quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

A Série - S01E04

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Na primeira vez que eu vi o Kurt, ele tinha acabado de gravar uma versão para a TV de “E o vento levou”, com a Julieta Jackson no papel da Scarlett O’Hara e um exército de figurantes com black face no papel dos escravos. Usava o cabelo lambido e um bigode reto e contínuo emulando Clark Gable, o Rhett Butler original. A versão em que ele tinha trabalhado era uma minissérie que as propagandas prometiam ser uma superprodução, com altos investimentos dEles, e realmente estava cheia de cenários gerados por computador e figurinos reaproveitados. A cena do incêndio de Atlanta era uma mistura de cenas de arquivo (as Torres Gêmeas depois do atentado, cidades bombardeadas na Segunda Guerra, e até mesmo tomadas da destruição dos sets de Intolerância no filme de David O. Selznick) com imagens em negativo das ruas da cidade no presente, o que era pra ser um comentário sobre o mundo e o ser humano, mas não passava da prova meio patética da tosquice da produção.

Mas o Kurt não parecia muito preocupado com isso. Corriam lendas entre os estúdios sobre seus métodos de atuação, e diziam ser ele um daqueles que entravam no personagem, ou deixavam que o personagem entrasse neles, e se apegavam tanto à persona que demorava até o próximo trabalho para se libertarem do último. E realmente aquele dia Kurt se aproximou de mim com um sorrisinho malandro e fez um comentário engraçado sobre alguma coisa que não lembro agora. Logo ele já tinha se envolvido em várias conversas com as ruivas que trabalhavam na produção, entre elas a Denise Dorothy, moça responsável pelo café e nas horas vagas garota de recados, que caminhava sempre pelo estúdio em seus tênis brancos, suas calças jeans com a barra batendo no meio das canelas e a blusa regata de tecido verde metida dentro da calça que gerava um contraste interessante com sua pele branca. Tudo isso por cima da silhueta corporal meio corcunda e rechonchuda, tão parecida com a personalidade dela.

No segundo dia ele apareceu no estúdio já sem o bigode e com o cabelo bagunçado, embora o espírito do primeiro encontro ainda permanecesse. Denise entregou para ele um pedaço de roteiro vindo diretamente do Madusky, e ele sorriu para ele um sorriso bem largo. Quanto a mim, Kurt dispensou diversos momentos de conversa fiada, naqueles primeiros dias, fazendo comentários e ouvindo atento o que eu dizia. Chegamos mesmo a criar algum tipo de intimidade, ou assim eu pensei, de tal maneira que eu comecei a levar os roteiros para ele no lugar da Denise. Mas as coisas começaram a ficar um pouco complicadas. Todos os dias fazíamos enormes preparativos, todos os dias o elenco recebia roteiros e fazia pequenos ensaios, além de uma reunião diária com o John B. Mas gravação que é bom não acontecia nunca. As câmeras, os cenários, o som, a iluminação, os figurinos... estava tudo sempre preparado, e assim permanecia, na linha de partida, sem vir ninguém dar o tiro de largada. O Kurt começou então a ficar um pouco soturno, ele fazia leituras silenciosas do roteiro e nos ensaios lia suas falas mecanicamente. Parou de sorrir e não conversava com mais ninguém do elenco, que dizer da equipe. Nem comigo. Hoje de manhã, quando ele chegou, eu sorri e dizendo Oi estendi a mão para cumprimentá-lo, mas ele passou por mim como se eu não estivesse ali, como se eu não existisse. Fiquei um pouco perturbado, sei lá, ele parecia gostar tanto de mim. Digo, ele realmente expressava isso, ele sempre sorria ao me ver, me cumprimentava animado, ele me dizia, sim, ele chegava mesmo a me dizer, quando eu entregava pra ele o roteiro do dia Você é o Cara. Mas então o que aconteceu? O que aconteceu pra ele simplesmente passar a me ignorar? Só porque as filmagens estão atrasadas, ou foi alguma que eu fiz ou o que? Ah, quer saber, sinceramente cara... Eu não dou a mínima. Não dou mesmo.
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2 comentários:

Juka disse...

ainda não li. estou imprimindo porque hoje tenho que sair mais cedo pra unicamp, terei que levar meu irmão em barão antes de ir. mas leio no caminho e converso com você ao vivo. (:

até daqui a pouco.

João G. Viana/Pudim disse...
Este comentário foi removido pelo autor.