quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A Série - S01E06

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Kurt parece ter aderido de vez ao blasé. O sacana não fala mais comigo, mesmo; passa sem cumprimentar e fica horas trancado no seu trailer-camarim gigante. Só sai de lá quando o John B. chama o elenco para os ensaios. O diretor tem feito isso todos os dias, ele chama os astros e os coadjuvantes e fica ensaiando com eles cenas novas, mas não gravam nunca. Às vezes ele resolve discutir os personagens e começa a falar sem parar, gesticulando e falando alto e parando no meio das frases. Nessas horas o Kurt se afasta e fica sentado na cadeira que tem o seu nome, esparramado. Quando eu estou por ali fico observando e percebo que ele sempre age da mesma maneira, ele abre a boca e dá um sorriso forçado e faz bico

O ) *

repetidamente, sempre a mesma sequência de expressões. Não sei se é algum tipo de alongamento, os atores têm disso, ou se é mais uma mania dele. Só sei que a cada dia ele fica menos interessado nos ensaios, e gasta mais tempo com esse exercício, hmm, perturbador.

Apesar disso, acho que ele está tendo sucesso em entrar no personagem. Quando ele participa dos ensaios as atitudes dele são bem verdadeiras. Ele diz as falas com uma certeza um pouco alucinada – eu ouvi falar que o personagem dele é meio pirado mesmo, um cara obcecado ou paranóico. O John B. tenta orientar a Samantha, mostrando a ela como deve atuar, e diz gritando numa voz esganiçada “Ferdinand, o que você está fazendo!?” – ao que o Kurt responde, com a cabeça abaixada, a voz ríspida, olhando fixo pra ele: “Estou tentando nos tirar daqui!”

Ontem eu tomei coragem para falar com ele, ver se mesmo assim ele iria ignorar minha existência, e quando ele passou eu disse, levantando a mão, “Ei, Kurt, como vai?”. Mas o que ele fez foi parar, as mãos nos bolsos, e olhando em minha direção dizer, sem nenhuma emoção na voz:

- Meu nome é Ferdinand.
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segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Avatar (Avatar, James Cameron, 2009)

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Falar sobre Avatar agora, um mês após a estréia, poderia parecer atrasado, fora do timing, não estivesse ainda o filme tão em voga, tão na “boca do povo”. Os que acusam o filme de não ser a revolução que prometia parecem não perceber que ainda agora, um mês após o lançamento, um filme supostamente básico dá tanto o que falar. E há ainda uma outra vantagem nessa posição de comentar Avatar um mês após a estréia: tanto já foi dito sobre o filme que eu posso escrever muita coisa só comentando a visão que o público, a crítica e outras entidades abstratas tiveram dele.

A verdade é que os detratores de Avatar o acusam principalmente de ser um amontoado de clichês, uma história previsível e que não acrescenta nada, de fato, à evolução do cinema. Mas um filme não pode ser chamado de ruim somente por apresentar clichês: clichês-míticos como aqueles de que Avatar se vale são formas de provocar uma identificação imediata com o público. O enredo de Avatar, cheio de informações novas e complicadas (transferência de consciência, todo o panorama social do filme), é exposto de forma simples e potente, usando a “Jornada do Herói” e outros que tais como um canal para atingir o cara com os óculos engraçados sentado na poltrona.

E mais importante: aberto esse Canal, Cameron usa-o para transmitir mensagens e conceitos cruciais, essenciais mesmo para o mundo em que vivemos. É ótimo que um filme em última instância pacifista (os humanos não são derrotados pelos guerreiros Na’Vi, mas pela natureza), que faz uma defesa maravilhosa da liberdade e apresenta uma mensagem ecológica tão forte esteja em vias de se tornar o mais visto da história (já chegou a 1 bilhão e 700 milhões de dólares em arrecadação, faltando pouco mais de 150 para ultrapassar Titanic) [Quando o texto foi escrito estava nesse patamar. Hoje o filme já ultrapassou Titanic e é o de maior arrecadação da história, embora em número de ingressos o campeão ainda seja E o Vento Levou].

Aliás, esse elemento ecológico, o mais forte do filme, nos leva a mais uma das qualidades de Avatar: a coadunação de forma e conteúdo, ou melhor, a forma como caminho expressivo e potencializador do conteúdo, o que afinal é um elemento definidor da Arte. A tecnologia do filme, com suas imagens geradas por computador quase fotorrealísticas e seu 3D impactante, mais do que somente instigar diversão e assombro, verdadeiramente nos coloca em Pandora. Um dos comentários mais ubíquos sobre o filme é o dos espectadores que ficam com saudades de Pandora, que são tomados por um desejo enorme de voltar para lá, de estar lá, de viver a liberdade que Jake Sully vive. E num filme sobre preservação da natureza, comunhão com a natureza, liberdade, quer maior realização que levar o espectador a desejar estar “lá”, a se apaixonar pelo mundo natural, a fazê-lo sentir-se plenamente identificado com aquilo que é preciso defender?

Provavelmente não, e por isso eu digo que Avatar é um exemplo perfeito de técnica usada em função da arte, de forma usada em função do conteúdo. É um filme sobre a preservação do simples (vida natural), feita com a tecnologia mais avançada que existe (3D, computação gráfica). Assim como na história a salvação dessa mesma vida simples (Pandora, Na'Vi) é alcançada graças a uma tecnologia avançadíssima (os avatares). Talvez esse último elemento não estivesse nos pensamentos de Cameron quando ele realizou o filme. Mas é esse tipo de discussão que o filme provoca, e é por isso que ainda agora, um mês após o lançamento, ele provoca tanta discussão, e continuará provocando, discussões profundas e amplas que, essas sim, poderão constituir a revolução prometida.
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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Leituras... o retorno

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Com a pausa que eu dei no blog em Abril do ano passado acabei parando de escrever não só sobre filmes mas também sobre livros. Por isso, agora faço um apanhado dos livros que li desde então, comentando cada um deles pontualmente. As Leituras devem voltar a aparecer com frequência, embora eu tenha me libertado da obrigação de postar uma por mês ou algo do gênero. Continuem acessando o blog que, quando aparecer, vocês saberão!

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Vineland e Mason & Dixon, de Thomas Pynchon

O que é: Prairie Wheeler, filha do hippie Zoyd, conta com a ajuda de amigos para encontrar Frenesi, sua mãe, que a abandonou por motivos obscuros na infância, antes que a encontre Brock Vond, um agente do FBI completamente maluco por ela.

É fácil entender porque Vineland deixou os fãs de Thomas Pynchon frustrados. Comparado a O Arco-Íris da Gravidade, sua obra-prima anterior (publicada 17 anos antes), Vineland é um livro morno, quase sem-graça. Mas, tomado por si só, Vineland é um livro muito interessante. Mais uma vez, as qualidades de uma obra foram eclipsadas pelas expectativas. Vineland pode não ser um Arco-Íris, mas é indiscutivelmente um livro de Thomas Pynchon: Engraçadíssimo, surreal e recheado de personagens interessantes com nomes maravilhosos como Zoyd Wheeler, Brock Vond ou Hector Zuniga. No entanto, apesar disso, é um livro que evapora fácil da memória. É, dos que eu li, o livro com o enredo mais coeso e concreto do Pynchon, mas é um enredo a que o próprio autor dá pouca importância. Assim, o livro é dominado por cenas em que, apesar das peripécias e passagens serem muito engraçadas e às vezes também significativas, parecem mesmo na maioria das vezes esquetes de um programa de TV maluco, que sobreviveriam relativamente bem por conta própria. Isso dificulta o envolvimento emocional do leitor, e transforma o livro, que traz um retrato e uma discussão fantásticos sobre a Era Reagan e o fascismo ali presente, além da falência da “revolução” dos anos 60, em uma espécie de entretenimento esquecível, o que é bem distante do que ele é de verdade.

(O que é: O reverendo Wicks Cherrycoke conta a seus familiares, para distraí-los, a história dos personagens históricos Charles Mason e Jeremiah Dixon, astrônomo e agrimensor britânicos cujas observações tem lugar na Cidade do Cabo, na ilha de Santa Helena e, principalmente, na América, onde são responsáveis por traçar a Linha que depois levaria seus nomes, divisa entre os estados de Pensilvânia e Maryland e, futuramente, entre o Norte industrializado e o Sul escravista dos EUA.)

Mason & Dixon, por sua vez, é o Livro (novamente entre os que eu li) de maior potência emocional de Pynchon, um Épico delicado, irreverente e saboroso sobre a América, a Amizade, a História, a Escravidão e outros vários temas sobres os quais Pynchon disserta magistralmente. O Livro é um típico Tijolo, tem mais de 800 páginas, e pynchonescamente apresenta Dificuldades na leitura, mas, também pynchonescamente, nos prende de uma maneira quase sobrenatural, fazendo-nos lê-lo avidamente. Aqui, Pynchon faz um pastiche entre seu Estilo hipnótico e a Literatura Setecentista que transforma a Leitura do livro numa experiência deliciosa. Há uma espécie de Leveza graciosa em cada página, mesmo nas que tratam dos Temas mais sérios, um Tom paródico que nos provoca Sorrisos o tempo todo, e detalhes de Estilo, como o ubíquo uso de Letras Maiúsculas, que contribuem para esse Tom alegre. Como já foi muito falado, Mason & Dixon possui os Personagens mais humanos de qualquer Livro de Pynchon, de modo que seu Desfecho pode provocar Lágrimas (quase as provocou em Mim), algo talvez inédito na Obra do Escritor. No entanto, entre Gargalhadas, Sorrisos, Lágrimas e Prazeres Estéticos incalculáveis, o que se tem em Mason & Dixon é um maravilhoso Épico da Alma humana, um livro lindo e foda, para falar as Palavras certas, e é isso.

Fogo Pálido, de Vladimir Nabokov

O que é: Na primeira parte, um poema longo, de 999 versos, aparentemente uma autobiografia do poeta renomado John Shade. Na segunda, o comentário crítico da obra, cujo autor, Charles Kinbote, nos diz ser o poema na verdade a história do rei exilado de Zembla, “distante terra setentrional”, rei que se assemelha de forma surpreendente ao próprio Kinbote.

Esse foi um livro que me deixou um pouco frustrado. Talvez seja um exemplo do problema apontado por Umberto Eco em relação à literatura moderna: freqüentemente, a crítica de uma obra é superior à própria obra, ou, mais recentemente, a sinopse de um romance é melhor que o romance. Não que o livro de Nabokov seja ruim. O poema que dá título ao romance é maravilhoso, e a intriga central em si é fascinante. Mas, novamente, a intriga proposta, cujas possibilidades são inúmeras e de fazer cabeças explodirem, toma forma na realidade da obra como algo um pouco sem graça, repetitivo. Eu não diria mal executado, porque de fato está bem estruturado e há momentos muitos bons. Mas a trama é pouco crível, não possui tensão, o narrador é insuportável e, correndo o risco de soar repetitivo, a principal parte do livro é também repetitiva. Não que não tenha nenhum valor. Tem, é claro, é de fato uma nova possibilidade para o romance. Mas está para ser escrito (ou já foi e eu desconheço) o romance que leve sua proposta a uma realização mais expressiva.

Enquanto agonizo, de William Faulkner

O que é: Addie, matriarca da família Bundren, morre tendo como último desejo ser enterrada ao lado de seus parentes, numa cidade distante de onde vive sua família. Ainda que relutantes, seu marido e seus filhos empreendem a difícil viagem, jornada que coloca em relevo suas diferenças e suas mágoas.

Quando li Enquanto agonizo fui hipnotizado, terminei-o rapidamente, fiquei de queixo caído, acendi uma vela no altar de William Faulkner. Mas hoje, escrevendo sobre ele, percebo que lembro pouco do livro, que ele me marcou muito pouco, o que é uma espécie de decepção. É um pouco temerário dizer isso sobre essa instituição americana, mas nessa balança a forma superou o conteúdo de maneira negativa. Faulkner transforma ações cotidianas em uma narrativa épica, dá vozes expressivas e singulares a seus personagens. Mas estes parecem não ter muito o que dizer. É um trunfo narrativo, sem dúvida. É até mesmo possível dizer que o livro possui uma das narrativas mais impactantes que eu já tive o prazer de ler. Se eu tivesse escrito esse comentário logo após terminar de lê-lo, seria muito mais elogioso com certeza. Mas hoje, com a perspectiva do tempo, não penso em nada para dizer sobre Enquanto agonizo senão que é um trunfo técnico, lindo de morrer mas um tanto vazio.

A vida modo de usar, de Georges Perec

O que é: Um único momento, oito da noite do dia 23 de Junho de 1975, no edifício localizado no número 11 da rua Simon-Crubellier em Paris, retratado à exaustão. Bartlebooth, homem rico desejoso de não deixar um único vestígio na Terra, empreende uma missão de décadas - pintar 500 aquarelas de marinas pelo mundo, transformá-las em puzzles, montar os puzzles e destruir as aquarelas, completando assim um ciclo vazio -, e naquele exato momento morre, montando o 439º puzzle, fracassando portanto, enquanto a Vida acontece nos demais apartamentos do edifício. É essa vida que Perec captura, descrevendo o que está ocorrendo em cada lugar no edifício no momento da morte de Bartlebooth, e contando histórias sobre seus moradores.

Eis aqui um exemplo de técnica usada em função do conteúdo. Claro que a narrativa de A vida modo de usar não é tão vertiginosa quando a de Enquanto agonizo. E nem poderia, já que nesse grande romance não há propriamente um enredo a ser narrado. Mas sua construção precisa (e árdua) é o arcabouço perfeito para o que se diz, assim como o edifício retratado é o cenário para seus moradores. A vida é um épico da descrição, com sua brilhante e nunca repetitiva retratação dos cenários e personagens do edifício número 11 da rua Simon-Crubellier. E também é mais um filho da linhagem de As Mil e Uma Noites, com seu mosaico de histórias que, por mais que se afastem da memória, permanecem na alma. Pode parecer um pouco enfadonho a princípio, mas logo se é fisgado pela mágica sem origem aparente do livro, por seu voyeurismo que, no entanto, nunca é invasivo, mas antes expressivo, e sutil, e por sua alma de mistério nunca desvelado, elemento essencial de toda obra de Arte.

Homem em Queda, de Don DeLillo

O que é: Keith Neudecker, advogado separado da mulher, escapa do atentado às Torres Gêmeas, e o romance acompanha como sua vida se (re)constrói após o evento, assim como discute o impacto que o mesmo tem naqueles ao seu redor.

Outro livro interessante mas pouco marcante. Não é um primor técnico vazio, embora DeLillo seja tecnicamente um escritor fantástico. Tem conteúdo, mas seus personagens são um pouco vagos, por assim dizer, imprecisos. As discussões que apresenta são muito interessantes, mas é como se elas não dessem em nada, como se fossem o retrato de uma discussão filosófica que não chega a um termo e como se essa discussão, paradoxalmente, seja o que de mais importante está acontecendo. O livro é realmente uma obra importante, por ser a primeira realmente artística a lidar com os acontecimentos do 11 de Setembro, mas ficou a um passo de ser bem sucedido em causar todo o impacto que poderia.

Ficções, de Jorge Luis Borges

O que é: União de dois livros de contos de Borges, O jardim de veredas que se bifurcam e Artifícios, com a presença de diversos contos famosos do escritor argentino, como Pierre Menard, autor do Quixote; Tlön, Uqbar, Orbis Tertius; A Biblioteca de Babel e Funes, o Memorioso.

Muitos contos de Borges começam de uma maneira estranha, parecem ser contos ou crônicas, como se ele estivesse narrando uma coisa qualquer da própria vida. Muitos contos de Borges continuam de maneira estranha, parecem ensaios ou análises de um escritor ou obra, descrições de um lugar que ele conhece. Muitos contos de Borges terminam de maneira estranha, o fim parece ter se perdido, está localizado bem antes da última linha, ou bem depois. Mas, juntos, esses começos, fins e entrechos de seus contos formam obras perfeitas, peças únicas de uma literatura que só ele parece ter escrito. Borges era um erudito, e em um dos contos de Ficções ele chega a citar suas maiores influências. Mas, entre influências e influenciados, só Borges foi Borges, e só os contos dele são tão férteis, misteriosos e perfeitos. Podem me apresentar autores parecidos, eu com certeza vou apreciar muito. Mas acho difícil qualquer um desbancar o hermano do posto de meu contista preferido.

Os Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño

O que é: Dividido em três partes, o livro acompanha a busca dos poetas Ulises Lima e Arturo Belano, os “detetives selvagens”, pela poeta desaparecida Cesárea Tinajero. Na primeira e terceira partes, a história é contada através do diário de Juan García Madero, jovem poeta da Cidade do México. Na segunda parte, a mais extensa, somos apresentados aos depoimentos especificamente localizados no tempo e no espaço de mais de 50 personagens, que contam longas histórias sobre si mesmos que ocasionalmente se encontram com as trajetórias de Lima e Belano.

É inexato dizer que Os Detetives Selvagens foi uma surpresa. Eu tinha altas expectativas com este livro, por tudo que tenho ouvido da obra de Roberto Bolaño (não Bolaños, o Chaves, mas igualmente genial). O que eu não esperava era ser tragado para dentro da história da maneira que eu fui, e encontrar uma riqueza tão grande de expressão e pensamento. Contraditório ao extremo, Detetives conta várias histórias para contar uma única, e fala de dezenas de personagens para falar de uns poucos (talvez dois ou três). Terminado o livro, resta um questionamento constante, “O que diabos ele quis dizer?”, “Qual é o sentido disso tudo?” e até mesmo “E daí?”. É, de fato, uma história de detetive, na qual o leitor é o detetive, e as pistas, por mais presentes que estejam nas palavras e frases, só encontram coesão entre as linhas, e até mesmo fora do livro, em algum lugar inominado que só a mente alcança. Os Detetives Selvagens é um daqueles livros cuja releitura é obrigatória, e cujo alcance ainda está por ser descoberto. Junto ao Pynchon e ao Borges, o melhor livro dessa lista. Espero ansioso o lançamento do último livro (e alardeada obra-prima) de Bolaño, 2666, publicado postumamente após a prematura morte, em 2003, aos 50 anos, do escritor chileno, e que deve ser lançado em Maior pela Cia. das Letras.
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quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A Série - S01E05

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Eles apareceram na casa de Martin no começo de Abril. Não Eles, claro, em pessoa ou o que quer que sejam, mas dois de seus Agentes. Um negro alto que parecia saído de uma discoteca dos anos 70, com roupas coloridas e brilhantes, e um branquelo baixote vestindo um terno novo mas grande demais para seu corpo, praticamente um franciscano em termos capilares, com a diferença de que ele não possuía franja e seus curtos fios cinzentos iam até a nuca. Apareceram na porta da improvável casa suburbana de Madusky, pisando em sua grama bem aparada - ele fazia uma bela figura, o Autor, com seu sobretudo preto e de óculos escuros passeando para lá e para cá com o cortador de grama vermelho e cinza - e limpando os pés no tapete da entrada.

Vinham com um convite oficial para que Martin Madusky, “escritor respeitado”, visitasse a Emissora para discutirem um projeto que Eles imaginavam para ele. Martin acabara de sair de um projeto fílmico conturbado, a filmagem de seu roteiro “Massacre Sangrento” (Rising of the Solitary Corpses, no original) pelo mestre underground Ruther Cardigan, que tivera várias de suas cenas mais intensas ou impactantes emocionalmente cortadas pelos “Eles” do filme sob a justificativa de que “Eram só umas cenas enormes com os zumbis olhando para o horizonte e andando por lugares vazios sem fazer nada. Que importância isso tinha para a história?” Por isso, ficou um pouco hesitante de embarcar num novo projeto que dependesse de “Eles”.

Os dois Agentes, porém, convenceram-no de que esses Eles seriam muito liberais com o projeto, e que, ademais, o convite era somente para uma reunião, onde discutiriam possíveis histórias e conceitos, e poderiam negociar o controle que Eles teriam sobre a parte criativa da produção. MM ponderou por instantes e prometeu comparecer. Na semana seguinte, saiu da Emissora com as linhas gerais de “The Brotherhood of Heaven and Hell” debaixo do braço, não sabendo ao certo se devia sorrir pelo futuro promissor ou permanecer com o cenho franzido, perturbado pela cláusula do pré-contrato que estipulava ser dEles a palavra final em todos os “conflitos criativos”.
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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

A Série - S01E04

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Na primeira vez que eu vi o Kurt, ele tinha acabado de gravar uma versão para a TV de “E o vento levou”, com a Julieta Jackson no papel da Scarlett O’Hara e um exército de figurantes com black face no papel dos escravos. Usava o cabelo lambido e um bigode reto e contínuo emulando Clark Gable, o Rhett Butler original. A versão em que ele tinha trabalhado era uma minissérie que as propagandas prometiam ser uma superprodução, com altos investimentos dEles, e realmente estava cheia de cenários gerados por computador e figurinos reaproveitados. A cena do incêndio de Atlanta era uma mistura de cenas de arquivo (as Torres Gêmeas depois do atentado, cidades bombardeadas na Segunda Guerra, e até mesmo tomadas da destruição dos sets de Intolerância no filme de David O. Selznick) com imagens em negativo das ruas da cidade no presente, o que era pra ser um comentário sobre o mundo e o ser humano, mas não passava da prova meio patética da tosquice da produção.

Mas o Kurt não parecia muito preocupado com isso. Corriam lendas entre os estúdios sobre seus métodos de atuação, e diziam ser ele um daqueles que entravam no personagem, ou deixavam que o personagem entrasse neles, e se apegavam tanto à persona que demorava até o próximo trabalho para se libertarem do último. E realmente aquele dia Kurt se aproximou de mim com um sorrisinho malandro e fez um comentário engraçado sobre alguma coisa que não lembro agora. Logo ele já tinha se envolvido em várias conversas com as ruivas que trabalhavam na produção, entre elas a Denise Dorothy, moça responsável pelo café e nas horas vagas garota de recados, que caminhava sempre pelo estúdio em seus tênis brancos, suas calças jeans com a barra batendo no meio das canelas e a blusa regata de tecido verde metida dentro da calça que gerava um contraste interessante com sua pele branca. Tudo isso por cima da silhueta corporal meio corcunda e rechonchuda, tão parecida com a personalidade dela.

No segundo dia ele apareceu no estúdio já sem o bigode e com o cabelo bagunçado, embora o espírito do primeiro encontro ainda permanecesse. Denise entregou para ele um pedaço de roteiro vindo diretamente do Madusky, e ele sorriu para ele um sorriso bem largo. Quanto a mim, Kurt dispensou diversos momentos de conversa fiada, naqueles primeiros dias, fazendo comentários e ouvindo atento o que eu dizia. Chegamos mesmo a criar algum tipo de intimidade, ou assim eu pensei, de tal maneira que eu comecei a levar os roteiros para ele no lugar da Denise. Mas as coisas começaram a ficar um pouco complicadas. Todos os dias fazíamos enormes preparativos, todos os dias o elenco recebia roteiros e fazia pequenos ensaios, além de uma reunião diária com o John B. Mas gravação que é bom não acontecia nunca. As câmeras, os cenários, o som, a iluminação, os figurinos... estava tudo sempre preparado, e assim permanecia, na linha de partida, sem vir ninguém dar o tiro de largada. O Kurt começou então a ficar um pouco soturno, ele fazia leituras silenciosas do roteiro e nos ensaios lia suas falas mecanicamente. Parou de sorrir e não conversava com mais ninguém do elenco, que dizer da equipe. Nem comigo. Hoje de manhã, quando ele chegou, eu sorri e dizendo Oi estendi a mão para cumprimentá-lo, mas ele passou por mim como se eu não estivesse ali, como se eu não existisse. Fiquei um pouco perturbado, sei lá, ele parecia gostar tanto de mim. Digo, ele realmente expressava isso, ele sempre sorria ao me ver, me cumprimentava animado, ele me dizia, sim, ele chegava mesmo a me dizer, quando eu entregava pra ele o roteiro do dia Você é o Cara. Mas então o que aconteceu? O que aconteceu pra ele simplesmente passar a me ignorar? Só porque as filmagens estão atrasadas, ou foi alguma que eu fiz ou o que? Ah, quer saber, sinceramente cara... Eu não dou a mínima. Não dou mesmo.
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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A Série - S01E03

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O nome do Autor da Série é Martin Madusky, um desses escritores malditos que fizeram fama no meio da literatura alternativa e acabaram comprados pelos Estúdios e Emissoras para produzir histórias alternativas e sujas para o Grande Mercado. A primeira criação de Martin foi uma série curta de 13 episódios chamada “The Brotherhood of Heaven and Hell”, sobre um advogado que vende a alma ao Diabo para virar juiz e descobre, das piores maneiras possíveis, que seu irmão, o delegado local, é um caçador de demônios e desalmados, e portanto precisa caçá-lo e destruí-lo para livrar o mundo dos ímpios. Ou algo do tipo. Eu não assisti à série.

Mas “Brotherhood” fez um relativo sucesso, o que Os deixou salivando por um outro sucesso, agora estrondoso, do Autor. Pouco tempo depois surgiram notícias na Mídia – mas nós já tínhamos ouvido falar disso bem antes – que Madusky estava trabalhando em algo GRANDE, e que esse algo envolveria outros grandes nomes do meio. A movimentação no estúdio foi intensa para o início dos preparativos. Eles, é claro, não investiram muuuito dinheiro no episódio piloto, mas mobilizaram uma equipe bacana para ajudar a fazer algo decente, que fosse chamativo o suficiente para colocar [a]de vez o nome de Madusky entre os grandes criadores televisivos contemporâneos – e [b] nos bolsos dEles muito dinheiro.

O Problema é o seguinte, se assim podemos colocar: a Emissora reservou um de seus melhores estúdios para a gravação da Série, um galpão recém-equipado a poucos minutos do complexo principal em Wild Sierra. Todos fomos apresentados ao Diretor, ao Astro e à Atriz Principal, assim como ao Brilhante Elenco de Coadjuvantes. Chegamos mesmo a gravar algumas tomadas de segunda unidade, árvores passando e a cidade ao pôr-do-sol. Mas então parou. Continuávamos a ir todo dia para o estúdio, o Diretor e os Astros também estavam lá, mas nunca gravávamos nada. Os técnicos e demais membros da equipe ficávamos parados, olhando uns para as caras dos outros, esperando um sinal que viesse de cima, indicando-nos o que fazer. Mas ele não vinha.
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