sábado, 13 de março de 2010

A Roda #19 - Panorama do Vale de Legium, parte 8


por Lobato Légio

A floresta: esperas contemplá-la por completo? Esperas poder extrair dela cada folha, cada raio de sol que rasgando a malha dos galhos atinge o solo? Ainda que a percorresses por todos os lados, e visses cada mísero ponto, ainda assim não a teria visto por inteiro, pois teria visto cada ponto em um momento diferente no tempo, e não concomitantemente, como exige a visão plena das coisas. Somente se pudesses ver cada pedaço da floresta no mesmo instante, cada mínimo recorte de suas infinitas imagens na mesma mínima fatia de tempo decorrido, somente aí poderias ter a visão do conjunto, e então ver o que hoje não vês, e entender o que hoje não entendes.

Ouça, pois, aquilo que te digo, e aprende, por minhas palavras, o que não pode contemplar frente a frente. Por entre as árvores e os arbustos, sobre as ervas e o musgo colados ao solo, abaixo da luz e da sombra que céu, sol e galhos formam, pela floresta passam dois caminhos. Entrando-se nela por onde seja, qualquer uma das aberturas que pontuam sua muralha, e percorrendo a trilha tão naturalmente formada que se coloca sob teus pés, tu viajante logo encontrarás uma árvore enorme à tua frente e bifurcando-se violentamente a partir do caminho em que seguias duas novas trilhas se formarão, desviando da árvore e seguindo cada uma em uma direção. Invariavelmente, ao deparar-se com essa árvore, estarás seguindo caminho para o Norte, e o caminho da esquerda portanto o levará do leste para o oeste, seguindo o Sol, enquanto o da direita o levará do oeste para o leste, perseguindo Seu retorno.

Pises no caminho da esquerda, e nele continuando verás muito. Raios de sol penetrando o dossel das copas tocarão os teus pés durante o caminho, e quando parares para beber água ou repousar à sombra, encontrarás um recanto fresco e silencioso. Verás pequenas feras brincando e brigando, e predadores perseguindo suas presas, e verás animais dependurados no galhos que jogarão frutas sobre ti, mas não te acertarão, e cães se alimentando de pequenas aves. Se chover, a chuva encharcará teus ombros, mas também poderás buscar abrigo sob alguma árvore frondosa. Será um caminho cansativo para ti, o da esquerda, haverá momentos de descanso, mas ao fim da jornada invariavelmente estarás tomado pelo mais violento desejo de repousar, o mais quanto for possível. Saindo da floresta, ao fim do caminho, já estará de noite, ou talvez na hora mágica em que o Sol se encaminha para o Outro Mundo. Olharás para trás em direção à floresta e poderás ver que poucas lembranças restarão a ti daquele lugar, mas que a caminhada que lá empreendestes foi, afinal, agradável.

Mas podes também, num gesto simples de escolha como qualquer outro, optar pelo caminho da direita, e ir em direção ao nascer do Sol enquanto o astro te ultrapassa e toma posição às tuas costas.

Se fizerdes isso, encontrarás um outro caminho, totalmente diverso do que encontraria seguindo na outra direção. Nesse caminho, pouco verás do Sol, e talvez o tempo todo que nele caminhardes seja Noite. O mais completo silêncio te acompanhará nesse caminho, quando pensardes ter ouvido algo nada mais será que teu próprio passo. Nesse caminho não poderás parar para comer, pois nele não há árvores com frutos ou animais para te alimentar; não poderás parar para descansar, pois o chão é duro e não há recôncavo onde se aconchegar; não poderás também tornar para trás, pois depois que tu passas o caminho se fecha. Carregarás por todo o caminho um peso no coração, e em cada passo que deres ele se tornará mais pesado, ficarás possesso por uma angústia que não tem nome, uma sensação que não se descreve e da qual não se deve falar. Ao fim do caminho, já terás quase te esquecido de quem és, e de para onde estavas indo, mas ultrapassando os últimos troncos na fronteira da floresta com o campo a seguir serás ofuscado pelo Sol que, tendo dado a volta no Mundo, talvez muitas vezes enquanto estavas entre as árvores, torna a aparecer no horizonte, surgindo do leste para retomar seu caminho tantas vezes repetido. Nesse ofuscar, a escuridão que lhe pesava na alma se tornará subitamente luz, uma brancura por um instante sem sentido, e então te sentirás muitas vezes reconfortado, tomado de uma ardência suave no peito, e continuará seu caminho. Não poderás olhar para trás, pois assim se procede nos lugares infernais, e não esquecerás jamais do que viveste lá dentro, ainda que não possas dizê-lo em palavras.

São tais os caminhos à direita e à esquerda na floresta, e para ti os descrevo, para que tenhas conhecimentos e possas escolher com sabedoria. E dois são os caminhos muitas vezes a nós descritos, mas há uma verdade que poucos ousam falar, e ela reside em que, por mais diversos e definidos sejam esses dois caminhos que sempre se apresentam, há um terceiro caminho. Aquele que, não se deixando vencer pelas trilhas que se apresentam, contorna a grande árvore, descobre que além dela a trilha que até então percorrera continua em frente.

Essa trilha sem demora leva a uma pequena clareira, sobre a qual brilham estrelas, fixas no firmamento. À frente do que vem pela trilha se ergue uma pedra, e sobre ela, imenso, erguido sobre as patas dianteiras, assentado sobre as traseiras, rajado violentamente de laranja e negro, um Deus-Tigre. Tu, paralisado impotente sobre tuas duas míseras pernas, o verás erguer-se de todo e encarar-te, mostrando os dentes. E verás em tua imaginação a vida daqueles que foram até ali antes de ti, e os verá sendo devorados pelo monstro. E o Deus-Tigre fechará a boca, e continuará a te encarar, sem rugir, e em seus olhos tu verás, finalmente, o que fora lá buscar. E a floresta se revelará a ti de uma vez por todas, e poderás contemplá-la, cada ramo e raiz, e verás o incêndio que por ela se alastra, e o que ali dentro reside. E nesse momento, olhos fixos nos dele, finalmente alcançarás o entendimento, e então não haverá mais nada para ver.
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Um comentário:

João G. Viana/Pudim disse...

Ele está de volta! Ele está de volta! Fogos, canções, salgadinhos e bolo!

Poxa, que fim de semana eu precisei ter pra que esse texto realmente falasse comigo!... É uma grande alegria relembrar que Lobato Légio tem muito a nos ensinar.