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Parado o carro, John B. logo abriu a porta e saltou para fora, alongando o corpo como se tivesse viajado por muitas horas. Martin Madusky desceu com mais dificuldade, abrindo a porta, girando o corpo e levantando-se com ajuda dos braços. Depois de bater a porta, espanou o pó da aba do sobretudo e colocou os óculos, que tirara ao alcançar a portaria. O estacionamento estava vazio. O Autor de sobretudo preto calça preta camisa preta sapatos pretos meias pretas óculos pretos cabelos pretos barba preta pele branca e dentes amarelos e o Diretor de colete, óculos escuros, jeans, tênis, boné, cabelos brancos, barbicha e pele enrugada seguiram lado a lado pelo pátio imenso, quase deserto, em direção ao grande bloco oblongo e escuro de milhares de janelas que era a Sede da Emissora. O sol se tornara ainda mais quente e arrancava ilusões do cimento e suor do rosto dos dois caminhantes. Na entrada do prédio não estava escrito o nome da Emissora. Ao se aproximarem das portas de vidro escuro, elas não se abriram à passagem deles, e ao tentar abri-las perceberam que estava trancada. Martin bateu no vidro com força enquanto John B. se virava e olhava para cima, em direção ao céu azul ou ao próprio sol. Não havia toldo na entrada do prédio, as portas davam direto no pátio, sem abrigo dos raios solares ou da chuva. Martin tentou bater de novo, mas seu punho varou o ar, pois as portas se haviam aberto com rapidez, revelando o átrio acarpetado que constituía o saguão de entrada da Sede.
O carpete vermelho se espalhava por uma área larga. Ao passarem pelas portas Martin e John tiveram a impressão de que o saguão ocupava todo o térreo do edifício, mas não puderam comparar as perspectivas interna e externa pois as lâminas de vidro já se haviam fechado atrás deles. Elas eram a única brecha para o exterior naquele recinto. As paredes marrons se erguiam a uns três metros de altura, cobertas por painéis quadrados de madeira, e circundavam todo o saguão sem intermitências, até as portas de vidro pelas quais o Autor e o Diretor haviam acabado de passar. Logo à frente da entrada havia um tapete cor de vinho, de talvez quatro por cinco metros, donde emergiam douradas as letras N G e P, colossais. A única saída dali, além das portas de vidro, era um elevador colocado bem no meio do saguão, uma estrutura redonda com portas de aço opacas. Além do tapete e do elevador, as únicas outras coisas que se podiam divisar no saguão eram pequenos quadros colocados a distâncias constantes uns dos outros sobre os painéis de madeira, que pareciam vistos de longe retratos em preto e branco de faces conhecidas, que fitavam todos aqueles que passavam por ali sem desviar o olhar, mas Martin e John não tiveram tempo de conferir, pois logo que puseram os pés dentro do saguão se encaminharam para o elevador que os esperava de portas abertas.
Não havia botões, mas assim que entraram as portas de aço se fecharam às suas costas e, com um tranco, o elevador se pôs em movimento. Começou a tocar uma música muito baixo, que nenhum dos dois pôde distinguir, e quando ela parecia estar aumentando, em direção talvez a algo mais compreensível, o elevador parou e as portas se abriram para que eles saíssem. Encontraram um corredor estreito, forrado com carpete vermelho e painéis de madeira, e sem janelas ou fontes de luz exterior, somente portas que afundavam nos painéis uma após a outra. Após alguns segundos parado na saída do elevador, John B. se virou para a direita e começou a andar. Um pouco inseguro de estarem no caminho certo, Martin Madusky perguntou: “Tem certeza de que é por aqui?” John B. respondeu: “Sim, você não se lembra?” E Martin: “Nunca estive aqui.”
John B. caminhava lentamente, mas com decisão, e Martin Madusky o seguia, a cara fechada, de vez em quando olhando para trás e para os lados. Dos dois lados do corredor portas se alternavam. Quando havia uma porta à direita não havia à esquerda, e quando havia uma porta à esquerda não havia à direita. As portas não tinham só números, mas inscrições, e símbolos, ou nada. A primeira pela qual passaram tinham um olho mágico; na segunda estava escrito “Aqui”; em outra uma placa dizia “Entre sem bater”; em outra, um homem de braços e pernas abertos estava representado num ícone em forma de losango; em outra, havia uma aldrava em forma de rosto de gárgula. Muitas portas eram lisas e não tinham sequer maçanetas. Após andarem por alguns minutos o corredor começou a fazer uma curva, e antes que pudessem praguejar por não estarem chegando a lugar nenhum uma porta pela qual haviam acabado de passar, e na qual não havia símbolo ou inscrição algum, se abriu silenciosamente e a figura de Little Punk apareceu no limite do campo de visão de Madusky. O Autor parou e virou o tronco devagar, chamando a atenção do Diretor, que também parou. Little Punk sorriu para eles seu grande sorriso branco e disse: “Entrem.”
Dentro do recinto, que parecia uma sala de interrogatórios, com uma tábua no papel de mesa brotando da parede cinza e duas cadeiras de ferro de cada lado, encontraram Doo-Doom sentado ao lado de uma placa onde estava escrito “Sala de Reuniões”. O único elemento destoante ali era uma cadeira de madeira encostada na parede, sobre a qual ninguém estava sentado. Martin e John sentaram-se nas cadeiras de ferro, assim como Little Punk, que acabara de fechar a porta.
“Muito bem...”, disse o agente, antes que se instalasse qualquer espécie de silêncio, e depois disse o que o Autor e o Diretor já sabiam, que estavam ali para decidir o título da Série. Madusky soltou um “Ehrm” à cata de fôlego para sua pergunta, que era “Por que caralhos nós só fomos chamados para decidir isso agora?”, mas Doo-Doom, que não costumava falar muito, continuou o discurso de Little Punk antes que ele pudesse articular qualquer som. “Para decidir o título, precisamos discutir sobre o que é a Série...” – a voz dele era anasalada, mas grave – “Em que lugares ela se passa, quem são os personagens, que tipos de eventos acontecem... é dessas informações que poderemos extrair um bom título.”
Martin respondeu dizendo que a Série, bem, ele gaguejou um pouco e disse que a Série era sobre jornadas, sobre os caminhos que as pessoas tomam, e sobre as paixões que tomam conta delas nesses caminhos, sobre os desejos e os apegos e as obsessões, e algum tipo de coisa que as pessoas chamam de “amor”, e aonde ele as leva. “Um homem, ehrm, ele tem um objetivo, ele tem um sonho, e ele deseja ardentemente o objeto do seu, ahm, sonho, ele quer muito o que ele quer, mas, é, talvez ele não ame o aonde o sonho pode levar ele, mas o sonho em si, hum... Isso, é, a série é sobre isso, sobre as viagens que o amor faz a gente fazer, sobre... o amor que temos por essa viagem, sobre o amor que temos pelo destino” E John B. sugeriu alguns títulos, ele disse que talvez um bom título seria “Love Trip”, ou “O Amor é uma Viagem”, mas Little Punk e Doo-Doom descartaram essas opções. Com mais tempo de discussão, ele passou a defende ardorosamente “Dois Caminhos para Bortelega”, que ele disse ser um título perfeito, pois sintetizava, em poucas palavras, toda a idéia da Série: o destino idílico, a jornada, as escolhas, mas também esse foi irredutivelmente vetado pelos agentes.
Quando saíram da Sede já estava escuro. Little Punk e Doo-Doom se haviam despedido deles e fechado a porta lisa às suas costas. O elevador os trouxera prontamente para o saguão e, quando viram o negrume do ambiente, se surpreenderam. Nenhum dos dois levava relógio e não haviam se dado conta de quanto tempo se passara lá dentro. A despeito disso caminharam com tranqüilidade para o carro, que deslizou suavemente para fora do estacionamento, levando duas almas mais leves, despidas de um peso que não haviam chegado a compreender.
A Série se chamaria Prelúdios e Fugas; talvez como uma metáfora para a constante tensão entre a expectativa em direção aos fatos e contrária a eles que marcaria a narrativa da série, ou talvez somente porque, nos alto-falantes da sala de reuniões, vindo não se sabe de que central musical no Edifício, estivesse tocando O Cravo Bem Temperado.
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