No meio da rua e no meio do mundo. O mundo é a rua, e a rua é um rio. Um desses que tem mais pedra do que água, e só enche na chuva, deixando pra estiagem a ascensão aos céus da fina essência de miragem que se desprende do solo. Eu sou o concreto que exala pelo seu bafo minha palavra de calor e delírio. Depreendo do ar sua fúria seca. Ouço os passos dos pássaros que me rodeiam o pensamento, arrancando a bicadas o que restou entre os destroços.
São sete e quantas da manhã. O sol decalca-me os passos. Ele acaba de surgir, em sua perseguição sombria a mim, seu grande inimigo. Eu acabei também, como ele, de chegar a este lugar. É uma rua larga e plana, sem árvores. Suas casas parecem se alternar num compasso programado. É uma imagem de lugar perfeito. Perfeito como só as conspirações torpes podem ser: secretas. Pois a luz é perfeita tanto quanto reta e, para sempre e sempre, visível. Ah, tristeza das tristezas, esse lugar está longe de ser perfeito.
O forasteiro acabara de chegar à rua. Nada se elevava do chão para além das casas. Nem postes, nem placas, nem árvores. Somente os muros o observavam, contritos. Ele caminhava com indignada resolução, passo a passo metendo-se pelo domínio de seus adversários. Fechou os olhos. Em sua escuridão, podia ouvir os muros cantarem. Do tijolo e da tinta desprendia-se um vago som, um réquiem adormecido. No céu, um estranho objeto se movia. Lançava com compasso decidido uma vasta sombra sobre a terra.
O estranho, subitamente ofegante, se contorceu sobre si mesmo, cerrando os punhos e os dentes. Uma espécie de ódio latente e visível parecia percorrer suas veias, fazendo saltar a sua pele uma coloração rubra. Então, após um longo suspiro, começou a gritar, repetidamente: Tuba mirum spargens sonum! Tuba mirum spargens sonum! Seu gritos, sem cadência e repetitivos, pareciam um rosnado raivoso, como se vomitados, com som e fúria espetaculares, enchendo toda a rua.
Pouco a pouco, os portões começaram a se abrir, revelando por detrás dos muros a vida consciente. Eu vejo. De todos os tipos, pessoas afluíam. Os culpados, sim, são eles, eu sei. Mulheres em penhoares, homens de bermuda e camiseta, senhoras de jeans e blusinha. Eles se aproximavam lentamente, inseguros, do homem, que parara de gritar e agora suava sua ira. Eu não posso titubear, é meu dever. Eles pareciam reconhecê-lo. Primeiro, a mulher de cabelos brancos, com anéis nas mãos, que solta um grito mudo e leva a mão à boca. Sim. Depois o rapaz, de calça e sem camisa, que recua medroso. Eles. O velho gordo, que pára e o observa boquiaberto. Sabem. A moça que solta um grito agudo. Quem. A matrona, que continua caminhando, até alcançá-lo e olhar em seus olhos. Eu. Ela vê a morte, a destruição e o julgamento, queimando nos olhos dele como um fogo eterno do sol criador. Sou.
Seus braços se lançam aos céus. O trovão é a voz do juiz que se lança a proferir suas sentenças. O objeto Lua que percorria o céu cobre com vagar o sol, impedindo sua visão, jogando trevas sobre a terra e sepultando seu próprio veredicto. Nuvens também se agrupam, cinzentas, plúmbeas, como a tampa de um sepulcro. Logo, tornam a vomitar fogo e raios sobre a rua. Os dedos e as mãos do recém-chegado são sua indicação, a batuta regendo a suíte sinistra, a tocata que com pura ira destrói as teclas do piano. Os corpos ardem e viram cinzas, os muros desabam sobre as casas e as enterram no concreto.
O barulho cessou. Eu estou sozinho, finalmente. Minha missão já foi escrita, já foi cumprida. Vou-me embora, recolher-me, pois aqui já não há mais o que fazer. O homem então baixou seus braços, e numa marcha constante pôs-se a andar. Enquanto o sol saía de sua senda, em busca de seu grande rival, os escombros se ergueram, entoando seu hino interminável no aqui e no além confutatis maledictis flammis acribus addictis.
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