quarta-feira, 24 de março de 2010

A Série - S01E14

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Bem, como eu estava dizendo, o convite para dirigir a Série me pegou completamente desprevenido, eu estava na prática aposentado e, a despeito dos meus sonhos mais dolorosamente desgastados, não dirigira nada por muito tempo. Meus dias se passavam dentro e fora do trailer, eu cuidava da minha pequena plantação pessoal de artigos vegetais e herbais, principalmente de manhã, e depois ficava brincando com o Tweedle-Dee, meu hamster de estimação, que eu ganhei do meu filho junto com outro, que se chamava Tweedle-Dum, mas esse morreu intoxicado depois de comer o que não devia. Se bem que, considerando o que ele comeu, eu não acho que seja certo usar a palavra intoxicado. Melhor é dizer que ele foi às nuvens rápido demais, e acabou ficando por lá.

Quando ele se cansava eu botava ele de lado, cochilava um pouco, e ficava vendo TV o resto do tempo. Minha preferência sempre foram os filmes, mas eu gostava muito também de assistir aos programas de televendas. As pessoas costumam mudar de canal quando começam esses programas, mas eles não sabem o que estão perdendo. Considero esses vídeos verdadeiras obras de arte utópicas, que meu Tomás Mórus não hesitaria em colocar lado a lado com sua obra. Aliás, acho mesmo que, se ele vivesse hoje, incluiria todos aqueles produtos no cotidiano da ilha, e se inspiraria nos protagonistas das pequenas histórias que compõem os vídeos para definir seu modelo de cidadão feliz de Lugar Nenhum. Em sua obra atualizada os utopianos poderiam cultuar o deus que quisessem, usariam roupas simples e práticas e teriam mangueiras fáceis de enrolar, escadas dobráveis com mil alterações possíveis, máquinas capazes de produzir os refrescos mais sofisticados e vigorosos, fornos que agem como se fossem chefs, produzindo comidas deliciosas facilmente, e equipamentos de exercício que transformariam a todos em deuses saudáveis, e outras tecnologias semelhantes. Tenho sonhos secretos em que eu sou uma daquelas pessoas que vivem nesses vídeos, não um ator, mas um ser real, num mundo real, e lá eu sou feliz.

Então, num desses dias de far niente e suaves empreendimentos filosóficos, Eles apareceram na minha porta. Claro que não eram “Eles”, e claro que não era mesmo uma porta, no sentido mais usual dessa palavra, embora fosse tecnicamente uma porta sim, mas de um trailer. Quando se bate numa dessas belezas elas tremem bastante, e por vezes também o trailer, tudo depende da quantidade de coisas que tem lá dentro, e da força com que batem. Eles não bateram muito forte, talvez por não serem “Eles”, e estarem tentando fazer um contato pacífico. Não vou dizer que não fiquei surpreso. Quando os vi pela janela, corri para pegar minha espingarda, mas me lembrei que não tinha uma, então acabei paralisado. Na verdade, não conhecia aqueles Agentes, mas é claro que só poderiam ser isso, só poderiam ser “Eles”, um homem alto, de pele escura, os cabelos crespos grandes enrolados por uma faixa colorida, uma calça boca de sino e uma camisa brilhante por cima, ao lado de um homem muito branco e muito baixo, quase totalmente careca, que mais parecia uma criança usando o terno do pai, o que mais poderiam ser, senão “Eles”? E o que mais poderia eu fazer senão entrar em pânico, já que da última vez que “Eles” tinham se mostrado para mim eu acabei preso, e desde então eles não haviam parado de me observar, atentamente, pacientemente, secretamente, sem, no entanto, interferir? Foram cheios de angústia, aqueles momentos de indecisão, mas por fim fui demovido da paralisia pelas batidas na porta, que haviam se tornado mais fortes, e quando finalmente a abri para eles e para o dia pensando Alea jacta est nada mais pude dizer senão “Bom dia, pois não?” com um sorriso forçado que eles rapidamente perceberam ser falso.

Fiquei indeciso sobre chamá-los ou não para entrar, mas eles estavam suando mais que eu sob aquele sol, e eu estava suando muito, então pensei que já tinha aberto a porta para eles, convidá-los para entrar não pioraria as coisas. Eles se apresentaram, o negro se chamava Little Punk e o baixinho Doo-Doom, e vinham em nome de uma emissora, da Emissora, como a chamo agora, NGP, olhem que grande coincidência. A Emissora estava produzindo uma nova série escrita por um desses autores da nova geração, todos ótimas figuras para aparecer em capas de revistas, embora eu em geral desconfie da capacidade deles de escrever o que quer que seja, e tinha interesse em que eu dirigisse a Série. Mesmo estando a tanto tempo afastado eu tinha consciência de que na TV os diretores mudam o tempo todo, e têm pouca influência sobre o que acontece na história, mas eles me garantiram que estavam fazendo algo diferente, que eu dirigiria todos os episódios, e poderia discutir os rumos e os temas da série com seu autor, que aparentemente gostava muito de mim.

Fiquei tremendamente inseguro. Por que diabos eles estavam me oferecendo isso agora? Alguns anos antes, eu teria pedido mais tempo para pensar, e descobrir o que diabos estava acontecendo, ou mesmo recusado na hora, mas... Tempus longum vitiat lapidem. O que eu teria a perder? Continuar preso naquele trailer não me livraria deles, nada livraria. E mais, aquela era minha oportunidade de voltar ao coração da Coisa, e quem sabe reparar tudo que acontecera quando de lá eu fora expulso. Por isso, mesmo ainda inseguro sobre como eu deveria agir, aceitei dirigir a Série para a Emissora.
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Um comentário:

João G. Viana/Pudim disse...
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