quarta-feira, 23 de julho de 2008

O Relógio

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A radiação de fundo do Universo produz um único som: tic-tac. Desintermitente, porque constante, o som escapa das revoluções de engrenagens que, em órbitas recorrentes, direcionam o funcionamento do mecanismo. Detrás da cortina, há um homem, que diletantemente ajusta todos os componentes da grande máquina, trabalhando silencioso, em vista de poder ouvir o quase imperceptível som das peças funcionando em conjunto.

Neste exato instante (tic-tac), esse homem (chamemos-lo Relojoeiro) caminha com passo firme, em plena luz do dia, em busca de um pequeno defeito em uma pequena pecinha do Mecanismo. Veste seu macacão jeans habitual e uma camisa branca por baixo, além dos sapatos perfeitamente polidos e do boné azul. Leva nas mãos uma caixa. Dentro da caixa, suas ferramentas.

O homem caminha rapidamente. Ele passa em frente a uma figura curvada em um banco. O banco está situado exatamente na linha que divide uma velha praça e a rua de carros passeando obsessivos. Na praça, um bosque é tudo. Cheio de árvores frondosas na aparência, mas muito velhas, algumas não mais que uma carcaça oca pronta para ser levada pelo vento. É outono, o verde e o vermelho disputam ferozmente o domínio da paisagem, ferindo com jatos de cor as folhas cadentes.

A figura curvada, indiferente à passagem do Relojoeiro, é um homem. Em verdade, vos digo: um velho de alma envergonhada, de costas envergadas. Em verde ele se veste, como que desejoso de poder permanecer ali sentado à eternidade, tirando do sol sua energia qual uma planta. Mas é em vermelho que me aparece, saturado de todas as imagens que essa cor carrega.

O Relojoeiro entra no bosque, e desaparece em meio às árvores. A Figura permanece curvada, no exato limite entre os ardentes combates que se degringolam no bosque e o movimento constante dos carros na rua à sua frente. Sapateando na calçada, surge um outro alguém, um Jovem que vem, da mesma direção que o Relojoeiro, cantarolando tão baixo que mal pode ser ouvido.

Sem hesitar, o Jovem se senta ao lado da Figura, esticando as pernas e bocejando como se acabasse de acordar. A Figura, assustada, se move – muito pouco – e lança um rápido olhar para o Jovem. Uma risadinha, quase imperceptível, se segue. Para ele, aquele moço é só um bebê, que estica os braços e abre a boca, na ânsia de obter comida. O Jovem percebe seu movimento, e leva as pernas para trás, encostando totalmente as costas no encosto do banco. Depois, deixa a parte de cima de seu tronco inclinar, e apóia os cotovelos sobre os joelhos. Ele fala:

- Lindo dia, não?

A Figura parece que se assusta novamente. Ergue o corpo com vagar e gira o rosto para encontrar o do Jovem. Ela fala:

- Todos os dias são lindos. Todos os dias são tão belos quantos horríveis, não há nenhum que seja diferente!

Espantado com a resposta eloqüente, o Jovem fita a Figura com olhos bem abertos. Quem seria aquele velho curvado, tão desiludido com a beleza dos dias? Não vendo outra resolução para a questão, ele diz:

- Qual é o seu nome senhor? – ao que o outro responde:

- O que importa? Isso não dirá nada para você. Talvez uma indicação sobre minha ascendência, ou nem tanto. Tente perguntar quem eu sou. – O Jovem encontra-se em uma situação delicada. Tem medo da figura curvada, mas também curiosidade. Não havendo escapatória, resolve acatar a sugestão do outro.

- Quem é você, senhor? – A Figura se ergue um pouco mais. Seu rosto já está acima do do Jovem. Este busca acompanhá-lo, deixando que os joelhos recebam suas mãos.

- Definitivamente, eu não sou o Senhor. O que eu sou, então? Bem, eu sou um velho. Muito velho. Posso ser só isso, mas pelo menos o sou bem! Sou tão mais velho quanto o mais velho que você puder imaginar, e ainda mais. Muito mais.

O Jovem tenta perseguir os olhos da Figura, mas eles lhe fogem, com movimentos rápidos, e os cabelos brancos também lhe atrapalham, caindo com constância para as têmporas e além. Só o que ele vê com perfeição da Figura é a boca, uma boca que tem a força para dizer muitas coisas, mas peca em fraqueza para permanecer fechada. O Jovem quer resolver o enigma da Figura. Ele está ali, irá em frente.

- O que você faz aqui? – a boca da Figura, agora há pouco largada em si mesma, se fecha com rapidez. Os olhos, agora há pouco fugidios, param, e se viram lentamente, encontrando pouso nos do Jovem.

- Oxalá eu pudesse responder a essa pergunta. Só o que eu posso dizer é: o que eu quero fazer aqui, mas ainda assim... - e se cala.

Agora (tic-tac), há silêncio. O Jovem não tem coragem de interrompê-lo. A Figura (quem sabe o que pensa?) não o faz, tampouco. Só o que soa, por todo o espaço ao redor, é o mesmo som, um ruído perfeitamente constante, perfeitamente uniforme. O ruído preenche tudo que a Figura e o Jovem tocam. No banco, no chão, no bosque e na rua. Ali, no limite entre ambos, entre o bosque e a rua, entre o Jovem e a Figura, o ruído está presente. Constante, infinitamente constante, ele soa: tic-tac.

- Meu pai... – e o som de sua voz é como um trambolhão de pêndulos e sinos e de relógios esganiçados e de pratos batendo – era um relojoeiro. – O Jovem ouve a Figura atentamente. – Ele construía seus relógios como obras de arte, mas de uma maneira matemática. Veja, num relógio... – a Figura hesita um instante. – tudo tem seu lugar. Cada engrenagem, cada pequena pecinha. E meu pai era um gênio, ele foi o maior de todos os relojoeiros. Seus relógios eram coisas além do que poderia ser concebido por uma mente menor. Eles transcendiam tudo. Existiam além da beleza, além da arte. Os relógios de meu pai existiam além do tempo.

Os olhos do Jovem não conseguem desviar sua trajetória do rosto da Figura. Para ele, é como se estivesse sendo-lhe revelada ali uma verdade secreta. A história da Figura, que a principio parecera só um velho rabugento, o cativa imensamente.

- Porém, eu... – uma pausa, a maior de todas. Enorme, indivisível, opressiva. Mas logo se desfaz. – Eu me sentia como uma pecinha que não se encaixava no mecanismo da vida de meu pai. Minha mãe morrera quando eu tinha poucos anos. Ela era para ele, para mim também, um ideal, a imagem perfeita. Se para mim era a imagem do amor perfeito, que eu não conhecia, para ele era como um mecanismo perfeito, o melhor relógio jamais feito.

O quadro não se alterou. Permanecem ali os dois, Jovem e Figura, Bosque e Rua, e o Limite, e o Ruído.

- É claro, ele sempre deu mais atenção aos seus relógios do que a mim. Eu era uma engrenagem que não rodava da maneira correta, que tinha algum defeito, e por isso era simplesmente deixada de lado. Isso sem dúvida confunde muito a cabeça de uma criança. E não só me confundiu, mas imprimiu em mim um ódio enorme. Naquela época, sim, eu me lembro bem. Ele saía da cidade constantemente. Uma vez por semana, às vezes mais. Passava o dia todo fora. Ele me dizia que estava se encontrando com outros relojoeiros, trocando trabalhos, técnicas... Veja, para meu pai, nenhum de seus relógios podia ser perfeito. Esse era o tema da maioria de nossas conversas. A impossibilidade da perfeição. De um relógio, ou de tudo.

O Jovem trouxe o rosto mais para perto do rosto da Figura, para ouvi-lo melhor.

- E o motivo disso tudo, dessa impossibilidade, por mais irônico que possa parecer, era o próprio tempo. Ele dizia que um relógio, quando em movimento, se desgasta. Que o movimento do próprio tempo desgasta as coisas, que ele destrói tudo. Para ele, o relógio perfeito seria aquele da inutilidade perfeita: um relógio que não mostrasse o tempo, visto que este simplesmente não existiria. Para ele, o relógio perfeito estaria parado no tempo, e o tempo pararia com ele, e para sempre ele seria apreciado, no exato instante de sua concepção, no instante de sua finalização, na hora mágica quando ele estaria pronto, e nada mais. Nem velho, nem usado, nem quebrado, nem funcionando, nada, somente pronto. Aí então ele seria perfeito.

Os carros deixaram de passar na rua. As folhas deixaram de cair.

- Um dia, eu simplesmente cedi ao peso. De peça inútil passei a mecanismo defeituoso. Meu pai se isolara ainda mais nos últimos tempos. Estava fora naquele dia. Então, eu entrei em seu quarto – uma sombra de dor passa pelo rosto da Figura. – e quebrei todos os seus relógios. Suas maiores obras-primas, eu as joguei no chão e as abri e desmontei uma por uma arremessando longe cada minúscula engrenagem, cada correia, cada parafuso. Quando meu pai voltou para casa, sua oficina era somente uma ruína. Eu o estava esperando ali, sentado no canto, vivendo aquele torpor que nos domina após a implosão de nossa mente, a confusão da raiva. Em suas mãos, ele levava uma caixinha preta.

O silêncio a tudo oblitera, é ao mesmo tempo causa e efeito. Só o que há é ruído: tic-tac.

- Depois daquele dia, ele se tornou totalmente fechado. Andava pela casa se arrastando, taciturno, num estado de quase inconsciência. Não mexia mais em suas ferramentas, não fazia mais relógios. Quase não trocávamos palavras, o essencial mal era dito. Então, ele caiu doente, ficou na cama cheio de febres e convulsões horríveis. Passaram-se poucos dias, e ele morreu. – os próprios olhos da Figura parecem nublados – Só o que me restava dele então, além das roupas e das ferramentas, era a caixa preta, que permanecera sempre fechada após sua primeira aparição. Quando voltei de seu enterro, peguei a caixa, e deixei que ela ficasse em meu colo, ali parada. Aquela caixa se tornara para mim símbolo da morte de meu pai, era uma lápide que precocemente se abatera sobre ele, acompanhando-o até o instante final. Quando tomei coragem, a abri. Lá dentro, encontrei um relógio. Parecia muito simples, mas junto com ele havia um bilhete. Ali, estavam escritas palavras de cujas formas me lembro perfeitamente até hoje, como se estivessem à minha frente: "Para meu filho, o relógio perfeito".

Tic. Tac.

- Naquela hora, fiquei um pouco assustado. Levantei-me com o relógio nas mãos e fiquei encarando-o. Ele estava parado, e marcava a meia-noite. Ergui meu braço lentamente, estendi os dedos para ele, e com uma calma infinita, dei corda.

Tictac. Tictac.

- E ele se moveu. Somente isso, os ponteiros começaram a andar e andar e andar, me hiptonizando em seu translado rigoroso.

A Figura puxa a manga de seu blusão, e em seu pulso esquerdo o jovem pode ver um relógio simples, com a única peculiaridade de ter um ponteiro verde e outro vermelho. A marcha dos ponteiros também o hipnotiza, a passagem de todo o tempo marcada no compasso daqueles dois braços, daquelas setas que audaciosamente apontam para fora, indicando a centrípeta fuga do âmago das coisas, do cerne do próprio tempo.

- Por que as cores? - diz o Jovem.

- Quem sabe? - diz o outro. - Caprichos de meu pai. Talvez ele pretendesse que o verde da vida e o vermelho do sangue fossem um símbolo da dicotomia que acometeria aquele que parasse no tempo, ao mesmo tempo vivo e morto. Ou talvez manifestasse a esperança de ver seu sonho realizado e a raiva advinda da frustração de não conseguir levá-lo adiante.

Tictactictactictac. A Figura vira seu corpo em direção ao Jovem e o encara frente a frente.

- Ele passou toda a vida tentando domesticar o tempo. De fato, fez isso melhor do que ninguém. Seus relógios atingiram o máximo patamar no intento humano de subjugar o passar do tempo a um peso que o mantivesse preso. Foram obras-primas, obras-primas do cárcere, prisões para o tempo. Quando ele percebeu que havia, contudo, um limite onde poderíamos aprisionar o tempo, passou a dedicar sua vida ao único sonho de manter o tempo atado definitivamente, de mãos presas e prostrado ante seu mestre, que seria aquele que fosse como um relógio perfeito. E, no fim da sua vida, ele conseguiu. Não porque estivesse morrendo, mas porque aquele só poderia ser o fim para ele. Quando conseguiu engendrar um relógio perfeito, e depois viu que tudo o que havia feito antes estava em ruínas a partir daquele momento, ele entregou suas armas e morreu. É assim que eu vejo as coisas...

Aproveitando a pausa, o Jovem se apressa em dizer:

- Então ele conseguiu? O Relógio era mesmo capaz de parar o tempo? - neste instante (tic-tac), a Figura encara os olhos do Jovem e desvela os seus próprios. Os de um se abandonam nos do outro, se misturam, tornam-se unos.

- Ele foi capaz de resistir ao fluxo das horas, de me manter isolado em relação à marcha dos anos. Por quanto tempo, não sei. É o problema dos antigos... nunca sabem precisar o tempo... tudo ocorre numa esfera paralela à que eles estão, e sua própria órbita tem um ritmo que, de dentro pra fora, ordena todos os demais. No meu caso, talvez isso tenha acontecido deveras, mas quem é que possui a resposta? Se eu vivi muitos anos, isso pode ter outra explicação... Sim, estou vivo há anos sem conta, mais do que posso me lembrar, mas eu parei no tempo? Veja este corpo velho e carcomido, quando meu pai morreu eu era só uma criança!

A Figura baixa seus olhos e torna lentamente à sua posição inicial: imóvel, curvada.

- Não se pode parar o tempo, não da maneira como meu pai sonhou. O relógio e eu continuamos correndo, e embora tenhamos corrido por muito tempo, hoje somos velhos e desgastados. Assim também são todas todas as coisas: velhas e desgastadas. Hoje o sol brilha menos, o verde é menos verde, o vermelho, mais pálido. Respondendo à sua pergunta, meu jovem, o que eu quero fazer aqui é não seguir essa regra, é permanecer imóvel, no tempo e no espaço, enquanto tudo ao meu redor se esfarela.

A Figura fecha os olhos por um instante, e suspira. Ao Jovem, parece que ela se curvou ainda mais.

- Mas é claro, isso não será possível. Sempre soube que o meu destino era o fracasso. Entretanto, ainda assim quis parar aqui, e permanecer isolado, num exílio de tudo que me envolve. Jovem, não deveria ter falado com você! Assim apressei minha sina. Em minha vigília eterna, sonho com uma grande torre, onde meu pai construiu um relógio, que avança lentamente até a meia noite e, quando a alcança, explode em mil pedaço, que estilhaçam, numa reação em cadeia, tudo o que tocam. E é aí o fim. Lembre-se disso quando eu houver lhe esquecido, pois é sempre valioso guardar memórias do futuro. Jovem, eu não viverei para ver o fim do mundo, mas você, embora já tenha morrido em mim há muito tempo, permanecerá. Agora vá, vá embora, não lhe desejo mais aqui.

O Jovem não está mais ali, só o que há é uma figura curvada sentada em um banco muito velho. De sua cabeça, caem alguns fios de cabelo, e eles são idéias. As lembranças de um estado que já se perdeu, e não pode ser recuperado. A figura curvada soluça, e num último esforço ergue o tronco para o céu, estende os braços, e de olhos brilhando e boca aberta fita tudo o que repousa acima. O céu lhe entra pelas órbitas e o preenche, e as pálpebras então se fecham e também os lábios se unem e os braços caem. Suas costas lentamente se curvam, sua cabeça abandonada pendendo do pescoço. Do bosque, sai o Relojoeiro, assoviando, e toma a direção em que o Jovem seguiu. No punho da Figura, os ponteiros verde e vermelho do relógio diminuem a velocidade, muito lentamente, e param. As folhas tornam a cair e os carros continuam a passar: tic-tac.
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Um comentário:

Sib disse...

MUITO bom!
prende a atenção.
parfait ^^