “As cidades e os mortos”, etc., tudo isso entremeado por trechos das conversas entre Polo e o Imperador, onde investigam o sentido da conversa que estão travando e de outras coisas mais. Num desses trechos, acontece o seguinte: “Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. – Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan. – A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco -, mas pela curva do arco que estas formam. Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: - Por que falar de pedras? Só o arco me interessa. Polo responde: - Sem pedras o arco não existe.” Eis aí o trecho referido no ínicio desse texto. Como já disse, ele não revela todo o sentido (para isso, só lendo o livro todo), mas é simbólico da natureza da obra. Ora, Cidades Invisíveis é um romance pós-moderno, fragmentado, hipertextual, formado por dezenas de partes que, entretanto, formam um todo poderoso e coeso, se cuidadosamente observado. O trecho supracitado explica essa característica, e dá margem a toda sorte de interpretações. De certa maneira, o próprio sentido do livro também é fragmentado e composto. Podemos extrair três ou quatro temas recorrentes tanto nas conversas de Marco e Kublai quanto nas descrições. Um deles, que eu considero secundário (alguns podem querem me tacar pedras por isso) é o das características negativas de algumas cidades, que espelham vários “dramas urbanos” das cidades modernas. Embora o livro fale de cidades, é ingenuidade achar que é realmente de cidades que ele está falando. Os outros temas, que considero mais importantes, são os seguintes, em ordem dos que mais me interessam: o primeiro e segundo, de certa forma, são o mesmo. Trata-se talvez do aspecto principal do livro, embora não seja o meu preferido. É a questão de abrir espaço, como proferida por Polo na célebre última sentença do livro, de extrair das coisas um sentido ao enxergar o mundo com outros olhos e encontrar aí um espaço para se expandir e tornar as coisas melhores. O outro tema, esse sim o que eu mais gosto, é o mais presente nas descrições das cidades, e adquire tamanha diversidade de formas que é preciso fazer uma lista para enunciá-lo. É uma questão recorrente na obra de Calvino, a da discrepância, do conflito, da relação entre o nome da coisa, a descrição da coisa, a memória que temos da coisa, o que desejamos da coisa, o olho com que vemos a coisa e a Coisa, entre o sonho, o símbolo, o mito, o pensamento, o discurso, a narrativa e a Realidade. Calvino fala, discursa, poetiza, divaga e faz mistério em cima desse tema, o que o torna extremamente atraente e profundo. Enfim, pouca coisa não é, esse é um livro para muitas interpretações. Mas, de qualquer maneira, só por existir e ser lido, já se pode dizer que As Cidades Invisíveis é um ponto que, no meio do inferno, não é inferno, e portanto se deve preservá-lo, e a partir dele, abrir espaço.

As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift:

Jonathan Swift, o “deão furioso”, foi um dos mais violentos satíricos que o mundo já viu. Munido de um visão afiadíssima em relação ao mundo, contudo sem ser amargurado, Swift erigiu em As Viagens de Gulliver uma obra que conseguiu a proeza de ser ao mesmo tempo uma sátira feroz da natureza humana e um livro bem-humorado, que anos depois acabou por se tornar, em sua versão resumida e suavizada, um clássico infantil. Lemuel Gulliver, cirurgião e pai de família, tem um apreço especial pelo mar. Assim, sai durante a vida em várias viagens, que o levam às terras mais estranhas. Em primeiro lugar, vai parar em Liliput, país onde as pessoas tem quinze centímetros de altura e parecem ser, à primeira vista, criaturas adoráveis, ainda que um pouco desconfiadas. O tempo revelará, porém, que elas são traidoras cruéis, capazes de fazer mal até a seus próprios heróis. Depois, Gulliver chega em Brobdingnag, onde os seres são gigantes, e tratam Gulliver como um brinquedo, um animal de estimação. Incomodado com o desprezo que lhe é dirigido, Gulliver parte daquele país. Depois, na terceira parte do livro, visita vários países e cidades, dos quais o mais ilustre é Laputa, a ilha voadora, onde os homens só sabem pensar em música e astronomia e suas mulheres fogem com as mais grotescas criaturas. Ele chega também em Glubbdubdribb, onde conversa com os mortos e descobre que a raça humana está cada vez pior, em Lagado, onde a Academia de Ciências só pesquisa idiotices, e em Luggnagg, terra de amaldiçoados imortais que vão se tornando cada vez mais degenerados à medida que os anos passam. Então, na quarta parte do livro, Gulliver se encontra no país dos Houyhnhnms, cavalos inteligentes e civilizados que “domesticaram” os Yahoos, seres bestiais e repulsivos que nada mais são que humanos em estado selvagem. Por fim, após ser obrigado a sair do país dos Houyhnhnms, Gulliver se torna um misantropo que tem nojo até da própria família. Com isso, Swift dá seu golpe de mestre. No fim do livro, Gulliver, que é o narrador, faz um discurso contra o orgulho humano, mas o fecha rogando que ninguém que possua “esse absurdo vício” (o orgulho) apareça diante dele. Ora, que sinal de orgulho seria maior que esse? Desse modo, Swift satiriza a própria ferramenta de que se havia utilizado para satirizar a humanidade. Após presenciar os costumes de todos os povos acima citados (que nada mais eram que paródias de pessoas e acontecimentos da época de Swift), e por fim observar o último estágio da degeneração humana, chegando até mesmo a usar roupas e objetos feitos das peles de yahoos (ou seja, de sua própria espécie), Gulliver se isola e torna-se ele mesmo um exemplo de tudo aquilo que julgava abominar. Usando-se desse artifício, Swift retroativamente suaviza todas as (pesadíssimas) críticas que havia feito ao longo do romance, e transforma seu livro em obra de gênio, revelando por fim seu verdadeiro discurso: o da valorização do ponto de vista. Não que a humanidade seja desse jeito, mas considerando-a desse ângulo é assim que ela irá parecer. Sofisticado ao último grau, e feito mesmo pra pensar muito depois de ler. Matéria-prima das mais densas para conversas, sejam elas filosóficas ou de botequim.

Grandes Esperanças, de Charles Dickens

Escritores românticos são sempre acusados de criar personagens rasos, caricaturais, exagerados, e colocá-los em situações irreais e exageradas usando para isso uma linguagem floreada e exagerada. Enfim, o supra-sumo do exagero. Embora tenha lastro na verdade, grande parte dessa concepção moderna do romantismo é exagerada, posto que, se tais obras não tivessem valor, não seriam obras-primas da literatura universal, maciçamente presentes no cânone da literatura. Dickens, pois, foi um escritor romântico, talvez o mais célebre romântico inglês. E, embora seu estilo seja sim floreado e exagerado, e haja situações e personagens caricatos e exagerados em seus romances, Dickens também possuía uma grande sensibilidade para o ser humano, e criou, ao menos em Grandes Esperanças, que foi seu único livro que li, uma grande variedade de personagens complexos e tocantes, capazes de dizer muito sobre a sociedade e a humanidade. O maior exemplo disso talvez seja Wemmick, retrato perfeito da confusão de identidades e personalidades tão presente na sociedade atual, mas já despontando na Inglaterra do século XIX. Além dele, Pip, Miss Havisham, Estella, Mr. Jaggers, todos são personagens com mais de um lado, mais de um rosto, mais de uma forma de reagir ao mundo. E, juntos, formam uma tocante e envolvente história, contada num estilo delicioso, ao mesmo tempo emocionante e cômico. Um “livrão”, sem dúvida, gostoso de ler e difícil de largar.
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4 comentários:

Juka disse...

Eu aqui de novo (:

Uau. 'As Cidades Invisíveis' é um ótimo título, e o livro pareceu valer a pena. Vale mesmo?

eu li as 'Viagens de Gulliver' pra escola na 6ª ou 7ª série, achei o máximo. tem muuuita fantasia, tudo que uma criança adora antes de dormir. Mas vai muito mais além disso. Os adultos que quiserem fugir do mundo real podem ler Gulliver também, porque apesar de tudo não é um livro infantil. É ótimo. Minha cena preferida é a do xixi. risos. Ai, vou ler Gulliver de novo :x

E o ultimo livro que você comentou, do Dickens, tem bem o estilo dele, né? De retratar a sociedade e o mundo de mais de um ponto de vista. Eu li 'Hard Times' dele, pra escola de inglês. E devo confessar que foi um prazer e tirei nota máxima na prova :D
Se interessa? É pequenininho.
Qual o tamanho de 'Grandes Esperanças'?

Aahh... também quero vários livros pra ler.
Estou morrendo de vontade de terminar 'O Dia do Curinga' do Jostein Gaarder. Eu comecei quando tinha 7 anos, mas nao pude terminar.
e agora que comecei o Mundo de Sofia (e nao consigo terminar, estou empacada) eu senti saudades.
O lado ruim é que o MEU Dia do Curinga foi emprestado e nunca mais voltou.

enfim, gostei que você falou de Gulliver. :D

-meldels, agora eu vou embora pq meu cometário vai ficar maior que seu proprio post-

Tuma, sou sua fã! (:

:*

João G. Viana/Pudim disse...

hsoaiuhsoiuhaosiu, melhor resenha de "As Viagens de Gulliver" ever!
Tinha esquecido do livro, foi bom relembrar aqui

Sib disse...

Leia Oliver Twist, do Dickens.
Com a tradução do Machado de Assis (em grande parte da obra, porque ele morreu antes de terminar...)
é brilhante.

Anônimo disse...

Palmas!