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Eu, sei, faz tempo. Mas as coisas acontecem na hora certa. Para os que se lembram, o caminho continua aberto: "Tudo e Nada". Para os que não se lembram, melhor começar por aqui: "Amortescimento".
Dito isso, façam bom proveito.
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Ei, onde está todo mundo? Venha, venha cá, sim, isso mesmo, aí, pode parar. Pronto. Todos aqui, a escuridão lá fora, aqui dentro um pouquinho, luz não sei de onde. Lanternas nas mãos, meus amigos! Ajeitem os capacetes, não tenham medo, vamos! Esperem... esperem um pouquinho... só mais um instante... isso! É, o Senhor das Moscas já passou, o Anfitrião atrás dele, a alma do nosso amigo... onde está? Tenho a impressão de tê-la visto em algum lugar. Precisamos procurá-la, crianças, é de vital importância. O Sr. Pifrosineliano está ansioso, espera-nos lá fora para começar as buscas. Não, aí não Dicksie! Eu falei para ficarmos juntos, é melhor não mexer em coisas que não conhecemos direito. A chamada: Poncho? Presente, muito bem. Felício? Está aqui também, ótimo. Dicksie já está aí que eu sei, seu pachola. Cumparsito? Ótimo. Barff e Anísio, lado a lado como sempre, ok. E Todd, e pra terminar, eu! Preto de carvão e seus sete anõezinhos, sim, muito bem. Vamos lá pra cima agora, garotos, vamos nos ver. Veremos a luz lá em cima mas também muitas coisas feias e tristes, é isso. Preparem-se por favor, estão bem? Todos os equipamentos nas mãos, e as lanternas, não se esqueçam. Pronto, é isso, venham. Sigam-me, sim?
O homem de capote, míope como era, não reparou nas criaturas que passaram entre seus pés. Para ele era somente a noite de raios e a chuva contra o couro de sua capa e de seu chapéu. E a seus pés o corpo, seu primeiro mistério. Mexendo os braços, sem ligar para chuva, pegou uma caderneta em seu bolso, uma caneta, e começou a escrever. Não esboçou reação frente ao papel encharcado e à tinta que escorria. Em sua mente, ele via muito bem. Havia ali dois mistérios:
1. O Mistério do Homem
2. O Mistério do Sentido
Os destrincharia com habilidade, como sempre fizera, vejamos. O Mistério do Homem, mistério universal do homem. Também o chamava Mistério do Corpo. Perguntas se multiplicavam em sua mente. Quem era aquele homem (e por que estava morto, qual fora sua vida, o que em sua história o levara àquele momento)? Alguém o matara (e se sim, por que, e quem, e como, e quando, e de que forma o levara até ali)? Em que espécie de conspiração nefasta estaria envolvido para ter o corpo jogado à frente de uma catedral? A tinta escorria pela caderneta, que já se espedaçava sob o peso da água, e o homem finalmente desistiu de escrever. Agora deveria pensar no mistério do sentido.
Era isso: qual o sentido disso tudo? Qual o sentido dessa história, desses acontecimentos? Quem é o Meu Amigo? Quem é o Senhor das Moscas? Quem é o(a) Anfitriã(o)? Quem é o Sr. Pifroniseliano, quem é Preto de Carvão, quem são Poncho, Felício, Dicksie, Cumparsito, Barff e Anísio, e Todd? Quem são os moradores dos 13 Quartos da mansão do(a) Anfitriã(o)? Quem o corpo, qual a catedral, quem o assassino? Quem é o detetive? Quem sou eu, quem é você, qual é o sentido disso tudo?
Não é hora, ainda, das respostas. Mas a chuva não se importa, e cai violentamente.
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sexta-feira, 25 de setembro de 2009
A Cidade e as Serras - Eça de Queirós
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Citação de Sexta excepcional por esse trecho fabuloso.
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“Na cidade (como notou Jacinto), nunca se olham, nem lembram os astros – por causa dos candeeiros de gás ou dos globos de eletricidade que os ofuscam. Por isso (como eu notei) nunca se entra nessa comunhão com o universo que é a única glória e única consolação da vida. Mas na serra, sem prédios disformes de seis andares, sem a fumaraça que tapa Deus, sem os cuidados que, como pedaços de chumbo, puxam a alma para o pós rasteiro – um Jacinto, um Zé Fernandes, livres, bem jantados, fumando nos poiais de uma janela, olham para os astros e os astros olham para eles. Uns, certamente, com olhos de sublime imobilidade ou de sublime indiferença. Mas outros curiosamente, ansiosamente, com uma luz que acena, uma luz que chama, como se tentassem, de tão longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe compreender os nossos...
- Ó Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?
- Não sei... E aquela, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral?
- Não sei.
Não sabíamos. Eu por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra, minha mãe espiritual. Ele, porque na sua biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre astronomia, e o saber, assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somos a obra da mesma vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha e Sande, constituímos modos diversos de um ser único, e as nossas diversidades esparsas somam na mesma compacta unidade. Moléculas do mesmo todo, governadas pela mesma lei, rolando para o mesmo fim... Do astro ao homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro – tudo é o mesmo corpo, onde circula, como um sangue, o mesmo Deus. E nenhum frêmito de vida, por menor, passa em uma fibra desse sublime corpo, que se não repercuta em todas, até às mais humildes, até às que parecem inertes e invitais. Quando um sol que não avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio galho de limoeiro, em baixo na horta, sente um secreto arrepio de morte: - e, quando eu bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro universo! Jacinto abateu rijamente a mão no rebordo da janela. Eu gritei:
- Acredita!... O sol tremeu.
E depois (como eu notei) devíamos considerar que, sobre cada um desses grãos de pó luminoso, existia uma criação, que incessantemente nasce, perece, renasce. Neste instante, outros Jacintos, outros Zés Fernandes, sentados às janelas de outras Tormes contemplam o céu noturno, e nele um pequenininho ponto de luz, que é a nossa possante terra por nós tanto sublimada. Não terão todos esta nossa forma, bem frágil, bem desconfortável, e (a não ser no Apolo do Vaticano, na Vênus de Milo e talvez na Princesa de Carman) singularmente feia e burlesca. Mas, horrendos ou de inefável beleza; colossais e de uma carne mais dura que o granito, ou leves como gases e ondulando na luz, todos eles são seres pensantes e têm consciência da vida – porque decerto cada mundo possui o seu Descartes, ou já o nosso Descartes os percorreu a todos com o seu método, a sua escura capa, a sua agudeza elegante, formulando a única certeza talvez certa, o grande Penso, logo existo. Portanto todos nós, habitantes dos mundos, às janelas dos nossos casarões, além nos Saturnos, ou aqui na nossa terrícula, constantemente perfazemos um ato sacrossanto que nos penetra e nos funde – que é sentirmos no pensamento o núcleo comum das nossas modalidades, e portanto realizarmos um momento, dentro da consciência, a unidade do universo! – Hem, Jacinto?...”
-A Cidade e as Serras, Eça de Queirós
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Citação de Sexta excepcional por esse trecho fabuloso.
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“Na cidade (como notou Jacinto), nunca se olham, nem lembram os astros – por causa dos candeeiros de gás ou dos globos de eletricidade que os ofuscam. Por isso (como eu notei) nunca se entra nessa comunhão com o universo que é a única glória e única consolação da vida. Mas na serra, sem prédios disformes de seis andares, sem a fumaraça que tapa Deus, sem os cuidados que, como pedaços de chumbo, puxam a alma para o pós rasteiro – um Jacinto, um Zé Fernandes, livres, bem jantados, fumando nos poiais de uma janela, olham para os astros e os astros olham para eles. Uns, certamente, com olhos de sublime imobilidade ou de sublime indiferença. Mas outros curiosamente, ansiosamente, com uma luz que acena, uma luz que chama, como se tentassem, de tão longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe compreender os nossos...
- Ó Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?
- Não sei... E aquela, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral?
- Não sei.
Não sabíamos. Eu por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra, minha mãe espiritual. Ele, porque na sua biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre astronomia, e o saber, assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somos a obra da mesma vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha e Sande, constituímos modos diversos de um ser único, e as nossas diversidades esparsas somam na mesma compacta unidade. Moléculas do mesmo todo, governadas pela mesma lei, rolando para o mesmo fim... Do astro ao homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro – tudo é o mesmo corpo, onde circula, como um sangue, o mesmo Deus. E nenhum frêmito de vida, por menor, passa em uma fibra desse sublime corpo, que se não repercuta em todas, até às mais humildes, até às que parecem inertes e invitais. Quando um sol que não avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio galho de limoeiro, em baixo na horta, sente um secreto arrepio de morte: - e, quando eu bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro universo! Jacinto abateu rijamente a mão no rebordo da janela. Eu gritei:
- Acredita!... O sol tremeu.
E depois (como eu notei) devíamos considerar que, sobre cada um desses grãos de pó luminoso, existia uma criação, que incessantemente nasce, perece, renasce. Neste instante, outros Jacintos, outros Zés Fernandes, sentados às janelas de outras Tormes contemplam o céu noturno, e nele um pequenininho ponto de luz, que é a nossa possante terra por nós tanto sublimada. Não terão todos esta nossa forma, bem frágil, bem desconfortável, e (a não ser no Apolo do Vaticano, na Vênus de Milo e talvez na Princesa de Carman) singularmente feia e burlesca. Mas, horrendos ou de inefável beleza; colossais e de uma carne mais dura que o granito, ou leves como gases e ondulando na luz, todos eles são seres pensantes e têm consciência da vida – porque decerto cada mundo possui o seu Descartes, ou já o nosso Descartes os percorreu a todos com o seu método, a sua escura capa, a sua agudeza elegante, formulando a única certeza talvez certa, o grande Penso, logo existo. Portanto todos nós, habitantes dos mundos, às janelas dos nossos casarões, além nos Saturnos, ou aqui na nossa terrícula, constantemente perfazemos um ato sacrossanto que nos penetra e nos funde – que é sentirmos no pensamento o núcleo comum das nossas modalidades, e portanto realizarmos um momento, dentro da consciência, a unidade do universo! – Hem, Jacinto?...”
-A Cidade e as Serras, Eça de Queirós
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quinta-feira, 24 de setembro de 2009
Por certo tempo não gostei de Clarice
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Por certo tempo não gostei de Clarice, suas paranóias, seus medos, seus sussurros desesperados e sem sentido. Não gostava dela, vi sua entrevista e não gostava, não gostei nem ali nem depois, seu olhar solto, sua expressão de mau humor, as palavras saindo com muito esforço da boca, a fala entrecortada, as frases ásperas e curtas que denotavam aos meus olhos um certo enfado, uma arrogância de achar a vida desnecessária e o mundo feio e chato demais. Não gostei dela ali nem depois. As pessoas que gostavam dela, também dessas não gostava, não gostava de ninguém que se sentisse atraído por aqueles lábios retorcidos para fora, os olhos rasgados no rosto, a fala, a fala... Não gostava de sua idéia, ou de seu livro que ia falar sobre uma retirante, sobre uma moça e a miséria e como a sociedade brasileira é injusta e isso tudo (não tinha, ainda, lido). Por certo tempo não gostei de Clarice, pois tinha preconceito, não imaginava o mundo que ela revela, a dor, tantas vezes repetida, que ela abre, a pergunta sem fim que ela faz a si e a mim e ao mundo sem parar nem por um instante, uma ansiedade da dúvida, a dúvida sem resposta, o assombro permanente do que não é entendido, não imaginava, não sabia, não gostava de Clarice.
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Mas agora eu gosto.
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Por certo tempo não gostei de Clarice, suas paranóias, seus medos, seus sussurros desesperados e sem sentido. Não gostava dela, vi sua entrevista e não gostava, não gostei nem ali nem depois, seu olhar solto, sua expressão de mau humor, as palavras saindo com muito esforço da boca, a fala entrecortada, as frases ásperas e curtas que denotavam aos meus olhos um certo enfado, uma arrogância de achar a vida desnecessária e o mundo feio e chato demais. Não gostei dela ali nem depois. As pessoas que gostavam dela, também dessas não gostava, não gostava de ninguém que se sentisse atraído por aqueles lábios retorcidos para fora, os olhos rasgados no rosto, a fala, a fala... Não gostava de sua idéia, ou de seu livro que ia falar sobre uma retirante, sobre uma moça e a miséria e como a sociedade brasileira é injusta e isso tudo (não tinha, ainda, lido). Por certo tempo não gostei de Clarice, pois tinha preconceito, não imaginava o mundo que ela revela, a dor, tantas vezes repetida, que ela abre, a pergunta sem fim que ela faz a si e a mim e ao mundo sem parar nem por um instante, uma ansiedade da dúvida, a dúvida sem resposta, o assombro permanente do que não é entendido, não imaginava, não sabia, não gostava de Clarice.
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Mas agora eu gosto.
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terça-feira, 15 de setembro de 2009
!?
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Abandonei a poesia pelas coisas que não têm som. De agora em diante não haverá mais “ais”, “ós” ou “uaus” para mim, somente a impassibilidade dos signos. Sob meus dedos estão eles, as curvas, os traços, os pontos na página branca, tocando-se de diferentes maneiras, desenhando variadas formas. Mas nenhum deles pode ser expresso pela língua que se bate contra os dentes ou pelas cordas que vibram no abismo da garganta. Eles não podem alcançar nenhum ouvido, estou sozinho na terra dos cegos, não há sequer um rei caolho para ver aquilo que digo. Os signos sem som trazem toda a solidão para dentro de nós, onde não podemos alcançá-la, e até mesmo dela somos apartados, sou apartado, eu sozinho, nem a solidão por companheira, somente o dedo sujo de tinta que rabisca signos sem som na folha cinza. Antes havia o som do mundo, e a alegria da bulha das coisas. Ai, ai, ai, ui, ui, ui, hein, hein, hein e as onomatopéias que brotavam sem ser vistas. Toc, ping, pow, tlec, clap, fung, oinc, atchim, auau, bang, grrrr, nhec, miau, cocoricó, zzzz, kablam, psiu,ô, ê, a, sons reduzidos à sua essência mais irredutível, situados no tempo entre o abrir e o fechar dos lábios, no tempo o tempo, antes do tempo de significar, tic, tac. E depois os dedos sujos, as paredes manchadas, aquelas coisas que eram pra ser aquelas coisas que eram. O “á”, “ê”, “ô” virando AEIOU as vogais todas e as consoantes entre elas, rabiscos de curvas, traços, pontos nas paredes e tabuletas de argila, signos para o som que eles ouviam. Tic, tac, som e sentido, mais sons, mais sentidos, os signos se unem e desse conúbio de símbolos nascem símbolos novos, filhos dos símbolos de antes. E a música é a pintura é a escrita é a poesia que é música, pintura, escrita, ver ouvir sentir na união de tudo que nós temos na cabeça e na pele e das coceguinhas que sentimos nas têmporas. Os signos de dedos sujos onde antes havia nada agora querem dizer tudo, eles estão ansiosos, são ansiosos por dizer, dizem antes mesmo de alguém ouvi-los ou sequer dar-lhes um instante de atenção, dizem tudo de uma vez, já disseram, já está tudo dito, nós é que ouvimos com atraso, atrasados somos. Por isso os sentidos se perdem, os sons deixam de ecoar, somente os signos permanecem, sem som, insignificantes, uma expressão próxima do vazio de todo aquele nada que há em nossos próprios ocos. Faz silêncio na estação, onde escrevo signos sem som no papel; é o resto. Os signos já correram em direção a seus sentidos, e os sentidos correram em direção à realidade, e o Som está nisso tudo, mas não em nós. Ficamos todos para trás, fiquei eu, estou sozinho na estação vazia, não há estação, somente eu e o meu redor, cheio de signos de exclamação e surpresa, de espanto e dúvida, e eles não fazem som, somente permanecem, frios, enquanto os encaro. E o meu redor sou eu.
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Abandonei a poesia pelas coisas que não têm som. De agora em diante não haverá mais “ais”, “ós” ou “uaus” para mim, somente a impassibilidade dos signos. Sob meus dedos estão eles, as curvas, os traços, os pontos na página branca, tocando-se de diferentes maneiras, desenhando variadas formas. Mas nenhum deles pode ser expresso pela língua que se bate contra os dentes ou pelas cordas que vibram no abismo da garganta. Eles não podem alcançar nenhum ouvido, estou sozinho na terra dos cegos, não há sequer um rei caolho para ver aquilo que digo. Os signos sem som trazem toda a solidão para dentro de nós, onde não podemos alcançá-la, e até mesmo dela somos apartados, sou apartado, eu sozinho, nem a solidão por companheira, somente o dedo sujo de tinta que rabisca signos sem som na folha cinza. Antes havia o som do mundo, e a alegria da bulha das coisas. Ai, ai, ai, ui, ui, ui, hein, hein, hein e as onomatopéias que brotavam sem ser vistas. Toc, ping, pow, tlec, clap, fung, oinc, atchim, auau, bang, grrrr, nhec, miau, cocoricó, zzzz, kablam, psiu,ô, ê, a, sons reduzidos à sua essência mais irredutível, situados no tempo entre o abrir e o fechar dos lábios, no tempo o tempo, antes do tempo de significar, tic, tac. E depois os dedos sujos, as paredes manchadas, aquelas coisas que eram pra ser aquelas coisas que eram. O “á”, “ê”, “ô” virando AEIOU as vogais todas e as consoantes entre elas, rabiscos de curvas, traços, pontos nas paredes e tabuletas de argila, signos para o som que eles ouviam. Tic, tac, som e sentido, mais sons, mais sentidos, os signos se unem e desse conúbio de símbolos nascem símbolos novos, filhos dos símbolos de antes. E a música é a pintura é a escrita é a poesia que é música, pintura, escrita, ver ouvir sentir na união de tudo que nós temos na cabeça e na pele e das coceguinhas que sentimos nas têmporas. Os signos de dedos sujos onde antes havia nada agora querem dizer tudo, eles estão ansiosos, são ansiosos por dizer, dizem antes mesmo de alguém ouvi-los ou sequer dar-lhes um instante de atenção, dizem tudo de uma vez, já disseram, já está tudo dito, nós é que ouvimos com atraso, atrasados somos. Por isso os sentidos se perdem, os sons deixam de ecoar, somente os signos permanecem, sem som, insignificantes, uma expressão próxima do vazio de todo aquele nada que há em nossos próprios ocos. Faz silêncio na estação, onde escrevo signos sem som no papel; é o resto. Os signos já correram em direção a seus sentidos, e os sentidos correram em direção à realidade, e o Som está nisso tudo, mas não em nós. Ficamos todos para trás, fiquei eu, estou sozinho na estação vazia, não há estação, somente eu e o meu redor, cheio de signos de exclamação e surpresa, de espanto e dúvida, e eles não fazem som, somente permanecem, frios, enquanto os encaro. E o meu redor sou eu.
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terça-feira, 1 de setembro de 2009
Na Biblioteca...
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Já publiquei algumas vezes aqui pedaços de coisas que escrevi ou que ainda não terminei. Mais uma vez, lá vamos nós. Mais um dos começos de romance que descansam no disco rígido à espera de que a procrastinação cesse de todo e a vontade sonhadora faça-se em vontade prática para dar à luz o feito ou desastre literário que ainda agora é nada mais que um retalho e uma idéia.
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Os degraus do Lugar Sagrado nos disseram as horas, quando perguntados, mas havia muita fumaça ali, pouco se via, e a bulha dos carros passando, como fundo para o silêncio de nós quatro, recortava aquela imagem de um carro do passado parado no meio fio, as portas recém-fechadas, Pauline receosa de continuar - ela tem medo, sempre teve, seus olhos abrem-se ao menos uma vez por dia de algum espanto ou receio, seus olhos lindos, imensos, tão grandes e tão adequados à sua face e à sua cabeça linda e incomum -, Andrei e Fischer junto dela, um de cada lado, as mãos deles paradas no ar prestes a agarrar os cotovelos da moça, e eu ali, também receoso, também com medo, indeciso sobre continuar subindo e talvez não mais retornar ou deixar-me levar pela aflição, pelo desejo de continuar ao lado dela, de não deixá-la, e no entanto eu já estou no primeiro degrau, não há mais volta, um tremor de terra, sentido parece somente por mim, badalam os sinos da Catedral, já não posso atrasar, não pode haver mais medo, viro e mecânico dou o primeiro passo, é uma longa subida, lembro da imagem dos mosteiros e dos templos nas montanhas, construções encravadas nos picos mais altos, enterradas na pedra e na neve, acessíveis somente pela Escadaria que parece não ter fim, aquela sucessão estreita e desencontrada de planos irregulares de rocha, nada convidativos, iguais em distância à que hoje me desafia, ainda que ao todo situadas no lado oposto dessa, imensa e ameaçadora, de degraus tão altos e tão largos que é preciso escalá-los, jogar os braços por cima deles e se arrastar impotente pelo mármore ocre, humilhar-se voluntariamente para poder atravessar os portais que lá em cima nos aguardam, um mera sombra aqui de baixo, uma sombra absoluta na chegada, lá, de onde não se pode mais olhar pra trás, somente em frente, somente afundar-se na sombra que desde aqui da base, desse recanto ensolarado e enevoado de mundo, já posso sentir.
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Para cada degrau, um enigma. Em minha pequenez observo no alto de cada degrau letras que não conheço, hieróglifos guardiões da senda que segue acima, o caminho críptico para o Portal e a Sombra, desvelado passo a passo, degrau por degrau, pela solução daqueles enigmas.
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Já publiquei algumas vezes aqui pedaços de coisas que escrevi ou que ainda não terminei. Mais uma vez, lá vamos nós. Mais um dos começos de romance que descansam no disco rígido à espera de que a procrastinação cesse de todo e a vontade sonhadora faça-se em vontade prática para dar à luz o feito ou desastre literário que ainda agora é nada mais que um retalho e uma idéia.
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Os degraus do Lugar Sagrado nos disseram as horas, quando perguntados, mas havia muita fumaça ali, pouco se via, e a bulha dos carros passando, como fundo para o silêncio de nós quatro, recortava aquela imagem de um carro do passado parado no meio fio, as portas recém-fechadas, Pauline receosa de continuar - ela tem medo, sempre teve, seus olhos abrem-se ao menos uma vez por dia de algum espanto ou receio, seus olhos lindos, imensos, tão grandes e tão adequados à sua face e à sua cabeça linda e incomum -, Andrei e Fischer junto dela, um de cada lado, as mãos deles paradas no ar prestes a agarrar os cotovelos da moça, e eu ali, também receoso, também com medo, indeciso sobre continuar subindo e talvez não mais retornar ou deixar-me levar pela aflição, pelo desejo de continuar ao lado dela, de não deixá-la, e no entanto eu já estou no primeiro degrau, não há mais volta, um tremor de terra, sentido parece somente por mim, badalam os sinos da Catedral, já não posso atrasar, não pode haver mais medo, viro e mecânico dou o primeiro passo, é uma longa subida, lembro da imagem dos mosteiros e dos templos nas montanhas, construções encravadas nos picos mais altos, enterradas na pedra e na neve, acessíveis somente pela Escadaria que parece não ter fim, aquela sucessão estreita e desencontrada de planos irregulares de rocha, nada convidativos, iguais em distância à que hoje me desafia, ainda que ao todo situadas no lado oposto dessa, imensa e ameaçadora, de degraus tão altos e tão largos que é preciso escalá-los, jogar os braços por cima deles e se arrastar impotente pelo mármore ocre, humilhar-se voluntariamente para poder atravessar os portais que lá em cima nos aguardam, um mera sombra aqui de baixo, uma sombra absoluta na chegada, lá, de onde não se pode mais olhar pra trás, somente em frente, somente afundar-se na sombra que desde aqui da base, desse recanto ensolarado e enevoado de mundo, já posso sentir.
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Para cada degrau, um enigma. Em minha pequenez observo no alto de cada degrau letras que não conheço, hieróglifos guardiões da senda que segue acima, o caminho críptico para o Portal e a Sombra, desvelado passo a passo, degrau por degrau, pela solução daqueles enigmas.
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