sexta-feira, 30 de abril de 2010

Todo Dia, XIX - Poesia

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A Religião liberta; a Religião aprisiona.
O Conhecimento liberta; o Conhecimento aprisiona.
O Corpo liberta; o Corpo aprisiona.
A Morte aprisiona; a Morte liberta.

O mundo é feito
de dicotomias,
talvez equivalentes.
Dizê-las não é
reiterar o óbvio, mas
revelar a diversidade.

“Há verdade triviais
e há Grandes Verdades.
O oposto de uma verdade trivial
é simplesmente falso.
O oposto de uma Grande Verdade
também é verdadeiro.”
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quarta-feira, 28 de abril de 2010

A Série - S01E19

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A lâmpada vermelha do semáforo apagou-se, dando lugar rapidamente ao verde brilhante e surpreendendo Martin Madusky, que, tendo acabado de parar em frente ao sinal, imaginava esperar por muito tempo a permissão de prosseguir. Um tanto quanto atabalhoadamente, Martin engatou a primeira marcha e acelerou, fazendo cantar os pneus do seu pequeno carro de duas portas. John B. não esboçou reação ao movimento repentino do automóvel, mas inclinou-se para fechar o vidro quando um caminhão passou ao lado deles soltando fumaça.

- Eu tenho uma teoria..., ele disse, recostando-se de novo no banco - há dois tipos de fumaça no mundo, fumaça boa e fumaça ruim. A fumaça boa é aquela que acalma a mente, que a descontrai, que tira dela as amarras e permite vôos suaves, tornando tudo mais claro. A fumaça ruim é o contrário disso, ela deixa a gente nervoso, impaciente, confuso.

- Erhm, respondeu Martin.

O Autor tinha saído de sua casa no subúrbio perto das oito horas da manhã, e logo voltara para dentro a fim de pegar seu sobretudo mais quente, sentindo o ar frio ao abrir a porta. Mas em menos de meia hora o tempo virara, e agora ele dirigia um carro pequeno demais para ele, preso no trânsito e nas garras do sol forte. Levara pelo menos vinte minutos para chegar ao terreno onde John B. deixava seu trailer. O Autor o encontrou na frente do alambrado, de colete, boné e óculos escuros, terminando de fumar um cigarro e jogando a guimba no chão. John B. entrou no carro e percorreram todo o caminho praticamente em silêncio, com ocasionais comentários do Diretor pontuados por sutis exclamações de concordância por parte do Autor.

Alguém que observasse atentamente a relação dos dois desde que haviam se conhecido, após o convite a John B. para dirigir a Série, perceberia, com alguma dificuldade, uma sutil mudança na maneira como um tratava o outro. Mas poucas observações revelariam tanto como a dos momentos em que os dois se colocavam juntos diante dEles, supremamente unidos, como nós todos, em oposição aos que estão do Outro Lado. E hoje se encaminhavam para um desses momentos.

Estavam indo decidir o empecilho que travara as gravações da Série por tanto tempo, o Problema fundamental que impedia as idéias dos dois de virarem realidade: a Série precisava de um nome e, até que decidissem qual seria, Eles não permitiriam que fosse gasto um rolo sequer de película. O problema começou pequeno. No dia em que as gravações iriam começar Eles mandaram um bilhete avisando que a Série precisava de um título, e que até que ele fosse decidido não haveria gravações. Madusky imaginou que Eles consideravam o título uma garantia de que a Série viria a existir, e não queriam comprometer o orçamento antes de ter essa garantia, mas não entendia porque eles só haviam tocado no assunto quando as gravações estavam prestes a começar e tanto já fora decidido. Mas a confusão de Martin só aumentaria à medida que o tempo passasse e a Série permanecesse sem título, permanecesse paralisada, e Eles permanecessem em silêncio, sem se manifestar sobre como o título seria escolhido. Essa pergunta atormentava Martin, que todas as noites rabiscava em um caderno possíveis títulos para sua história. Ele tentou entrar em contato com Little Punk e Doo-Doom, mas não encontrou nenhum deles. Tentou enviar recados para Eles, mas não encontrou mensageiros. Numa madrugada, sem conseguir dormir, chegara a ir até a Sede da Emissora para tentar de alguma maneira perguntar a Eles sobre o nome, mas o portões estavam fechados e eram altos demais para que ele passasse por cima. Martin esperou durante vários minutos à frente da Sede, mas começou a chover e ele foi embora.

A mesma Sede se apresentou, bela e terrível, quando o carro que agozinando comportava Madusky e B. virou a esquina da Thalberg com a Goebbels, e o pequeno automóvel continuou, dessa vez sem hesitação ou engasgos, até a portaria da NGP.

A Sede ficava no final da Goebbels, ou melhor, a Goebbels levava até a Sede. Os prédios baixos de escritórios seguiam, homogêneos, até um determinado ponto da rua, e depois davam lugar a uma sebe alta delimitada, em relação à calçada, por uma grade de ferro opaca. Os arbustos de folhas escuras se estendiam dos dois lados da rua, acompanhando as grades. Só cediam espaço para dois pequenos trechos de grade livre, que deixavam entrever um grande pátio de estacionamento e limitavam a portaria à esquerda e à direita. Acima dos portões lia-se a sigla enigmática, NGP. Não havia porteiro à vista, somente uma guarita com vidros pretos, embaixo dos quais emergia da parede um alto-falante. Uma voz metálica perguntou quem eram eles, e Martin respondeu dizendo que eram o Autor e o Diretor da Série. “Que série?”, perguntou o alto-falante, mas Martin não soube responder. Segundos depois, os portões se abriram, e, novamente atabalhoado, Martin engatou a primeira marcha e acelerou, cantando pneu, para dentro da Emissora.
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quarta-feira, 21 de abril de 2010

A Série - S01E18

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Aconteceu uma coisa muito estranha com o Kurt. Desde que ele chegou aqui ele mudou muito, eu sei, mas tá tudo piorando. No começo ele estava alegre, animado, cumprimentava as pessoas, mas depois foi se tornando mais apático, mais distante. Quando os ensaios começaram ele se animou de novo, todo mundo que conseguia ver o John B. orientando os atores, seja o Kurt e a Samantha, ou alguma cena dele com o Roy, dizia que ele estava muito bem, que tinha realmente conseguido captar o personagem. Mas antes dos ensaios e depois dos ensaios ele se fechava de novo, ficava trancado no trailer, e algumas vezes ia para casa e não voltava no dia seguinte.

Ultimamente, até a interpretação dele tinha degenerado. Ele não se esforçava mais por interpretar, somente lia o roteiro sempre do mesmo jeito, sempre do jeito como se lê da primeira vez, pra passar, como se em cada ensaio ele estivesse conhecendo tudo desde o começo. Ficava sentado na sua cadeira, de óculos escuros, declamando mecanicamente suas falas, para o desespero da Samantha, a perplexidade do Roy e da Tina e a completa indiferença do John B.

Ontem, ele deu um ultimato aos outros, a nós todos talvez, o Martin Madusky apareceu no estúdio e ele disse que queria começar a gravar, não importa o que acontecesse, ele disse que queria as câmeras ligadas no dia seguinte e que se não fosse isso ele não sabia do que seria capaz. Hoje ele chegou ao estúdio e todos estavam reunidos no lugar onde os ensaios acontecem, o Roy e a Samantha olharam para ele enquanto ele se aproximava, o John B. tava conversando com o Charlie, e o Madusky não estava lá. Quando ele chegou até eles, olhou ao redor e perguntou: “Cadê as câmeras?” Os outros só ficaram olhando para ele, meio sem jeito. Ele repetiu: “Cadê as câmeras?” O Roy tentou falar com ele, “Kurt”, mas era só o que ele precisava pra estourar de vez –

“Não, porra, cadê as câmeras, cadê a porra das câmeras?” – ele disse gritando, rangendo os dentes – “Eu não quero continuar repisando essas mesmas falas, eu não quero continuar reprisando essas mesmas cenas, não, porra, eu quero viver” – voava saliva de sua boca enquanto ele falava – “eu preciso disso, onde estão as câmeras, se não têm câmeras onde é que eu vou ser alguém, porra, onde, onde estão as câmeras” – ele gesticulava amplamente com os braços, caminhando nervosamente em direção a cada um de nós – “eu quero as câmeras agora, eu preciso, eu preciso das câmeras” – ele disse, parando, os olhos esbugalhados, olhando fixamente para mim – “eu quero VIVER!” – gritou, sua voz ficando aguda, e parou de falar. Mas nenhum de nós sabia o que responder para ele.
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sexta-feira, 16 de abril de 2010

Todo Dia, XVIII - Poesia

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almosting

“Queria que você estivesse aqui” -
Mais uma vez penso nessas palavras
Já tantas vezes repetidas,
Sempiternas portadoras
Do sentimento único,
Unicamente transmitido
Por “saudade” e “desejo”.

Caminho pela praia
Numa noite quase clara.
A lua, quase cheia,
Brilha alto no céu,
Quase coberta pelas nuvens.

Caminho pela praia,
E a noite é quase fresca.
O vento sopra fraco
E as ondas quase tocam meus pés,
Mas o calor não vai embora,
Fica, quase me fazendo tirar a camisa.

Caminho pela praia,
E lembro do dia, quase tudo:
Fez muito sol e a água estava ótima,
Assim como a comida da minha tia
E sua rede.
Estamos aqui já há três dias
A viagem está quase perfeita.

Caminho pela praia, quaseando,
Incompleto sem você,
E chuto um montinho de areia,
Quase acertando minha irmã,
Entristecido pela tua ausência.
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quarta-feira, 14 de abril de 2010

A Série - S01E17

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Observar os passos de Madusky é como observar uma aranha desengonçada tecendo sua teia, cagando fios de seda indestrutivelmente frágeis uns sobre os outros, tentando formar um padrão mas conseguindo somente um emaranhado, um novelo, um labirinto de fios pênseis e moles. Veja essa série, para a qual fui atraído como uma mosca. Madusky escreve contos ruins. Madusky finge ser um poeta maldito. Madusky escreve o roteiro de um filme. Madusky escreve uma minissérie. Madusky resolve escrever uma série. Por que o maldito não pode fazer duas vezes a mesma coisa? Porque ele não presta, é claro.

No período de preparação da série tudo correu bem. O primeiro dia foi uma festa. Kurt Belmondo apareceu caracterizado como Rhett Butler, que ele tinha interpretado numa versão para a TV de “E o vento levou...”. Samantha Sugarcane surgiu como o sol da manhã, uma aurora de dedos rosados dignamente adorada sorrindo para todos os que a cercavam. Roy Buffalo entrou despercebido mas logo já tinha tido pequenas conversas com quase todo mundo no estúdio, Tina Tornado se sentara logo após chegar a conversava com Lia Lispeck, dando a ela algumas dicas sobre a rotina de gravações de uma série adulta, e Justin Case concedia um pouco tímido autógrafos para alguns membros da equipe que tinham filhas adolescentes. John B. adentrou as portas como um velho profeta, humildemente calçando seus tênis e usando roupas simples, e sua entrada foi seguida por um longo murmúrio de excitação e admiração, enquanto ele andava, num passo entre o indiferente e o cauteloso, em direção aos autores. Martin Madusky, como sempre, chegou atrasado, e achou que a festa era para ele.

Ele paparicou muito o John B., naqueles primeiros dias, ele o seguia de cima para baixo, sempre um passo atrás do diretor, e eu quase podia vê-lo lambendo o chão que os pés de John B. pisavam. Mas então veio o impedimento, e as coisas meio que começaram a desabar. Não deixaram as gravações da série começar, e todos nós que trabalhávamos lá começamos a ficar perturbados. A Samantha se tornou irritadiça, o Kurt apático, o John B. histérico, e Martin Madusky... Martin Madusky continuou basicamente o mesmo, embora tenha parado de puxar o saco do John. Acho que isso diz muito sobre ele.
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quarta-feira, 7 de abril de 2010

A Série - S01E16

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Que desrespeito! Nunca vi maior afronta à dignidade de uma estrela!

Samantha, minha deusa, quis estrelar uma nova série de TV, de uma dessas emissoras cujo nome não significa nada. Colocaram para trabalhar com ela somente atores capazes de suportar seu brilho, embora o criador da série seja um tipinho irrelevante. Deram-lhe destaque e liberdade, e ela estava satisfeita com seu trabalho. Mas, ora, de uma hora para a outra as gravações foram paralisadas, e continuaram exigindo a presença de todo o elenco e equipe!

Esses produtores insignificantes! Quem eles pensam que são? Minha deusa tem mais o que fazer além de participar de uma seriezinha de TV. Ela poderia estar com seus amigos, ou trabalhando em projetos pessoais, ela poderia, ela poderia estar no cinema! Sim, fazendo um filme, gravando seu perfil eternamente no celulóide da minha memória.

Mas não, ao invés disso tem que permanecer cotidianamente ao lado de seres falsos, menores que ela, e suportar o constante adiamento do início de sua personagem, de seu próprio início para aquilo que dura. Prepotentes produtores, quem são eles? Como podem amarrar minha deusa com linhas de contrato ao penhasco de suas próprias ambições?

Não, isso não vai durar, não vai. Não há aves que queiram devorar-lhe o fígado, e os nós logo se afrouxarão. E então minha deusa poderá continuar sua caminhada, ela que carrega o fogo e nos ilumina a todos, titã que caminha por entre rostos minúsculos que inevitavelmente se apagam.
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sexta-feira, 2 de abril de 2010

Todo Dia, XVII - Poesia

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genealogia amorosa

Primeira vez:
Atrapalhado despertar de sensações.
Não lembro direito, agora,
Como foi a primeira vez que me apaixonei.
Lembro dela: seu rosto, suas palavras, suas idéias;
Mas foi tudo ilusão: a conheci na rede,
Nunca a vi pessoalmente.
O rosto era uma imagem, as palavras digitadas, idéias vaporosas.
Tínhamos amigos em comum, conversávamos em grandes chats,
E também a sós, nós dois, cada qual sozinho atrás da tela.
Lembro-me do sobrenome dela,
Que eu, tão insistentemente, juntava ao meu.
Um dia, me declarei: torrentes de palavras.
Mas ela não queria nada, claro, com alguém tão distante.

Segunda vez:
Amiga de amigos, amiga minha depois.
Estudamos na mesma escola, mas só a descobri após conversarmos,
Longamente, pelo Messenger ao computador.
Nos víamos raramente, tête-à-tête, e eu sempre ficava envergonhado.
Desabafei com amigos e amigos e amigos,
E a história se espalhou. Chegou até ela,
Que não disse nada. Convenceram-me a declarar-me,
E acabar com o sofrimento.
Virando-me pra dentro, coloquei-me à sua frente,
E disse, entrecortadas, as tais palavras.
“Eu gosto de você, mas como amigo.” – é claro,
Por isso eu já esperava.
Restaram-me os três textos que escrevi inspirado pela paixão,
E a lágrima que não consegui derramar.

Terceira vez:
Mal a vi ao vivo, um vulto sempre imaginado.
Enquanto pensava me envolver,
As longas conversas na rede,
Ela permanecia fria, até mesmo sem amizade.
Enquanto vivia essa paixão, escrevi muito,
Frutos de sonhos e da imaginação.
Mudei de estratégia: declarar-se é do passado.
Chamei-a pra sair, uma, duas, três vezes.
E ela aceitou todas.
Mas sempre, no dia anterior, surgia algo que nos impedia de encontrarmo-nos,
E ela vinha me contar, tranqüila, mal disfarçando
A desculpa que eu sentia ali.
Desisti, mandei tudo pro espaço, se ela não quer fazer o que...
(Mas doeu.)

Pensei que a fonte dos meus fracassos
Era fundar a paixão na ilusão de conversas virtuais:
Parei, quase totalmente, de conversar pelo computador,
E parei também de me apaixonar.
Terá sido uma proteção que o meu coração levantou
Para defender-se dos assaltos da negação?

Não, aconteceu de novo.
Nada de internet, só ao vivo, mas ainda mais fraco que das outras vezes.
Não escrevi, tampouco, nada sobre esse amor,
Nenhum registro ou desabafo.
Minha paixão deixou de se erguer sobre a ilusão virtual,
Ou a imaginação dos escritos, e passou a erguer-se,
Mal se equilibrando, sobre a existência efêmera das palavras ditas
E dos encontros temporais.

Não recebi, ainda, o não,
Mas ela parece se afastar na direção de outro alguém;
E enquanto vejo isso penso
Se meu destino será mesmo a solidão,
Ter a companhia amarga das esperanças e dos sonhos,
Enquanto ao meu redor seres vivos se unem e separam,
Aproximam-se e distanciam-se, vêm e vão.

E por fim penso ainda, antes de abandonar-me no colchão,
Se essas minhas paixões não foram outra coisa,
Um desejo só mal concebido,
Um apego excessivo,
Uma necessidade ainda não suprida,
E enquanto o último espasmo de dor me atravessa o coração,
Conclusão dramática de uma nova paixão,
Decido, sucinto:
Amor é obsessão.

(Mas agora já passou,
E essa última estrofe parece tão ridícula...)
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