terça-feira, 1 de julho de 2008

E então, acordou.

Ele se despediu dos pais com um boa-noite rápido e distante e logo entrou no quarto. Encostou a porta ao batente e foi pra cama, primeiro sentando-se e depois jogando as pernas pra cima. Colocou-as debaixo das cobertas e se virou, meio-corpo, para ajeitar o travesseiro. Já quase cedendo ao cansaço, esticou o braço e com o dedo clicou no interruptor, interrompendo então a luz. Sua cabeça rapidamente se jogou para trás em direção ao travesseiro, encontrando-o somente um instante antes do que esperara, o que causou nele uma leve dor. Passado o arremedo de contratempo, ele deixou o ar entrar em grandes lufadas nos seus pulmões, e soltou pequenos arrotos, que o lembraram instantaneamente do jantar. Enquanto praticava esses exercícios pré-sono, notou pela fresta da porta que a luminosidade da sala diminuíra, deduzindo daí que a luz havia sido apagada. O lusco-fusco-quase-breu, violado somente pelos tênues raios luminosos da tevê, logo o envolveu num clima aconchegante, fazendo-o esquecer os pequenos arrotos, o cansaço, o jantar e o boa-noite distante. Sem que sua mente tomasse nota disso, adormeceu.

E então, acordou. Com um solavanco, da total ausência do sono passou à existência, e a tangibilidade do colchão e o peso do ar, tão familiares, o fizeram ter certeza de que havia acordado. Sonhara talvez com um vôo, ou uma queda, não se lembrava. Só sabia que se encontrava tomado por aquele estranho sentimento que nos envolve quando acordamos de um sonho intenso do qual não lembramos. Aquela sensação de que algo importante nos escapa, de que sabíamos algo que se perdeu. A sensação de impotência diante da inevitabilidade do esquecimento. Sem, no entanto, formular tais pensamentos muito racionalmente, logo eles se dissiparam e ele pôde se levantar.
Desde o momento em que tocou o soalho com o pé estranhou o silêncio. Não se ouvia sequer um ruído dentro da casa. Seus pais, normalmente tão barulhentos pela manhã, estavam totalmente silenciosos. Ele abriu a porta do quarto, que emitiu um gemido leve, e saiu para o corredor. Na sala de tevê, tudo estava mais ou menos como ele deixara na noite anterior. O céu que se entrevia pela janela parecia bem limpo. A porta do quarto dos pais estava fechada, mas com um leve empurrão ele a abriu. Ali dentro não havia ninguém. A cama jazia impecavelmente arrumada, e o banheiro também estava sereno e limpo.
Com passos rápidos, saiu dali, atravessou a sala de tevê e chegou à sala da frente. Abaixou-se e tirou o telefone do gancho. Com o dedo firme, apertou o botão de ligar e levou o aparelho à orelha. Não ouviu nenhum som. Tentou discar o número do celular de sua mãe, e depois de seu pai, mas em ambas as vezes não obteve nenhum retorno. Correu então de volta à sala de tevê e com o controle remoto ligou o bonito aparelho que os pais haviam comprado no último mês. Zapeou por todos os canais mas em todos eles só havia chuvisco. No seu quarto, tentou ligar o computador, mas o monitor só apresentava uma tela preta.
Estava sendo tomado lentamente pelo desespero. Da apreensão inicial de acordar com a casa vazia, passando pelo estranhamento de não conseguir se comunicar com seus pais e pelo medo flagrante de não obter ali nenhum sinal do mundo externo, chegara a um desespero num estado puro, que só fazia se aprofundar. Obrigou-se então à calma, e decidiu ser melhor buscar uma alternativa mais imediata de contato com algum outro ser vivo.
Tirou o pijama e enfiou-se rapidamente numa camiseta e numa bermuda, calçando depois os tênis. Voltou à sala e foi para a cozinha, onde abriu a geladeira - repleta, sua mãe fizera compras no dia anterior - e pegou uma barra de cereais para mordiscar. Abriu a porta e saiu do apartamento. No hall, chamou o elevador e, num arroubo de ansiedade, apertou as campainhas dos outros apartamentos do andar. Nenhum ofereceu resposta. Tentou então abrir as portas, mas elas estavam trancadas. Com isso, lembrou-se de pegar a chave de seu próprio apartamento. Tirou-as de cima da mesa e as guardou no bolso, fechando a porta em seguida. O visor do elevador indicava que ele continuava parado, e impaciente desceu pelas escadas.
Já no estacionamento, a primeira coisa que fez foi ir até sua garagem. Encontrou os carros de seu pai e sua mãe, que surpreendentemente estavam abertos. Estavam também, contudo, vazios. Nada nos porta-luvas, ou nos porta-malas. Totalmente incrédulo, ele foi correndo até a portaria, que estava vazia. O monitor das câmeras de vigilância estava desligado, e não havia nenhum jornal ou correspondência. O portão da rua, porém, estava aberto, e sem pestanejar ele correu para fora.
Nenhum carro havia ali, nem animal. As vacas que esporadicamente pastavam no terreno em frente ao seu prédio não estavam ali, nem estava ninguém. Andando em pleno asfalto, subiu sua rua até o prédio mais próximo, cuja portaria também estava vazia, embora o portão estivesse fechado, e o mesmo se sucedeu com o próximo. Sequer se deu ao trabalho de tentar pular. Melancólico, começou a descer sua rua e voltar para seu prédio, devorando ansiosamente a barra de cereais que trouxera. Desta vez, contudo, encontrou o portão fechado. Forçou a memória para ver se o havia fechado, mas não conseguia lembrar de nada.
Pulou, então, para dentro, e começou a andar em direção aos elevadores. Quando botou os pés no estacionamento, viu que não havia mais carros ali. Os veículos que minutos antes preenchiam o espaço agora eram sumidos, amplificando a sensação de vazio. Correu para sua própria garagem, e esta também estava vazia. A numeração das vagas estava desgastada e ilegível, e a localização naquela sucessão de pilares de cimento se tornara confusa. Com alguma dificuldade, reencontrou o elevador, mas esse mais uma vez não veio ao seu chamado.
Subiu pelas escadas, que estavam escuras, mas teve de contar uma por uma as portas até chegar ao seu andar, pois a numeração estava também ali apagada e esquecida. Quando finalmente chegou ao número de seu apartamento, abriu a porta e entrou no hall. Ali também estava escuro, embora menos, pois a luz que escapava pela fresta das portas dava algum alento ao ambiente. Entretanto, não o suficiente para que ele conseguisse enxergar o número do apartamento, e com isso acabou tendo que se guiar pela memória.
Seu primeiro espanto foi ao girar a fechadura e descobrir a porta trancada. Não se lembrava de tê-lo feito. Pegou então a chave nos bolsos e no escuro tateou pelo buraco da fechadura. Quando alcançou-o e colocou nele a chave, contudo, ela não entrou, e ele se viu forçando-a contra ele. Perguntou-se se estaria mesmo no andar certo, mas seu desespero e ansiedade eram tamanhos que não se deu uma segunda chance. Jogou-se repetidas vezes contra a porta até arrombá-la. Era seu apartamento.
A visão dos móveis familiares trouxe-lhe então uma certa calma. Ofegante, foi até a geladeira, buscando algum bálsamo gelado para acalmá-lo naquele pesadelo. A geladeira estava vazia. Assim como vazios estavam todos os armários e gavetas da cozinha. Transtornado, foi à sala e ali também só havia móveis. A gaveta do aparador não guardava mais os habituais telefones de restaurantes nem tampouco a caderneta de endereços. Tentou novamente ligar a tevê ou o computador, mas nenhum respondeu. Foi quando reparou em seus livros, padecentes na enorme estante de seu quarto. Puxou o primeiro e começou a folheá-lo violentamente, ansioso por ouvir algum tipo de voz humana. As páginas, como leite e como neve, estavam brancas, e como tudo eram vazias. Folheou um por um, só para depois jogá-los ao chão. Os títulos também haviam desaparecido, das capas e de sua memória.
Tremendo e débil, foi até o banheiro lavar o rosto, mas nem uma gota de água veio aliviar sua febre. Dali, já tropeçando e esbarrando nas paredes, foi à varanda tomar um pouco de ar. Com os olhos arregalados, fitou a cidade, que podia ver até o horizonte. Desviando um pouco a cabeça, percebeu as plantas que sua mãe mantinha ali. Tocou a folha de uma delas e ela se soltou na sua mão. Estavam todas mortas. Desviou novamente o olhar e voltou ainda uma vez para a cidade. Dela, só percebia o silêncio. Não enxergava nenhum movimento, não importava quão longe tentasse olhar.
Surpreendentemente, já escurecia. Foi andando lentamente para trás até encontrar uma parede, e deixou-se escorregar por ela até o chão. Levantou os joelhos e apoiou o rosto contra eles. Não lembrava o nome de seus livros, ou de sua cidade, nem os de seus pais, nem mesmo o seu. Seu mundo afundava cada vez na palidez e brancura de solidão e esquecimento, e após o crepúsculo que se avizinhava, ele seria negro. Deixou escorrer as primeiras lágrimas enquanto pensava em quanto a noite seria longa.

Um comentário:

Sib disse...

Magistral!
fui ficando nervosa junto com o personagem, muito bom muito bom MESMO.
estava com a idéia de escrever um com um tema semelhante, aguarde que ele virá (soon ;])