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Ele respirou pela última vez (profundamente, como se por suas narinas entrasse todo o ar do mundo, como se ele pudesse carregar para além da vida todo o aroma ali contido, agarrando pelos poros as últimas reminiscências, trancando à chave no peito agonizante a última Verdade, a conclusão definitiva, espocando no final, a resposta para todas as suas perguntas e as suas perguntas todas reunidas no abraço de uma única pergunta, a pergunta que faria sua vida fazer sentido pela mera pronúncia, e depois dela a resposta impronunciável, como na história que seu pai contava quando dizia “Ei, criança, há muita beleza e muito horror no mundo, e há muitas vidas pelas quais a gente passa todos os dias, o dia todo, e podemos apenas imaginar quem são aqueles vultos, de onde estão vindo, para onde vão, o que pensam, e podemos apenas tentar, inabilmente, sentir algo por essas vidas, tentar enxergar a importância delas assim como você é importante, e tentar descobrir de onde elas vêem o mundo, assim como você vê. Mas se um dia você se sentir cansado e frustrado por não conseguir extrair nada dos rostos que passam, se você se sentir sozinho e desesperançoso, e seu coração parecer gritar por um sentido, pela verdade que ele não enxerga nas coisas, lembre-se dessa história que teu pai te conta agora, assim como meu pai me contou e o pai do meu pai antes dele e todos os pais, um após o outro, têm contado através dos séculos, pois ele começava dizendo ‘O mundo faz sentido, sim, meu filho, existe uma resposta. Na minha juventude, havia um homem estranho, um morador de rua que vagava diariamente pelo bairro, vestido de trapos, falando sozinho e cantando baixinho, sendo sempre educado e amável ao conversar com as pessoas. Todos gostavam muito dele, e até lhe ofereciam moradia e comida, mas ele só aceitava um pouco de comida e dizia: Não se preocupem comigo. Um dia, quando eu já estava com meus quinze anos, o encontrei caído em frente de casa, de bruços, o rosto amassado contra a calçada. Corri para acudi-lo, e ao virá-lo vi reluzir em seu rosto a imagem de um sorriso. Não como aqueles sorrisos serenos que ele sempre distribuía, mas um sorriso triunfante. Perguntei a ele o que tinha acontecido, se ele estava bem, mas ele levou o dedo à própria boca, pedindo silêncio. Depois, sussurrou baixinho certas palavras, cujo som ainda hoje ouço perfeitamente. Ele olhou nos meus olhos, então, pela última vez, e se foi dessa vida.’, mas eu tenho a impressão, filho, de que seu avô nunca soube o que aquele mendigo disse, em seus momentos finais. Quando eu perguntava, ele desconversava, mas não queria me dizer como isso mostrava o sentido do mundo. No entanto, eu mesmo, agora já velho, relembro das palavras do meu pai, e do seu tom de voz, e de sua vida, e percebo onde ele encontrou o sentido do mundo. Seu avô nunca compreendeu a serenidade daquele morador de rua, nem sua morte, nem suas palavras, mas o mero som daquele mero sussurro despertou nele algo que jamais sentira, o trepidar de uma verdade impossível de expressar mas capaz de provocar as mais violentas sensações, Verdade essa que se aninhou em sua mente para persegui-lo pelo resto de seus dias.” e depois deixava pairando no ar o que encontrara em sua busca pelo sentido do mundo na história de seu próprio pai, e o que seu pai encontrara no som das palavras do mendigo, e o que o mendigo encontrara antes de ir morar ali, naquela rua suburbana, e como seria possível o pai de seu avô ter contado aquela história a ele se ela acontecera com o próprio garoto, e como seria possível que todos os pais dos séculos a tivessem contado para seus filhos se ela era uma história tão particular, um episódio tão pequeno na vida de um único garoto, e nesse momento compreendeu que passara a vida tentando se lembrar, das palavras do pai, em que ponto ele lhe havia dado uma resposta, e percebeu que, para seu próprio filho, contara também aquela história, e expusera-lhe também as próprias dúvidas, e finalmente deu-se conta de que o legado de todas as gerações fora sempre o mistério, a pergunta não pronunciada, e que ele próprio já havia cumprido seu papel ao incutir no próprio filho a sensação do não saber, a pergunta que ele sequer conhecia, e no entanto, se passara todos os seus dias ignorante da própria ignorância, agora dava-se conta de tudo, e enfim, após todos aqueles anos, estava preparado para proferir a pergunta e receber em sua alma a resposta e por isso poderia sorrir, e sorriu), e morreu.
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quinta-feira, 23 de abril de 2009
quarta-feira, 15 de abril de 2009
Um tempinho
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Quem visita o blog com regularidade talvez tenha percebido que ontem não teve post, e que nas últimas semanas alguns posts foram ao ar com atraso de um dia. A princípio, foram só atrasos comuns, mas depois de pensar um pouco percebi que a coisa ia um pouco além. Estou muito sobrecarregado com os textos do blog. Ter de obrigatoriamente escrever algo todo dia é desgastante, mas recompensador na medida em que me propicia uma satisfação pessoal (e ainda mais se eu tiver retorno). Porém, ultimamente não tenho me sentido satisfeito com o que escrevo. Sinto-me vendo filmes sempre assombrado pelo dever de escrever depois sobre eles, e quando vou escrever não consigo falar nada realmente significativo. O que era uma meta instigante tornou-se uma obrigação desgastante. Por isso, vou diminuir bastante o ritmo aqui no blog. Devo postar nas próximas semanas textos do Lobato Légio, para finalizar o Tratado Universalizante da Xurepa, e talvez uma ou outra coisa de autoria dele. Além disso, pretendo postar algumas coisas minhas mesmo, algumas listas e comentários sobre o cinema. Afora isso, por enquanto, nada. Vou dar um tempo nas críticas de cinema e em tudo o mais, e suspender a periodicidade. Não dá pra dizer que o blog entra de férias, mas as postagens se tornarão bem mais esparsas. Pelo menos por enquanto.
Agradeço a compreensão de todos e peço que continuem visitando, lendo coisas mais antigas, enfim... prestigiem o blog enquanto ele estiver nessa fase mais parada. Isso com certeza vai ajudar muito.
Grande abraço a todos,
Tuma
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Quem visita o blog com regularidade talvez tenha percebido que ontem não teve post, e que nas últimas semanas alguns posts foram ao ar com atraso de um dia. A princípio, foram só atrasos comuns, mas depois de pensar um pouco percebi que a coisa ia um pouco além. Estou muito sobrecarregado com os textos do blog. Ter de obrigatoriamente escrever algo todo dia é desgastante, mas recompensador na medida em que me propicia uma satisfação pessoal (e ainda mais se eu tiver retorno). Porém, ultimamente não tenho me sentido satisfeito com o que escrevo. Sinto-me vendo filmes sempre assombrado pelo dever de escrever depois sobre eles, e quando vou escrever não consigo falar nada realmente significativo. O que era uma meta instigante tornou-se uma obrigação desgastante. Por isso, vou diminuir bastante o ritmo aqui no blog. Devo postar nas próximas semanas textos do Lobato Légio, para finalizar o Tratado Universalizante da Xurepa, e talvez uma ou outra coisa de autoria dele. Além disso, pretendo postar algumas coisas minhas mesmo, algumas listas e comentários sobre o cinema. Afora isso, por enquanto, nada. Vou dar um tempo nas críticas de cinema e em tudo o mais, e suspender a periodicidade. Não dá pra dizer que o blog entra de férias, mas as postagens se tornarão bem mais esparsas. Pelo menos por enquanto.
Agradeço a compreensão de todos e peço que continuem visitando, lendo coisas mais antigas, enfim... prestigiem o blog enquanto ele estiver nessa fase mais parada. Isso com certeza vai ajudar muito.
Grande abraço a todos,
Tuma
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segunda-feira, 13 de abril de 2009
Best Of do Rotten Tomatoes
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O Rotten Tomatoes é um dos mais utilizados sites de indexação de críticas na internet. Diferente do IMDb, onde qualquer um pode dar sua nota, bastando um cadastro, o Rotten Tomatoes tem um critério mais "especializado", pois só considera, na avaliação de um filme, notas de críticos. Assim, um filme pode ser considerado "rotten" (podre) ou "fresh" (fresco), de acordo com o número de review positivos e negativos que recebe.
O mais interessante no site é a diversidade de seus tops. Há listas para tudo: desde o melhores avaliados, passando por listas dos melhores de cada gênero, como filmes de terror, esportes, conspiração, etc., além da reunião do histórico das mais prestigiadas premiações do mundo, como o Oscar, o Globo de Ouro, os grandes festivais de cinema, etc.
Visitem então a página que reune todos esses rankings e se divirtam concordando ou discordando das listas ou comentários que os bem humorados editores são pródigos em fornecer.
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O Rotten Tomatoes é um dos mais utilizados sites de indexação de críticas na internet. Diferente do IMDb, onde qualquer um pode dar sua nota, bastando um cadastro, o Rotten Tomatoes tem um critério mais "especializado", pois só considera, na avaliação de um filme, notas de críticos. Assim, um filme pode ser considerado "rotten" (podre) ou "fresh" (fresco), de acordo com o número de review positivos e negativos que recebe.
O mais interessante no site é a diversidade de seus tops. Há listas para tudo: desde o melhores avaliados, passando por listas dos melhores de cada gênero, como filmes de terror, esportes, conspiração, etc., além da reunião do histórico das mais prestigiadas premiações do mundo, como o Oscar, o Globo de Ouro, os grandes festivais de cinema, etc.
Visitem então a página que reune todos esses rankings e se divirtam concordando ou discordando das listas ou comentários que os bem humorados editores são pródigos em fornecer.
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sexta-feira, 10 de abril de 2009
A Roda #18 - Tratado Universalizante da Xurepa, Parte 1: O Significado da Xurepa - A Xur-Lírica: Ouvi-La com a Alma
por Lobato Légio
Se a Xur-Épica contempla e estuda as trevas do abismo em que nos encontramos, e xurepicamente espera ser contemplada de volta, a Xur-Lírica busca lançar uma luz nesse abismo, nas trevas do mero ser, e iluminar os laços que unem as coisas com uma cor cálida e próxima. De fato, a Xur-Lírica é a mais pessoal das abordagens da Xurepa, justamente por ser, toda ela, pessoal e intransferível. No capítulo anterior, foi dito que as relações – xurépicas – entre as coisas poderiam ser representadas por linhas que as ligassem. Pois bem: a Xur-Lírica nada mais é que a contemplação, por um ser consciente, das linhas que saem de si próprio e o ligam às demais coisas do Universo.
Por ela se explica o mais valoroso conceito do ser humano: a experiência pessoal. Pois, se cada um vê as linhas que saem de si, cada um tem uma visão particular do Mundo: o emaranhado das linhas xurépicas que constituem a existência se apresenta a cada ser de maneira única. As linhas da Xurepa não ligam somente coisas materiais, mas as imaterias também. Um ser consciente é ligado às suas idéias, às idéias dos outros, às coisas que não conhece, e cada uma dessas linhas tem um significado próprio. Mas esse significado só é apreensível para aquele que a vê de determinado ponto. Alguém que observe uma linha ligando duas pessoas distintas terá uma determinada idéia sobre ela, e cada uma das pessoas nas extremidades da linha terá uma visão diferente, tanto daquele que se encontra na outra ponta quanto do observador passivo.
Aí se encontra a raiz da solidão, e aí a raiz da poesia. Tendo um ser humano uma visão única das coisas, ele é, até as últimas conseqüências, único, e sua experiência é também única, e intransferível, o que, em princípio, e ao menos em certos momentos, instantes que pontuam sua passagem pela Terra, o isola. Mas, se o todo é inimitável, dois seres conscientes podem ter uma visão similar de certas linhas, e portanto se aproximarem. O relacionamento humano, assim, é a busca por linhas que se sobreponham – seja por serem coincidentes, seja por se completarem. Quanto mais linhas sobrepostas entre dois seres, maior a proximidade entre eles, maior a ligação entre suas almas. Nem sempre o ser humano é capaz de divisar a sobreposição das linhas, ou entender conscientemente o significado delas. Mas elas estão ali, à espera da descoberta.
A poesia, por sua vez, é a tentativa de expressão da visão Xur-Lírica. Em sua solidão, em última instância, incontornável, o poeta quer que os outros compreendam sua própria visão, ou também querem se colocar em outro ponto de observação, querem se deslocar para outra convergência de linhas, donde poderão entender o que, de sua perspectiva trivial, não entendem. Desnecessário comentar sobre quais seriam as principais manifestações da Xur-Lírica na sociedade humana: ela está em toda parte. Cada ser consciente que se apercebe de sua singularidade, de seu lugar único em relação ao mundo, cada ser humano que se vê sozinho, incompreendido, cada pessoa que tenta dividir com os outros sua própria visão, seja por palavras, seja por gestos, seja por algum outro meio ainda não notado mas presente no decorrer dos dias, esse ente descobre a Xurepa, e a vivencia, e a espalha.
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quinta-feira, 9 de abril de 2009
O Novo Mundo
Em cada um dos filmes de Malick, há uma cena importante na qual os personagens principais aparecem em paz. Essa cena pode estar no começo ou no meio do filme, mas o mais importante é sua localização. Em tais cenas, quando os protagonistas vivem um idílio, seja esse interlúdio ou preâmbulo do que está por vir, eles o vivem em meio à natureza. A vida em comunhão com a natureza é o paraíso perdido de Malick. Em Terra de Ninguém, após fugirem da casa de Holly, ela e Kit passam um tempo em uma “casinha” construída por eles em meio às árvores. Durante esse período, eles vivem uma espécie de casamento feliz, se alimentando de peixes do rio e dormindo sob as estrelas. Em Cinzas no Paraíso, o único momento de felicidade do casal formado por Abby e pelo Fazendeiro é quando Bill vai embora, e junto com Linda aqueles vivem um período de total alegria em meio às pradarias. Já em Além da Linha Vermelha, o momento idílico é deslocado para o início do filme, para o trecho em que Witt, junto com outro soldado desertor, vive em meio à uma tribo nativa de uma ilha do Pacífico. O que todas essas cenas têm em comum, no entanto, é que elas acabam: o mundo dos homens, com suas paixões, ganâncias e violência, se intromete ali onde reinava um paraíso, e joga os indivíduos que ali viviam de novo no sofrimento, um processo que inevitavelmente termina em tragédia.
Mas se tudo isso é verdade para os três filmes anteriores, O Novo Mundo, mais recente filme do diretor, representa um passo à frente em sua filosofia. Estilisticamente, ele mantém as mudanças que Além da Linha Vermelha trouxera: mais dramaticidade, a natureza revelada no mar e na selva, e uma certa verborragia, embora aqui ela seja mais concentrada e ao mesmo tempo diversificada, ao apresentar não só pensamentos dos personagens, mas também orações e algumas outras coisas do tipo. Filosoficamente, porém, o filme é uma condensação do discurso geral de Malick e, como já dito, também um prolongamento desse discurso. Pois, se muitos duvidaram que algo de bom poderia sair de mais um filme sobre a lenda de Pocahontas, princesa indígena americana que se apaixona pelo capitão inglês John Smith, a grande maioria se surpreendeu com a força e a ousadia do filme. E tudo por um motivo muito simples: ao invés de focar o drama do romance “impossível” entre os dois, Malick o insere como parte de algo muito maior: o drama do ser humano que é separado da natureza e paulatinamente deformado de sua forma original para transformar-se em algo que nunca fora ou poderia ser realmente. Pocahontas (cujo nome nem é citado no filme) é uma jovem índia, filha preferida do chefe da tribo, uma garota alegre, saltitante, inteligente, amorosa, adorada por todos. E mais importante: toda a sua alegria advém, ou melhor, se integra, com a natureza ao seu redor: às arvores, as clareiras e o solo acolhem sua vivacidade, compartilham dela, ajudam a criá-la. É o mais perfeito retrato da união entre o indivíduo e o ambiente.
No entanto, quando Smith chega e atrai repentinamente o olhar da moça, sua vida começa lentamente a mudar. Ainda há espaço para o idílio, claro: também aqui há um trecho específico de comunhão com a natureza. Smith é capturado pelos índios e Pocahontas impede que ele seja morto. Depois disso, vivendo como prisioneiro, Smith passa um período de felicidade, sempre brincando com as crianças e dançando com outros índios, além de, claro, fazer companhia a Pocahontas. Esse trecho incomoda um pouco, pois parece tentar pintar os índios como uma sociedade perfeita, pacífica, alegre, mas logo essa impressão é desfeita ao percebermos que também os índios são violentos e têm seus problemas: o paraíso de Malick é a comunhão com a natureza, a vida em uníssono, e não um tipo de organização social específico. Após o período de idílio acima mencionado, é consentido a Smith voltar para o assentamento de seus compatriotas, e por algum tempo os ingleses recebem ajuda dos índios, sempre liderados por Pocahontas. Mas esse equilíbrio dura pouco, os dois grupos entram em guerra, espocam traições e loucura, e Pocahontas acaba sendo exilada de sua tribo, e depois vendida aos ingleses para ser mantida como refém. Smith, porém, não concordando com isso, é mandado de volta para a Inglaterra, com o objetivo de comandar uma nova missão, e manda dizer à índia que morreu na viagem.
É aí o fundo do poço de Pocahontas: separada para sempre de seu amor, separada para sempre de sua tribo, ela recebe roupas inglesas, uma casa inglesa, uma criada inglesa, e é transformada em uma inglesa. Mas o aspecto de seu rosto não permite enganar ninguém sobre a solidão e a tristeza que tomaram conta de sua alma. Mesmo quando John Rolfe, um outro inglês, dessa vez mais generoso, mais amável, se envolve com ela, e juntos têm um filho, e se casam, a princesa não consegue superar a melancolia: pensa que o que a faz triste é não ter mais o amor de Smith, é ter sido separada dele pela morte. O casal vai para a Inglaterra, conhecer a rainha, e assim Pocahontas se separa ainda mais de sua terra. O inesperado acontece, porém, e ela descobre que John Smith está vivo. O homem vai visitá-la e os dois ficam alguns momentos juntos, mas Pocahontas percebe que não existe mais amor, não para ele. Depois, abraça forte o marido, que tanto evitara, e brinca com o filho entre os arbustos podados e simetricamente organizados no jardim humanamente engendrado da mansão. O filme termina com uma curta narração de Rolfe, escrevendo em uma carta para que o filho no futuro leia, dizendo que a mãe morreu antes que pudessem voltar para América, mas morreu em paz, feliz.
Daí delineamos a trajetória da princesa índia, e o passo a frente que Malick deu. De uma garota perfeitamente integrada à natureza, Pocahontas torna-se, pelo amor e pela tragédia, presa em um mundo que não é o seu. Antes, talvez Malick terminasse o filme aí. Dessa vez, porém, ele leva a história além. A melancolia que a moça sente não é pelo amor perdido de Smith, mas pelo sentimento perdido de união à natureza. Quando ela o encontra novamente, retornado dos mortos, percebe isso, e então pode retirar aquela falsa angústia de sua alma. Então, mesmo na Inglaterra, mesmo em meio a uma natureza artificial manipulada pelos humanos, mesmo presa em uma roupa das mulheres da ilha, ela pula, corre e dá cambalhotas, como fazia quando estava em sua terra natal, antes de perder a inocência. Ela ama, dessa vez sem freios, seu filho e seu marido, com a plenitude de alguém feliz. É verdade: antes ela gargalhava, e agora, no fim, somente sorri – a diferença é grande. Mas é somente isso que nos resta, diz Malick: a inocência, a perfeita comunhão com a natureza, já foi perdida, e agora só podemos tentar encontrar um estado de ser que se aproxime do primordial. E para isso, devemos procurar em nós mesmos, encontrar o que nos aproxime, mesmo presos em caixões de concreto e aço, do Paraíso original que por nossa falibilidade perdemos para que não mais fosse encontrado.
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Mas se tudo isso é verdade para os três filmes anteriores, O Novo Mundo, mais recente filme do diretor, representa um passo à frente em sua filosofia. Estilisticamente, ele mantém as mudanças que Além da Linha Vermelha trouxera: mais dramaticidade, a natureza revelada no mar e na selva, e uma certa verborragia, embora aqui ela seja mais concentrada e ao mesmo tempo diversificada, ao apresentar não só pensamentos dos personagens, mas também orações e algumas outras coisas do tipo. Filosoficamente, porém, o filme é uma condensação do discurso geral de Malick e, como já dito, também um prolongamento desse discurso. Pois, se muitos duvidaram que algo de bom poderia sair de mais um filme sobre a lenda de Pocahontas, princesa indígena americana que se apaixona pelo capitão inglês John Smith, a grande maioria se surpreendeu com a força e a ousadia do filme. E tudo por um motivo muito simples: ao invés de focar o drama do romance “impossível” entre os dois, Malick o insere como parte de algo muito maior: o drama do ser humano que é separado da natureza e paulatinamente deformado de sua forma original para transformar-se em algo que nunca fora ou poderia ser realmente. Pocahontas (cujo nome nem é citado no filme) é uma jovem índia, filha preferida do chefe da tribo, uma garota alegre, saltitante, inteligente, amorosa, adorada por todos. E mais importante: toda a sua alegria advém, ou melhor, se integra, com a natureza ao seu redor: às arvores, as clareiras e o solo acolhem sua vivacidade, compartilham dela, ajudam a criá-la. É o mais perfeito retrato da união entre o indivíduo e o ambiente.
No entanto, quando Smith chega e atrai repentinamente o olhar da moça, sua vida começa lentamente a mudar. Ainda há espaço para o idílio, claro: também aqui há um trecho específico de comunhão com a natureza. Smith é capturado pelos índios e Pocahontas impede que ele seja morto. Depois disso, vivendo como prisioneiro, Smith passa um período de felicidade, sempre brincando com as crianças e dançando com outros índios, além de, claro, fazer companhia a Pocahontas. Esse trecho incomoda um pouco, pois parece tentar pintar os índios como uma sociedade perfeita, pacífica, alegre, mas logo essa impressão é desfeita ao percebermos que também os índios são violentos e têm seus problemas: o paraíso de Malick é a comunhão com a natureza, a vida em uníssono, e não um tipo de organização social específico. Após o período de idílio acima mencionado, é consentido a Smith voltar para o assentamento de seus compatriotas, e por algum tempo os ingleses recebem ajuda dos índios, sempre liderados por Pocahontas. Mas esse equilíbrio dura pouco, os dois grupos entram em guerra, espocam traições e loucura, e Pocahontas acaba sendo exilada de sua tribo, e depois vendida aos ingleses para ser mantida como refém. Smith, porém, não concordando com isso, é mandado de volta para a Inglaterra, com o objetivo de comandar uma nova missão, e manda dizer à índia que morreu na viagem.
É aí o fundo do poço de Pocahontas: separada para sempre de seu amor, separada para sempre de sua tribo, ela recebe roupas inglesas, uma casa inglesa, uma criada inglesa, e é transformada em uma inglesa. Mas o aspecto de seu rosto não permite enganar ninguém sobre a solidão e a tristeza que tomaram conta de sua alma. Mesmo quando John Rolfe, um outro inglês, dessa vez mais generoso, mais amável, se envolve com ela, e juntos têm um filho, e se casam, a princesa não consegue superar a melancolia: pensa que o que a faz triste é não ter mais o amor de Smith, é ter sido separada dele pela morte. O casal vai para a Inglaterra, conhecer a rainha, e assim Pocahontas se separa ainda mais de sua terra. O inesperado acontece, porém, e ela descobre que John Smith está vivo. O homem vai visitá-la e os dois ficam alguns momentos juntos, mas Pocahontas percebe que não existe mais amor, não para ele. Depois, abraça forte o marido, que tanto evitara, e brinca com o filho entre os arbustos podados e simetricamente organizados no jardim humanamente engendrado da mansão. O filme termina com uma curta narração de Rolfe, escrevendo em uma carta para que o filho no futuro leia, dizendo que a mãe morreu antes que pudessem voltar para América, mas morreu em paz, feliz.
Daí delineamos a trajetória da princesa índia, e o passo a frente que Malick deu. De uma garota perfeitamente integrada à natureza, Pocahontas torna-se, pelo amor e pela tragédia, presa em um mundo que não é o seu. Antes, talvez Malick terminasse o filme aí. Dessa vez, porém, ele leva a história além. A melancolia que a moça sente não é pelo amor perdido de Smith, mas pelo sentimento perdido de união à natureza. Quando ela o encontra novamente, retornado dos mortos, percebe isso, e então pode retirar aquela falsa angústia de sua alma. Então, mesmo na Inglaterra, mesmo em meio a uma natureza artificial manipulada pelos humanos, mesmo presa em uma roupa das mulheres da ilha, ela pula, corre e dá cambalhotas, como fazia quando estava em sua terra natal, antes de perder a inocência. Ela ama, dessa vez sem freios, seu filho e seu marido, com a plenitude de alguém feliz. É verdade: antes ela gargalhava, e agora, no fim, somente sorri – a diferença é grande. Mas é somente isso que nos resta, diz Malick: a inocência, a perfeita comunhão com a natureza, já foi perdida, e agora só podemos tentar encontrar um estado de ser que se aproxime do primordial. E para isso, devemos procurar em nós mesmos, encontrar o que nos aproxime, mesmo presos em caixões de concreto e aço, do Paraíso original que por nossa falibilidade perdemos para que não mais fosse encontrado.
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quarta-feira, 8 de abril de 2009
A Roda #17 - Panorama do Vale de Legium, parte 7
por Lobato Légio
Ao fim do grande mar, onde o azul impassível encontra em brancura e espuma as falésias da costa oeste do Império, ali, descendo das rochas, após o platô que avança em direção às águas, desafiando a calma inescrutável do sem-fim-à-vista, ali começa a grande planície, que de seu início segue até o fim, contida por seus limites, que a cercam. Um viajante que porventura ponha os pés na terra das pradarias encontrará a cada passo o rastro das lendas que a habitam, o murmurinho das bocas que se multiplica a cada forasteiro, indagando se ele seria de fora da Planície ou de uma região mais distante dela, desde sempre e até o fim desconhecida às línguas indagadoras.
De todos os mistérios, porém, de todas as historias, de todas as fábulas, de todos os boatos sobre ladrões; exércitos de animais ou de mortos; caravanas sinuosas e intermináveis com centenas de milhares de pessoas, verdadeiras cidades ambulantes; feras multicoloridas e mortais, capazes de matar com seu veneno ou seus chifres; ou ainda as tribos de homens voadores que fazem seus ninhos em esparsas árvores nunca vistas; de todas as palavras, enfim, que percorrem as bocas e ouvidos dos que põe os pés na Planície, as mais inescapáveis, sem dúvida, são as que versam sobre uma grande pedra e sua caverna interior, e sobre o Som que lá habita.
No meio da Planície, ponto exato entre as linhas que a cruzam por sua maior extensão de Norte a Sul e Oeste a Oriente, há uma grande Pedra. Junto dela, encontram-se dois homens, um jovem e um mais velho, um sentado e outro em pé, um coberto dos pés à cabeça e o outro também, a não ser pelo fato de, nesse exato instante, ter tirado seu capuz e revelado o rosto imberbe para a sombra lançada sobre ele pela Pedra. O velho fala.
“Isso, Amaron, sente-se, você precisa descansar, ainda é muito jovem para ficar em pé recebendo o sol. Sua pele pura não está acostumada com a inclemência do olho-que-nos-frita.”
“Pare com isso, Nanutchk, sabes muito bem que só vou descansar um pouco porque machuquei o tornozelo ontem.”, respondeu o jovem.
“Pois bem, aceito isso. Ainda assim, o que eu disse continua sendo verdadeiro.”
“Que seja, Nanutchk, mas venha: conte-me uma história. Conte-me uma daquelas que só você conhece, uma das boas!”
O velho pensou por um minuto.
“Veja só, conheço uma muito valorosa. Não sei se reparaste, Amaron, mas estás sentado à sombra da Pedra do Meio, a grande rocha que se ergue no meio da Planície.”
“Ora...”, Amaron ergueu-se sem se levantar e virou para a Pedra, a fim de contemplá-la. “É essa mesmo? Não me parece ter nada de especial.”
“Nada de especial? Pois então escute. Essa pedra tem algo de muito misterioso sobre si. Ou deveria dizer sob si, hein? Eh–eh-eh. Sim, sob a Pedra, dizem alguns, há uma caverna. O que haverá nessa caverna, ou de que tamanho será, não há quem saiba. No entanto, eu, em minhas viagens, já ouvi relatos de homens lúcidos que disseram ter ouvido, ao passarem por aqui, um grande ruído ou som estrepitoso. A natureza do som, não me explicaram, mas afirmaram, todos eles em comum, ser algo por assim dizer novo, nunca antes ouvido, um som podemos dizer fresco, e ao mesmo tempo frio, um som que parecia brotar da terra como uma fonte d’água. Após o som, ao encararem a Pedra, percebiam ter-se aberto nela um buraco, um grande buraco negro que como exalava um bafo maligno. Sobre este ponto, alguns divergem. Certos narradores disseram ser o bafo muito acalentador, livre, capaz de libertar a mente por um instante de toda a memória e todo pensamento, transformando-a numa espécie de, como já me disseram, mar ou lagoa calma, em cujas águas não há desatino ou ruga. Prefiro, porém, manter uma certa desconfiança às coisas das profundezas, e encarar esse ar do buraco como algo a se manter distância. Terminavam dizendo, por fim, que ao contemplar o buraco eram tomados de um grande pavor, e não conseguiam sequer se mexer, até que um novo ruído, dessa vez mais familiar, brotasse do movimento das pedras e fechasse o buraco novamente. Por mais que tentassem, nenhum dos que me contaram histórias semelhantes puderam escavar ou encontrar novamente o buraco, e mantiveram consigo somente uma leve lembrança do negrume, do som e do bafo que compunham a caverna oculta. Certo, meu caro Amaron, a Planície está cheia de histórias desse tipo, mas dada a localização da pedra e o volume de histórias semelhantes creio ser razoável supor que...”
As palavras de Nanutchk foram interrompidas por um leve tremor, que arremessou Amaron ao chão e fez o velho desequilibrar-se. Em seguida ao tremor, o entorno foi preenchido, subitamente, pela vibração de um som estranho, pouco natural, que parecia entrar, em estado quase sólido, pelas orelhas dos dois homens, e ali alojar-se, grudando nas grutas de seus órgãos e impedindo que eles ouvissem até mesmo suas vozes gritando. Somente soava, por todos os lados e reentrâncias, o som misterioso, o som indescritível, preenchendo e tolhendo os sentidos de Nanutchk e Amaron como a afogá-los na própria sensibilidade.
Então, como viera, o som foi-se, desobstruindo os ouvidos e as mentes dos dois viajantes e permitindo-lhes respirar aliviados. Nanutchk foi o primeiro a reparar, erguendo os olhos, que algo diferente surgira onde antes havia pedra, exatamente no local em que Amaron estivera sentado instantes (ou já teria se passado uma eternidade?) antes. Antes que o velho pudesse dizer qualquer coisa, também Amaron virou-se e encarou o buraco que surgira na Pedra. O bafo atingiu-lhe logo o rosto, e o jovem deu um passo para trás. Do buraco emergia um vento, uma corrente ao mesmo tempo suave e constante de ar que lentamente envolvia os dois homens. Nanutchk sentia-se como se uma cobra estivesse enrodilhando-se em seu corpo, enquanto a Amaron parecia que a corente o levantava do chão, deixando seu corpo suspenso no ar. Ficaram imóveis durante segundo preciosos. Nenhum dos dois queria arriscar um movimento. Amaron percebia, porém, que diferente do que ocorria nas histórias que Nanutchk ouvira, ele não estava paralisado. Se Nanutchk permanecia tenso, preso num abraço apertado, ele sentia-se capaz de correr e até voar, estando ali onde estava. Movido por uma força natural, que retrocedeu seu passo-para-trás e o levou a dar um passo à frente, Amaron sentiu um imenso desejo de penetrar no buraco da Pedra e explorar a caverna que além dele se escondia.
Num último momento de indecisão, virou-se para Nanutchk e viu que o velho continuava com os músculos tensionados, presos por uma serpente invisível. Balançando a cabeça, Amaron tornou a olhar para o buraco, e sem emitir palavra adentrou o espaço negro que o aguardava.
Tão logo seu último calcanhar desapareceu nas trevas, o Som voltou mais uma vez, um assovio rápido e baixo, e a terra novamente tremeu, e as rochas levantaram poeira, e o buraco na Pedra voltou a se fechar. Imóvel e sozinho, Nanutchk olhou ao redor, e experimentou dar um passo: seu pé se mexeu. Então, o velho relaxou os ombros, soltou os braços do nó que ele próprio dera, e exaurido de repente de suas energias desabou no chão, virando em seguida o corpo e encarando o céu esbranquiçado. Um vento forte levantou areia, envolvendo-o, e aspirando o pó do solo o velho fechou os olhos e dormiu.
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terça-feira, 7 de abril de 2009
Além da Linha Vermelha
Quando, vinte anos após ter-nos entregue seu último filme, a obra-prima Cinzas no Paraíso, Terrence Malick anunciou que voltaria a filmar, a comoção foi geral. Logo, dezenas de astros anunciaram interesse em participar do filme, atores como Robert De Niro, Kevin Costner, Tom Cruise e Brad Pitt. No entanto, se estes não estão em Além da Linha Vermelha, o elenco não deixa de ser estelar, talvez um dos mais estrelados elencos já vistos no cinema: estão no filme (alguns em participações descartáveis, vá lá, uma ceninha só) Sean Penn, Adrien Brody, Jim Caviezel, George Clooney, John Cusack, Jared Leto, Woody Harrelson, Nick Nolte e John Travolta, e, além deles, ainda gravaram cenas que não entraram na edição final Billy Bob Thornton, Martin Sheen, Gary Oldman, Bill Pullman, Viggo Mortensen e Mickey Rourke!
Essa profusão de atores é um indício de que ao menos uma coisa mudou nesse filme pós-exílio: ao contrário de Terra de Ninguém e Cinzas no Paraíso, Além da Linha Vermelha gira ao redor de muitos personagens. De fato, o número de “narradores” do filme, ou, mais especificamente, de personagens cujos pensamentos transbordam suas mentes e atingem nossos ouvidos, é oito; oito homens cujas mentes se nos dão à vista. Outra mudança significativa, decorrente em parte dessa abundância de personagens é o fato de o filme durar pouco mais de três horas, contrariando a “concisão” dos outros filmes de Malick. Isso se deve sobretudo, ao fato de o filme ser a adaptação de um romance, gênero que raramente dá à luz obras curtas.
Mas enfim, com tantos personagens e sendo adaptado de um romance, o que realmente mudou em Malick após vinte anos de ausência nas telas? O estilo calmo e contemplativo permanece o mesmo, mas a aplicação desse estilo é que mudou. Se nos dois filmes anteriores o diretor se havia interessado por pradarias e pelo céu, tanto nesse como em seu próximo filme o ambiente é o da selva e o do mar. A água e o verde, portanto, assumem grande importância tanto visual quanto conceitualmente. Além disso, os filmes se tornam mais verborrágicos, dão uma vazão mais direta aos pensamentos dos personagens e da filosofia de Malick (ou antes, do filme em si), ainda que esta continue se apoiando nos acontecimentos e na imagem para expressar-se. Por isso, Malick se torna também menos seco, e dá mais espaço ao drama dos seres humanos.
Chegamos então ao cerne de Além da Linha Vermelha: o drama e os pensamentos dos soldados americanos que lutaram na batalha de Guadalcanal, ilha japonesa, no final da Segunda Guerra. Ao invés de centrar o drama em um combatente, como é comum nesse tipo de filme, Malick o pulveriza em uma vasta gama de personagens em pequenas situações. Ainda que haja o que se pode chamar de um protagonista (que dá unidade ao filme), as “narrações” são feitas por oito personagens, como já dito, os únicos flashbacks do filme são de um outro soldado, e há diversos momentos em que a ação é totalmente centrada no que fazem e pensam vários outros combatentes. Esse artifício serve para Malick imprimir humanidade a vários personagens, tornando-os assim mais próximos do espectador e levando-o por conseguinte a sentir mais de perto a morte de cada um. Além disso, a diversificação e fragmentação da narrativa contribuem para que o retrato da guerra seja realista e aprofundado, não se limitando ao heroísmo ou à loucura de um único soldado, mas expressando o valor de cada vida perdida.
Individualmente, cada soldado tenta sobreviver, se encontrar, manter junto a si as reminiscências da vida antes da guerra. Em conjunto, eles são uma massa cheia de defeitos que se auto-sacrifica para conquistar um objetivo que não é o deles. Para Witt, o primeiro narrador e aquele que pode ser considerado protagonista, o mais incompreensível é o que leva a natureza a voltar-se contra si mesma. Se os outros personagens lutam com seus dilemas e sofrimentos individuais – o soldado que se lembra da esposa, o major que quer ser promovido, etc. -, Witt é mais passivo, na medida em que encara o que acontece à sua volta de forma calma, contemplativa, o que pode transformá-lo numa espécie de alterego do diretor. Witt é o homem que abandona o pelotão sem permissão para viver no meio de uma tribo nativa, mas também é o soldado que se voluntaria para uma missão perigosa, potencialmente mortal. Não se trata, porém, de alguma espécie de heroísmo ou coragem: trata-se de entregar a própria vida para não entregar uma outra, de encarar estoicamente o impulso destrutivo do ser humano e, desolado, perceber que a simplicidade e o natural se perdem no meio da barbárie. Trata-se de, percebendo o horror e o inatural da guerra, querer cessar de presenciá-la, nem que para isso seja preciso cessar com a própria vida.
Após vinte anos, Malick entregou um filme um pouco diferente do que se esperava, um filme talvez até um pouco decepcionante. Mas, sem dúvida, um filme muito significativo e que, sutilmente, oferece muito o que pensar.
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Essa profusão de atores é um indício de que ao menos uma coisa mudou nesse filme pós-exílio: ao contrário de Terra de Ninguém e Cinzas no Paraíso, Além da Linha Vermelha gira ao redor de muitos personagens. De fato, o número de “narradores” do filme, ou, mais especificamente, de personagens cujos pensamentos transbordam suas mentes e atingem nossos ouvidos, é oito; oito homens cujas mentes se nos dão à vista. Outra mudança significativa, decorrente em parte dessa abundância de personagens é o fato de o filme durar pouco mais de três horas, contrariando a “concisão” dos outros filmes de Malick. Isso se deve sobretudo, ao fato de o filme ser a adaptação de um romance, gênero que raramente dá à luz obras curtas.
Mas enfim, com tantos personagens e sendo adaptado de um romance, o que realmente mudou em Malick após vinte anos de ausência nas telas? O estilo calmo e contemplativo permanece o mesmo, mas a aplicação desse estilo é que mudou. Se nos dois filmes anteriores o diretor se havia interessado por pradarias e pelo céu, tanto nesse como em seu próximo filme o ambiente é o da selva e o do mar. A água e o verde, portanto, assumem grande importância tanto visual quanto conceitualmente. Além disso, os filmes se tornam mais verborrágicos, dão uma vazão mais direta aos pensamentos dos personagens e da filosofia de Malick (ou antes, do filme em si), ainda que esta continue se apoiando nos acontecimentos e na imagem para expressar-se. Por isso, Malick se torna também menos seco, e dá mais espaço ao drama dos seres humanos.
Chegamos então ao cerne de Além da Linha Vermelha: o drama e os pensamentos dos soldados americanos que lutaram na batalha de Guadalcanal, ilha japonesa, no final da Segunda Guerra. Ao invés de centrar o drama em um combatente, como é comum nesse tipo de filme, Malick o pulveriza em uma vasta gama de personagens em pequenas situações. Ainda que haja o que se pode chamar de um protagonista (que dá unidade ao filme), as “narrações” são feitas por oito personagens, como já dito, os únicos flashbacks do filme são de um outro soldado, e há diversos momentos em que a ação é totalmente centrada no que fazem e pensam vários outros combatentes. Esse artifício serve para Malick imprimir humanidade a vários personagens, tornando-os assim mais próximos do espectador e levando-o por conseguinte a sentir mais de perto a morte de cada um. Além disso, a diversificação e fragmentação da narrativa contribuem para que o retrato da guerra seja realista e aprofundado, não se limitando ao heroísmo ou à loucura de um único soldado, mas expressando o valor de cada vida perdida.
Individualmente, cada soldado tenta sobreviver, se encontrar, manter junto a si as reminiscências da vida antes da guerra. Em conjunto, eles são uma massa cheia de defeitos que se auto-sacrifica para conquistar um objetivo que não é o deles. Para Witt, o primeiro narrador e aquele que pode ser considerado protagonista, o mais incompreensível é o que leva a natureza a voltar-se contra si mesma. Se os outros personagens lutam com seus dilemas e sofrimentos individuais – o soldado que se lembra da esposa, o major que quer ser promovido, etc. -, Witt é mais passivo, na medida em que encara o que acontece à sua volta de forma calma, contemplativa, o que pode transformá-lo numa espécie de alterego do diretor. Witt é o homem que abandona o pelotão sem permissão para viver no meio de uma tribo nativa, mas também é o soldado que se voluntaria para uma missão perigosa, potencialmente mortal. Não se trata, porém, de alguma espécie de heroísmo ou coragem: trata-se de entregar a própria vida para não entregar uma outra, de encarar estoicamente o impulso destrutivo do ser humano e, desolado, perceber que a simplicidade e o natural se perdem no meio da barbárie. Trata-se de, percebendo o horror e o inatural da guerra, querer cessar de presenciá-la, nem que para isso seja preciso cessar com a própria vida.
Após vinte anos, Malick entregou um filme um pouco diferente do que se esperava, um filme talvez até um pouco decepcionante. Mas, sem dúvida, um filme muito significativo e que, sutilmente, oferece muito o que pensar.
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segunda-feira, 6 de abril de 2009
Melhores (e piores) do IMDb
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Mais importante, respeitado e completo site sobre cinema da Web, o IMDb - Internet Movie Database - tem em suas páginas informações sobre virtualmente todos os filmes já lançados, assim como todos os profissionais - cast and crew - que trabalharam nesses filmes - diretores, editores, compositores, roteiristas e atores, desde o astro protagonista dos clássicos até a atriz que só apareceu como loira de biquini em um filme obscuro.
Como seria de se esperar, o site possui também um sistema para os usuários darem notas aos filmes, após o que forma-se um ranking permanente. Por esse aspecto público, o ranking está sujeito a ser alvo de "disputas" - como aconteceu ano passado, quando fãs de O Poderoso Chefão e do ascendente Batman: Cavaleiro das Trevas disputavam para ver qual dos dois filmes iria ocupar o topo. Ainda assim, é interessante observar os gostos e preferências do público (majoritariamente americano) que participa dessa votação sem fim, o que nos leva a alguns casos curiosos, como a presença de Um Sonho de Liberdade como tradicional primeiro colocado da lista.
Por outro lado (literalmente), o IMDb também agrupa os filmes pior avaliados por seus usuários, ranking esse lotado de filmes obscuros mas pontuado com alguns clássicos "filmes ruins". É muito engraçado ver os títulos e as sinopses dos piores filmes, assim como as imagens dessas obras peculiares. Fiquem então, abaixo, com os dez melhores e dez piores filmes de todos os tempos, segundo a votação do IMDb.
Os Melhores:
1- Um Sonho de Liberdade, Frank Darabont
2- O Poderoso Chefão, Francis Ford Coppola
3- O Poderoso Chefão, parte II, Francis Ford Coppola
4- Três Homens em Conflito, Sergio Leone
5- Pulp Fiction, Quentin Tarantino
6- Batman: O Cavaleiro das Trevas, Christopher Nolan
7- A Lista de Schindler, Steven Spielberg
8- Um Estranho no Ninho, Milos Forman
9- 12 Homens e Uma Sentença, Sidney Lumet
10- Star Wars: Episódio V - O Império Contra-Ataca, Irvin Kershner
Os Piores:
1- Barney's Great Adventure
2- Leonard Part 6
3- Laserblast
4- Bad Girls from Valley High
5- The Astro-Zombies
6- Seven Mummies
7- Son of the Mask
8- Maciste e la regina di Sammar
9- Car 54, Where Are You?
10- King of the Lost World
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Mais importante, respeitado e completo site sobre cinema da Web, o IMDb - Internet Movie Database - tem em suas páginas informações sobre virtualmente todos os filmes já lançados, assim como todos os profissionais - cast and crew - que trabalharam nesses filmes - diretores, editores, compositores, roteiristas e atores, desde o astro protagonista dos clássicos até a atriz que só apareceu como loira de biquini em um filme obscuro.
Como seria de se esperar, o site possui também um sistema para os usuários darem notas aos filmes, após o que forma-se um ranking permanente. Por esse aspecto público, o ranking está sujeito a ser alvo de "disputas" - como aconteceu ano passado, quando fãs de O Poderoso Chefão e do ascendente Batman: Cavaleiro das Trevas disputavam para ver qual dos dois filmes iria ocupar o topo. Ainda assim, é interessante observar os gostos e preferências do público (majoritariamente americano) que participa dessa votação sem fim, o que nos leva a alguns casos curiosos, como a presença de Um Sonho de Liberdade como tradicional primeiro colocado da lista.
Por outro lado (literalmente), o IMDb também agrupa os filmes pior avaliados por seus usuários, ranking esse lotado de filmes obscuros mas pontuado com alguns clássicos "filmes ruins". É muito engraçado ver os títulos e as sinopses dos piores filmes, assim como as imagens dessas obras peculiares. Fiquem então, abaixo, com os dez melhores e dez piores filmes de todos os tempos, segundo a votação do IMDb.
Os Melhores:
1- Um Sonho de Liberdade, Frank Darabont
2- O Poderoso Chefão, Francis Ford Coppola
3- O Poderoso Chefão, parte II, Francis Ford Coppola
4- Três Homens em Conflito, Sergio Leone
5- Pulp Fiction, Quentin Tarantino
6- Batman: O Cavaleiro das Trevas, Christopher Nolan
7- A Lista de Schindler, Steven Spielberg
8- Um Estranho no Ninho, Milos Forman
9- 12 Homens e Uma Sentença, Sidney Lumet
10- Star Wars: Episódio V - O Império Contra-Ataca, Irvin Kershner
Os Piores:
1- Barney's Great Adventure
2- Leonard Part 6
3- Laserblast
4- Bad Girls from Valley High
5- The Astro-Zombies
6- Seven Mummies
7- Son of the Mask
8- Maciste e la regina di Sammar
9- Car 54, Where Are You?
10- King of the Lost World
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sexta-feira, 3 de abril de 2009
Citação de Sexta: Profecia
“O segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do eu. O que ela necessita, o que deseja, o que criará é – o terror.”
-Thomas Mann, em A Montanha Mágica, livro lançado em 1924
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*Mais uma vez, a publicação do Tratado Universalizante da Xurepa terá de ser adiada. Assim, a Citação de Sexta da semana que vem veio para hoje, e o capítulo de hoje do Tratado foi para a semana que vem.
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quinta-feira, 2 de abril de 2009
Cinzas no Paraíso
O que é estesia? Para o dicionário, o sentimento do belo. Para mim, a palavra tem um sentido derivado e muito particular: o de “orgasmo” estético, o ápice do prazer contemplativo. Estesia é a completa rendição dos sentidos, o prostrar-se, desarmado, ante a beleza. E é exatamente isso que o cartaz de Cinzas no Paraíso (ou Dias de Paraíso, como foi lançado em DVD no Brasil), o segundo filme de Terrence Malick, proclama: “Your eyes... your ears... your senses... will be overwhelmed”: Seus olhos, ouvidos e sentidos serão desarmados, vencidos, engolidos.
Formalmente, o filme nada mais é que um passo à frente do estilo de Malick: a narração de uma garota, a forma seca de tratar os sentimentos, os momentos de contemplação, a observação do meio-oeste americano, a “América profunda”, a curta duração (90 minutos) e, sobretudo, a beleza – plástica e de outros tipos. Beleza que aqui atinge um ápice inacreditável, um patamar simplesmente inigualável. A fotografia compartilhada por dois gênios, Nestor Almendros e Haskell Wexler, a trilha sonora de outro gênio, Ennio Morricone, e a condução de Malick se unem para forma um filme único, obra-prima de beleza indizível e inigualável. É impossível expressar o “choque” estético causado por esse filme. A “estesia” só pode ser apreendida vendo-o, mesmo; não há meios de expressá-la de outra forma.
Somente isso já seria suficiente para fazer de Cinzas no Paraíso uma obra singular. O filme, no entanto, nos leva além. Como em Terra de Ninguém, o enredo do longa-metragem se revela aos poucos. Conhecemos o irmão da narradora, Bill, em uma cena que resume sua personalidade. Após ser provocado pelo chefe na fábrica onde trabalhava, atinge-o com uma pá e foge. Então, o vemos reunir-se à irmã e a uma outra moça, Abby, que ele diz ser também sua irmã mas é na verdade sua namorada. Os três vão para o Texas, onde encontram trabalho na fazendo de um senhor de terras. Encorajada por Bill, Abby se envolve com o fazendeiro, e os dois acabam casando. Acompanhamos então o desenrolar de uma clássica história de triângulo amoroso pelos olhos de Malick, assim como Terra de Ninguém era uma típica história de serial killer sob a visão singular do cineasta.
E a história, mais uma vez, termina em tragédia. A maioria das cenas é filmada nas horas mágicas – o ocaso e a aurora – o que colabora para a beleza do filme mas também representa a situação crepuscular daquela família texana. As pradarias dominam a visão e chegam a engolir o silêncio dos personagens, um indício de sua pequenez frente à natureza. O estilo seco de Malick contribui para outro aspecto que aponta nesse sentido, já que os dramas dos personagens pouco nos envolvem: antes, os vemos à distância, relegados aos seus erros e a servir a suas próprias naturezas. No entanto, essa característica em particular é também sinal de uma outra coisa, pela qual o diretor tem muito apreço: a importância do narrador. É pelos olhos de uma criança que vemos as paixões e a tragédia dos adultos, de Bill, Abby e do Fazendeiro, e por isso essas coisas nos parecem distantes. A criança concede menos atenção ao que não compreende.
Não por acaso, os narradores dos dois primeiros filmes de Malick são garotas, mulheres jovens, ou antes mulheres já maduras lembrando de acontecimentos de sua infância/juventude. E esses acontecimentos também são semelhantes, posto que envolvem o instinto humano e a tragédia, e como uma criança, uma menina, passa por esses eventos, e muda a partir deles.Temos então, nos dois filmes, uma toada semelhante: a criança que, jogada em meio à Natureza e à natureza do homem, se transforma, e aprende sobre como se parecem os dramas e paixões do ser humano em frente à imensidão do Mundo.
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Formalmente, o filme nada mais é que um passo à frente do estilo de Malick: a narração de uma garota, a forma seca de tratar os sentimentos, os momentos de contemplação, a observação do meio-oeste americano, a “América profunda”, a curta duração (90 minutos) e, sobretudo, a beleza – plástica e de outros tipos. Beleza que aqui atinge um ápice inacreditável, um patamar simplesmente inigualável. A fotografia compartilhada por dois gênios, Nestor Almendros e Haskell Wexler, a trilha sonora de outro gênio, Ennio Morricone, e a condução de Malick se unem para forma um filme único, obra-prima de beleza indizível e inigualável. É impossível expressar o “choque” estético causado por esse filme. A “estesia” só pode ser apreendida vendo-o, mesmo; não há meios de expressá-la de outra forma.
Somente isso já seria suficiente para fazer de Cinzas no Paraíso uma obra singular. O filme, no entanto, nos leva além. Como em Terra de Ninguém, o enredo do longa-metragem se revela aos poucos. Conhecemos o irmão da narradora, Bill, em uma cena que resume sua personalidade. Após ser provocado pelo chefe na fábrica onde trabalhava, atinge-o com uma pá e foge. Então, o vemos reunir-se à irmã e a uma outra moça, Abby, que ele diz ser também sua irmã mas é na verdade sua namorada. Os três vão para o Texas, onde encontram trabalho na fazendo de um senhor de terras. Encorajada por Bill, Abby se envolve com o fazendeiro, e os dois acabam casando. Acompanhamos então o desenrolar de uma clássica história de triângulo amoroso pelos olhos de Malick, assim como Terra de Ninguém era uma típica história de serial killer sob a visão singular do cineasta.
E a história, mais uma vez, termina em tragédia. A maioria das cenas é filmada nas horas mágicas – o ocaso e a aurora – o que colabora para a beleza do filme mas também representa a situação crepuscular daquela família texana. As pradarias dominam a visão e chegam a engolir o silêncio dos personagens, um indício de sua pequenez frente à natureza. O estilo seco de Malick contribui para outro aspecto que aponta nesse sentido, já que os dramas dos personagens pouco nos envolvem: antes, os vemos à distância, relegados aos seus erros e a servir a suas próprias naturezas. No entanto, essa característica em particular é também sinal de uma outra coisa, pela qual o diretor tem muito apreço: a importância do narrador. É pelos olhos de uma criança que vemos as paixões e a tragédia dos adultos, de Bill, Abby e do Fazendeiro, e por isso essas coisas nos parecem distantes. A criança concede menos atenção ao que não compreende.
Não por acaso, os narradores dos dois primeiros filmes de Malick são garotas, mulheres jovens, ou antes mulheres já maduras lembrando de acontecimentos de sua infância/juventude. E esses acontecimentos também são semelhantes, posto que envolvem o instinto humano e a tragédia, e como uma criança, uma menina, passa por esses eventos, e muda a partir deles.Temos então, nos dois filmes, uma toada semelhante: a criança que, jogada em meio à Natureza e à natureza do homem, se transforma, e aprende sobre como se parecem os dramas e paixões do ser humano em frente à imensidão do Mundo.
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Terrence Malick
quarta-feira, 1 de abril de 2009
Leituras: Fevereiro e Março de 2009 - A Montanha Mágica, de Thomas Mann
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Em fevereiro não teve aqui no blog o habitual “Leituras” porque eu ainda não havia terminado de ler A Montanha Mágica, o livro daquele mês. De fato, só fui terminar de lê-lo há poucos dias, no final da semana passada, após aproximadamente dois meses de contato com a obra. A justificativa para tamanho alongamento não está em mim, em eventuais problemas que eu tenha tido que me impediram de ler com freqüência. Está, na verdade, no próprio livro, pois como diz o narrador, no “Propósito” que o abre: “Não será, portanto, num abrir e fechar de olhos que o narrador terminará a história de Hans Castorp.” Tal característica, de exigir uma alongada leitura, é intrínseca a A Montanha Mágica, não só pelo seu tamanho – a edição que li tem 950 páginas – mas sobretudo pelo seu espírito, pelo manejo peculiar que faz do tempo de seu enredo e que acaba nos conduzindo a entrarmos nós mesmos em seu ritmo.
Lançado por Thomas Mann em 1924, seis anos após o final da Grande Guerra, o romance é vasto e complexo, e trata dos mais variados temas. Também, pudera: A Montanha Mágica é a crônica do espírito europeu às vésperas da Grande Guerra, das idéias que percorriam o continente e de como a relação entre elas acabou levando a Europa até a Guerra. É, portanto, um livro simbólico – para não dizer alegórico -, cheio de “coisas que significam” e de imagens e pensamentos que se intercruzam e referenciam. No entanto, ao mesmo tempo é uma obra profundamente realista, de um estilo clássico, de prosa bela, reminiscente dos franceses do início do século, de retrato minucioso de personagens e acontecimentos. Assim, percebe-se naturalmente outra característica central do livro: a ambigüidade. Mas, antes de prosseguir nessa toada de exposição das idéias do romance, vamos voltar um pouco no caminho e descobrir do que se trata, afinal, o livro.
A história começa quando Hans Castorp, “jovem singelo” recém-formado em engenharia naval, chega a Davos, na Suíça, para visitar seu primo, Joachim Ziemssen, internado há alguns meses em um sanatório para tuberculosos nas montanhas. Ziemssen quer entrar para o exército, é um rapaz sério e sisudo, enquanto Castorp é um “paisano”, não está preocupado com muitas coisas além de seus charutos honduranos e alguns passeios para espantar o tédio. No entanto, a caminhada do tempo trará mudanças dentro de Hans Castorp, à medida que ele for conhecendo novas pessoas e a si mesmo. Seus pensamentos e experiências, tais como a disputa que os intelectuais Settembrini e Naphta travam por ele, seu amor por madame Chauchat, e a amizade com Mynheer Peeperkorn, cada uma dessas coisas o levará um passo adiante em sua descoberta como indivíduo. No entanto, ao invés de terminar o romance como um indivíduo maduro e experiente, ele desce da Montanha Mágica e vai lutar na Grande Guerra que acaba de estourar, quando é insinuada sua morte nos campos de batalha. Pode-se falar, então, de A Montanha Mágica, como um grande romance de formação, mas, ao mesmo tempo, como a paródia de um romance de formação, pois Hans não completa o ciclo, não atinge o final de sua jornada, já que a Guerra o “tirou do caminho”. Temos aqui, então, mais ambigüidade. Romance de formação ou paródia? Indivíduo pleno ou destruído pelas circunstâncias? Tais perguntas, e outras de natureza semelhante, colocam-se em nossa mente no decorrer da leitura.
A Montanha Mágica é, pois, um livro ambíguo ao máximo, recheado do espírito relativista que impregnou o século XX. Todas as ideologias e atitudes dos personagens são relativizadas. Dão-se longas discussões teóricas mas ninguém “sai vencendo”, tanto um quanto outro argüidor parecem estar ao mesmo tempo certos e errados. Personagens a princípio apresentados como tolos se mostram majestosos, e logo depois como tolos novamente, e assim sucessivamente, numa alternância de tolice e majestade que não chega a um termo a não ser pela violência, assim como as supracitadas discussões filosóficas não encontram vencedor, mas somente o fim, com a violência. São atitudes simbólicas do que aconteceu com a Europa na Primeira Guerra Mundial. Mas, antes de falar do conjunto, voltemos novamente, para falar, dessa vez, dos indivíduos que pontuam a narrativa.
Hans Castorp, o protagonista, passa sete anos no sanatório. Inicialmente, vai para ficar três semanas, mas descobre ter também focos de tuberculose, e acaba permanecendo ali. Ao longo do romance, é ele o centro do enredo, a medida das coisas que são contadas. Sua mente é devassada para nós, num dos trabalhos mais completos e complexos de penetração psicológica já feitos, e acompanhamos as transformações por que ela passa. Nos sete anos que ele passa ali, um dos temas que mais lhe ocupam a mente é o do tempo, a descoberta do que ele é e o que significa. Essa pergunta, no entanto, permanece sem resposta. O mais próximo disso que temos é a constatação de que o tempo passa não segundo o relógio, mas segundo nossa cabeça. Como comentei no início do texto, o tratamento do tempo no romance é singular, justamente por expressar essa situação: os cinco primeiros capítulos – aproximadamente metade do número de páginas – dão conta do primeiro ano de Castorp no sanatório. O sexto capítulo – as duzentas e cinqüenta páginas seguintes – falam dos próximos meses. E o sétimo e último capítulo, que percorre as páginas restantes, fala sobre os outros cinco anos do rapaz do sanatório, anos esses tomados por grande tédio. Assim, é expressa de maneira singular a percepção temporal do protagonista, percepção da qual nós mesmos acabamos compartilhando. Falarei mais de Castorp adiante, mas antes, observemos as figuras que o rodeiam.
As principais, na primeira parte do livro, são Settembrini e Naphta, os intelectuais opositores que disputam o espírito de Hans Castorp. São freqüentemente citados como personificações do pensamento liberal e conservador do início do século, mas não é tão simples. Settembrini é um republicano, um beletrista que sempre fala plasticamente e expõe suas idéias de maneira pedagógica, é um intelectual que quer resolver os problemas da civilização. Naphta, por sua vez, é um descendente de judeus e ex-jesuíta que, embora seja a personificação do radicalismo religioso, antimaterial, é também defensor do comunismo. Digo embora porque hoje, ou mais tardiamente no século XX, o “progressismo” está mais associado à esquerda, enquanto o “conservadorismo” à direita. Independente da vacuidade de tais rótulos, hoje e sempre, é por esse motivo que não se pode chamar o confronto entre Naphta e Settembrini de um confronto entre a ideologia progressista e a conservadora, mas antes entre o confronto de duas visões de mundo bem diferentes. Como se sabe, porém, quando duas pessoas pensam ter idéias totalmente opostas, naturalmente a semelhança entre elas é maior do que imaginam. No caso, Naphta e Settembrini compartilham um certo desprezo pelo indivíduo enquanto tal, e tratam de suas idéias somente no campo da generalização e da lógica pura e simples, sem levar em consideração o sentimento humano.
Para este, Hans Castorp precisa recorrer aos outros dois “coadjuvantes principais” do livro, madame Chauchat e Mynheer Peeperkorn. A primeira é o grande amor de Hans, a mulher que lembra a ele um rapaz que o encantava na infância, uma mulher de ar misterioso que se entrega aos poucos. Peeperkorn, por sua vez, é um homem rico, imponente, com uma vida pautada pelo deleite, uma personalidade absolutamente magnética que, por outro lado, não consegue dizer uma frase que seja por completo, só diz coisas vazias e genéricas. Finalmente, há Joachim Ziemssen, o primo de Castorp, um homem profundamente ligado ao seu dever.
São esses os personagens que orientam a caminhada de Hans Castorp pela Europa do início do século, representada no microcosmo do sanatório. E, ao mesmo tempo, são eles que o conduzem em sua própria caminhada, na jornada de Hans para encontrar a si mesmo. Settembrini é o iluminismo, Naphta é o radicalismo, Joachim é o dever, Chauchat é o amor, Peeperkorn é o hedonismo... mas o mais importante é que eles são Settembrini, Naphta, Joachim, Chauchat e Peeperkorn. Em seus primeiros anos de estada no sanatório, Hans Castorp deixa-se influenciar profundamente pela pedagogia de Settembrini e Naphta, e cresce em sua capacidade filosófica. Em um dado momento, porém, na época que seu primo sai do sanatório para servir no exército, Castorp sai para esquiar na neve e, perdido em uma tempestade, tem uma visão aterradora: pessoas vivendo uma felicidade plena, iluminada, mas atrás delas, no meio daquela felicidade, há um edifício sombrio e misterioso, e ao adentrá-lo Hans Castorp vê duas mulheres velhas de aparência horrível devorando uma criança. Quando acorda do sonho, ele medita um pouco sobre aquilo, renega a influência que Naphta e Settembrini tinham sobre ele, e conclui: “Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos.”, que é também a única frase em itálico do livro. Esse é o ápice da formação de Castorp: ao alcançar o topo da Montanha Mágica, ele descobriu uma Verdade. No entanto, quando desce de volta para o sanatório, esquece tudo o que pensara, e a sabedoria alcançada perde-se. Embora após essa experiência Hans Castorp esteja mais maduro, o essencial se perdeu. Aí está a verdade sobre sua formação como indivíduo (e a formação do europeu como indivíduo, por extensão), aí está a triste verdade do espírito da época, o espírito que acabou na Grande Guerra.
Pois, após esse momento, é ladeira abaixo para Hans. Passamos a gostar mais dele, por uma certa serenidade que ele alcança. No entanto, as coisas ao seu redor vão se fragmentando, concedendo-lhe somente um pouco de alegria antes de desaparecer. Joachim retorna ao sanatório, mais doente do que nunca, e acaba por morrer. Chauchat, que partira há anos, volta finalmente, mas acompanhada de Pepperkorn. Tomado pelo ciúme, Hans Castorp chega a desprezar o homem, mas é atraído de tal maneira por ele que se tornam grandes amigos. Essa alegria dura pouco, porém: em seu último discurso, Peeperkorn atinge o auge do vazio ao falar contra o barulho de uma cachoeira e não ser ouvido. Todavia, ironicamente era aquele o discurso mais importante que jamais fizera, pois estava anunciando seu próprio suicídio, que comete no dia seguinte. Após isso, Chauchat parte, deixando a Castorp somente a lembrança de um beijo e uma chapa (de raio-x) de seu pulmão. Mais sozinho que nunca (pois não podia contar nem com a esperança do retorno), Hans vê os anos passarem cada vez mais rápidos, iguais e tediosos ali em cima, e vê as pessoas ao seu redor serem tomadas ao mesmo tempo por um grande tédio e uma grande irritação, que culminam, em sua visão, no bater de armas final, a Grande Guerra. Até mesmo Settembrini e Naphta, até então tão controlados, se ofendem e marcam um duelo, no qual o último, indignado com a atitude do primeiro de atirar para cima, aponta a arma para a própria cabeça e puxa o gatilho. São essas as imagens e os símbolos do que acontecia na Europa. A violência contra si mesmo, a desintegração das unidades, o esvaziamento dos discursos. Como Pynchon escreveria anos depois, sobre a Segunda Guerra (que foi uma extensão da primeira): a Europa afundava nos próprios dejetos.
E ainda assim, há algo para segurar-se. No final, influenciado pela memória do primo e pela audição de A Tília, uma canção de Schubert, Hans conclui que vale a pena lutar e morrer por uma “canção mágica”, morrer com uma “nova palavra de amor” nos lábios. Ele conclui, enfim, que da morte pode surgir a vida e o amor, e que vale a pena morrer e lutar para que, dos destroços do passado, surja um futuro luminoso. Assim, Hans Castorp vai para a Guerra, e na última vez que o vemos ele está em uma batalha, no meio de névoa, chuva e crespúsculo, cantarolando A Tília. Mesmo aí, portanto, nas linhas finais de sua obra-prima, Thomas Mann não cede espaço às certezas e ao absoluto. Mesmo no final há ambigüidade, há dúvida, e por isso ele termina com perguntas. As implícitas, como “Hans Castorp morreu ou não?”; “Há ou não esperança?”; “A vida pode surgir da morte?”; e a definitiva, que toma a última linha, em que somos levados indagar – especialmente hoje, quase meio século após a tragédia, após cem anos de outras tragédias ainda maiores -: “Será que da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?”
***
Esta foi uma singela tentativa de abarcar o espectro geral de A Montanha Mágica. Obviamente, é um resumo/crítica muito falho, especialmente se considerarmos o principal conselho que Thomas Mann dá ao leitor do livro: “leia-o duas vezes”. No entanto, acho que da visão geral dos personagens e acontecimentos consegui extrair alguma coisa. Ainda voltarei, no decorrer dos meus dias, a ler esse livro novamente, com certeza. Por enquanto, porém, contento-me com a lembrança, com os momentos que surgem de repente, me surpreendendo ao saltar detrás de um arbusto da memória, e trazem para mim nos dentes um novo pedaço da compreensão, uma nova partícula da Verdade que eu encontrei – mas esqueci, após menos de um segundo – ao escalar A Montanha Mágica.
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Em fevereiro não teve aqui no blog o habitual “Leituras” porque eu ainda não havia terminado de ler A Montanha Mágica, o livro daquele mês. De fato, só fui terminar de lê-lo há poucos dias, no final da semana passada, após aproximadamente dois meses de contato com a obra. A justificativa para tamanho alongamento não está em mim, em eventuais problemas que eu tenha tido que me impediram de ler com freqüência. Está, na verdade, no próprio livro, pois como diz o narrador, no “Propósito” que o abre: “Não será, portanto, num abrir e fechar de olhos que o narrador terminará a história de Hans Castorp.” Tal característica, de exigir uma alongada leitura, é intrínseca a A Montanha Mágica, não só pelo seu tamanho – a edição que li tem 950 páginas – mas sobretudo pelo seu espírito, pelo manejo peculiar que faz do tempo de seu enredo e que acaba nos conduzindo a entrarmos nós mesmos em seu ritmo.
Lançado por Thomas Mann em 1924, seis anos após o final da Grande Guerra, o romance é vasto e complexo, e trata dos mais variados temas. Também, pudera: A Montanha Mágica é a crônica do espírito europeu às vésperas da Grande Guerra, das idéias que percorriam o continente e de como a relação entre elas acabou levando a Europa até a Guerra. É, portanto, um livro simbólico – para não dizer alegórico -, cheio de “coisas que significam” e de imagens e pensamentos que se intercruzam e referenciam. No entanto, ao mesmo tempo é uma obra profundamente realista, de um estilo clássico, de prosa bela, reminiscente dos franceses do início do século, de retrato minucioso de personagens e acontecimentos. Assim, percebe-se naturalmente outra característica central do livro: a ambigüidade. Mas, antes de prosseguir nessa toada de exposição das idéias do romance, vamos voltar um pouco no caminho e descobrir do que se trata, afinal, o livro.
A história começa quando Hans Castorp, “jovem singelo” recém-formado em engenharia naval, chega a Davos, na Suíça, para visitar seu primo, Joachim Ziemssen, internado há alguns meses em um sanatório para tuberculosos nas montanhas. Ziemssen quer entrar para o exército, é um rapaz sério e sisudo, enquanto Castorp é um “paisano”, não está preocupado com muitas coisas além de seus charutos honduranos e alguns passeios para espantar o tédio. No entanto, a caminhada do tempo trará mudanças dentro de Hans Castorp, à medida que ele for conhecendo novas pessoas e a si mesmo. Seus pensamentos e experiências, tais como a disputa que os intelectuais Settembrini e Naphta travam por ele, seu amor por madame Chauchat, e a amizade com Mynheer Peeperkorn, cada uma dessas coisas o levará um passo adiante em sua descoberta como indivíduo. No entanto, ao invés de terminar o romance como um indivíduo maduro e experiente, ele desce da Montanha Mágica e vai lutar na Grande Guerra que acaba de estourar, quando é insinuada sua morte nos campos de batalha. Pode-se falar, então, de A Montanha Mágica, como um grande romance de formação, mas, ao mesmo tempo, como a paródia de um romance de formação, pois Hans não completa o ciclo, não atinge o final de sua jornada, já que a Guerra o “tirou do caminho”. Temos aqui, então, mais ambigüidade. Romance de formação ou paródia? Indivíduo pleno ou destruído pelas circunstâncias? Tais perguntas, e outras de natureza semelhante, colocam-se em nossa mente no decorrer da leitura.
A Montanha Mágica é, pois, um livro ambíguo ao máximo, recheado do espírito relativista que impregnou o século XX. Todas as ideologias e atitudes dos personagens são relativizadas. Dão-se longas discussões teóricas mas ninguém “sai vencendo”, tanto um quanto outro argüidor parecem estar ao mesmo tempo certos e errados. Personagens a princípio apresentados como tolos se mostram majestosos, e logo depois como tolos novamente, e assim sucessivamente, numa alternância de tolice e majestade que não chega a um termo a não ser pela violência, assim como as supracitadas discussões filosóficas não encontram vencedor, mas somente o fim, com a violência. São atitudes simbólicas do que aconteceu com a Europa na Primeira Guerra Mundial. Mas, antes de falar do conjunto, voltemos novamente, para falar, dessa vez, dos indivíduos que pontuam a narrativa.
Hans Castorp, o protagonista, passa sete anos no sanatório. Inicialmente, vai para ficar três semanas, mas descobre ter também focos de tuberculose, e acaba permanecendo ali. Ao longo do romance, é ele o centro do enredo, a medida das coisas que são contadas. Sua mente é devassada para nós, num dos trabalhos mais completos e complexos de penetração psicológica já feitos, e acompanhamos as transformações por que ela passa. Nos sete anos que ele passa ali, um dos temas que mais lhe ocupam a mente é o do tempo, a descoberta do que ele é e o que significa. Essa pergunta, no entanto, permanece sem resposta. O mais próximo disso que temos é a constatação de que o tempo passa não segundo o relógio, mas segundo nossa cabeça. Como comentei no início do texto, o tratamento do tempo no romance é singular, justamente por expressar essa situação: os cinco primeiros capítulos – aproximadamente metade do número de páginas – dão conta do primeiro ano de Castorp no sanatório. O sexto capítulo – as duzentas e cinqüenta páginas seguintes – falam dos próximos meses. E o sétimo e último capítulo, que percorre as páginas restantes, fala sobre os outros cinco anos do rapaz do sanatório, anos esses tomados por grande tédio. Assim, é expressa de maneira singular a percepção temporal do protagonista, percepção da qual nós mesmos acabamos compartilhando. Falarei mais de Castorp adiante, mas antes, observemos as figuras que o rodeiam.
As principais, na primeira parte do livro, são Settembrini e Naphta, os intelectuais opositores que disputam o espírito de Hans Castorp. São freqüentemente citados como personificações do pensamento liberal e conservador do início do século, mas não é tão simples. Settembrini é um republicano, um beletrista que sempre fala plasticamente e expõe suas idéias de maneira pedagógica, é um intelectual que quer resolver os problemas da civilização. Naphta, por sua vez, é um descendente de judeus e ex-jesuíta que, embora seja a personificação do radicalismo religioso, antimaterial, é também defensor do comunismo. Digo embora porque hoje, ou mais tardiamente no século XX, o “progressismo” está mais associado à esquerda, enquanto o “conservadorismo” à direita. Independente da vacuidade de tais rótulos, hoje e sempre, é por esse motivo que não se pode chamar o confronto entre Naphta e Settembrini de um confronto entre a ideologia progressista e a conservadora, mas antes entre o confronto de duas visões de mundo bem diferentes. Como se sabe, porém, quando duas pessoas pensam ter idéias totalmente opostas, naturalmente a semelhança entre elas é maior do que imaginam. No caso, Naphta e Settembrini compartilham um certo desprezo pelo indivíduo enquanto tal, e tratam de suas idéias somente no campo da generalização e da lógica pura e simples, sem levar em consideração o sentimento humano.
Para este, Hans Castorp precisa recorrer aos outros dois “coadjuvantes principais” do livro, madame Chauchat e Mynheer Peeperkorn. A primeira é o grande amor de Hans, a mulher que lembra a ele um rapaz que o encantava na infância, uma mulher de ar misterioso que se entrega aos poucos. Peeperkorn, por sua vez, é um homem rico, imponente, com uma vida pautada pelo deleite, uma personalidade absolutamente magnética que, por outro lado, não consegue dizer uma frase que seja por completo, só diz coisas vazias e genéricas. Finalmente, há Joachim Ziemssen, o primo de Castorp, um homem profundamente ligado ao seu dever.
São esses os personagens que orientam a caminhada de Hans Castorp pela Europa do início do século, representada no microcosmo do sanatório. E, ao mesmo tempo, são eles que o conduzem em sua própria caminhada, na jornada de Hans para encontrar a si mesmo. Settembrini é o iluminismo, Naphta é o radicalismo, Joachim é o dever, Chauchat é o amor, Peeperkorn é o hedonismo... mas o mais importante é que eles são Settembrini, Naphta, Joachim, Chauchat e Peeperkorn. Em seus primeiros anos de estada no sanatório, Hans Castorp deixa-se influenciar profundamente pela pedagogia de Settembrini e Naphta, e cresce em sua capacidade filosófica. Em um dado momento, porém, na época que seu primo sai do sanatório para servir no exército, Castorp sai para esquiar na neve e, perdido em uma tempestade, tem uma visão aterradora: pessoas vivendo uma felicidade plena, iluminada, mas atrás delas, no meio daquela felicidade, há um edifício sombrio e misterioso, e ao adentrá-lo Hans Castorp vê duas mulheres velhas de aparência horrível devorando uma criança. Quando acorda do sonho, ele medita um pouco sobre aquilo, renega a influência que Naphta e Settembrini tinham sobre ele, e conclui: “Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos.”, que é também a única frase em itálico do livro. Esse é o ápice da formação de Castorp: ao alcançar o topo da Montanha Mágica, ele descobriu uma Verdade. No entanto, quando desce de volta para o sanatório, esquece tudo o que pensara, e a sabedoria alcançada perde-se. Embora após essa experiência Hans Castorp esteja mais maduro, o essencial se perdeu. Aí está a verdade sobre sua formação como indivíduo (e a formação do europeu como indivíduo, por extensão), aí está a triste verdade do espírito da época, o espírito que acabou na Grande Guerra.
Pois, após esse momento, é ladeira abaixo para Hans. Passamos a gostar mais dele, por uma certa serenidade que ele alcança. No entanto, as coisas ao seu redor vão se fragmentando, concedendo-lhe somente um pouco de alegria antes de desaparecer. Joachim retorna ao sanatório, mais doente do que nunca, e acaba por morrer. Chauchat, que partira há anos, volta finalmente, mas acompanhada de Pepperkorn. Tomado pelo ciúme, Hans Castorp chega a desprezar o homem, mas é atraído de tal maneira por ele que se tornam grandes amigos. Essa alegria dura pouco, porém: em seu último discurso, Peeperkorn atinge o auge do vazio ao falar contra o barulho de uma cachoeira e não ser ouvido. Todavia, ironicamente era aquele o discurso mais importante que jamais fizera, pois estava anunciando seu próprio suicídio, que comete no dia seguinte. Após isso, Chauchat parte, deixando a Castorp somente a lembrança de um beijo e uma chapa (de raio-x) de seu pulmão. Mais sozinho que nunca (pois não podia contar nem com a esperança do retorno), Hans vê os anos passarem cada vez mais rápidos, iguais e tediosos ali em cima, e vê as pessoas ao seu redor serem tomadas ao mesmo tempo por um grande tédio e uma grande irritação, que culminam, em sua visão, no bater de armas final, a Grande Guerra. Até mesmo Settembrini e Naphta, até então tão controlados, se ofendem e marcam um duelo, no qual o último, indignado com a atitude do primeiro de atirar para cima, aponta a arma para a própria cabeça e puxa o gatilho. São essas as imagens e os símbolos do que acontecia na Europa. A violência contra si mesmo, a desintegração das unidades, o esvaziamento dos discursos. Como Pynchon escreveria anos depois, sobre a Segunda Guerra (que foi uma extensão da primeira): a Europa afundava nos próprios dejetos.
E ainda assim, há algo para segurar-se. No final, influenciado pela memória do primo e pela audição de A Tília, uma canção de Schubert, Hans conclui que vale a pena lutar e morrer por uma “canção mágica”, morrer com uma “nova palavra de amor” nos lábios. Ele conclui, enfim, que da morte pode surgir a vida e o amor, e que vale a pena morrer e lutar para que, dos destroços do passado, surja um futuro luminoso. Assim, Hans Castorp vai para a Guerra, e na última vez que o vemos ele está em uma batalha, no meio de névoa, chuva e crespúsculo, cantarolando A Tília. Mesmo aí, portanto, nas linhas finais de sua obra-prima, Thomas Mann não cede espaço às certezas e ao absoluto. Mesmo no final há ambigüidade, há dúvida, e por isso ele termina com perguntas. As implícitas, como “Hans Castorp morreu ou não?”; “Há ou não esperança?”; “A vida pode surgir da morte?”; e a definitiva, que toma a última linha, em que somos levados indagar – especialmente hoje, quase meio século após a tragédia, após cem anos de outras tragédias ainda maiores -: “Será que da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?”
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Esta foi uma singela tentativa de abarcar o espectro geral de A Montanha Mágica. Obviamente, é um resumo/crítica muito falho, especialmente se considerarmos o principal conselho que Thomas Mann dá ao leitor do livro: “leia-o duas vezes”. No entanto, acho que da visão geral dos personagens e acontecimentos consegui extrair alguma coisa. Ainda voltarei, no decorrer dos meus dias, a ler esse livro novamente, com certeza. Por enquanto, porém, contento-me com a lembrança, com os momentos que surgem de repente, me surpreendendo ao saltar detrás de um arbusto da memória, e trazem para mim nos dentes um novo pedaço da compreensão, uma nova partícula da Verdade que eu encontrei – mas esqueci, após menos de um segundo – ao escalar A Montanha Mágica.
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