sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Citação de Sexta: One of the old Bill, the Bard


"The fault, dear Brutus, is not in our stars,
but in ourselves, that we are underlings."

- William Shakespeare, Júlio César
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quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Pílulas Cinematográficas, Edição 7: Especial David Lynch

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A obra de David Lynch é única no cinema mundial, e por isso ele é considerado o mais criativo diretor americano vivo. Seus filmes são claustrofóbicos e perturbadores, recheados de elementos assustadores, que o credenciariam para dirigir um filme de terror (prova disso é que Stanley Kubrick fez toda sua equipe assistir a Eraserhead, o primeiro filme de Lynch, pois o gênio queria exatamente aquele clima para O Iluminado). Os temas preferidos de Lynch são o mundo dos sonhos (e pesadelos), as dicotomias (bem/mal, morena/loira, realidade/ilusão, vida/morte), a troca e confusão de identidades, o mistério, o sobrenatural, a cor azul e os coelhos. Ver um filme dele é ser fisgado, e ficar dias com o filme na cabeça, tentando adivinhar que diabos o diretor queria dizer com tudo aquilo. Eu, como se um não bastasse, vi três, e reproduzo abaixo as minhas opiniões a respeito, que muito propositadamente reuni pela internet afora, na ânsia de entender o mundo de Lynch.
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Estrada Perdida (Lost Highway, 1997): Primeiro filme dessa espécie de “trilogia freak” do diretor, aqui Lynch já começa a levar seu gosto pelo estranho às últimas conseqüências. Narrado utilizando a estrutura de uma fita de Möebius, o filme é ao mesmo tempo uma moeda (de duas faces... dãã). Fica em suspenso, e sem resposta, a pergunta sobre se o que vemos é uma única história contada de duas maneiras diferentes ou duas histórias que se confundem, ou ambos! O mistério, o medo, as dicotomias, as confusões de identidade: está tudo ali. Dezenas de perguntas ficam no ar, algumas são respondidas de maneira ilógica... com Estrada Perdida, Lynch inaugurou a série de filmes talvez mais criativos de sua carreira.
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Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, 2001): Cidade dos Sonhos ser um filme colocado exatamente entre Estrada Perdida e Império dos Sonhos é muito significativo. Embora tenha uma estrutura que, observada por completo, à primeira vista é incompreensível, o enredo em si de Cidade dos Sonhos é extremamente linear, e, após desvendado, deixa em suspenso somente o necessário. É bom lembrar que a obra seria uma série de TV, que não vingou, e o último terço do filme, responsável pela confusão daqueles que assistem à ele, foi criado por Lynch para transformar o resto do material em um filme. Mas, embora seja assim, não se pode dizer que a Cidade dos Sonhos é incompreensível e sem sentido. Não vou ficar aqui analisando os pormenores do enredo e os segredos do filme, mas é só procurar pelo nome do filme em português ou inglês no Google que se encontrará inúmeras interpretações de alta qualidade. As que eu mais recomendo são essas duas, em inglês: Lost on Mulholland Dr. e "No Hay Banda." Mas, antes de acessarem esse links, vejam o filme! É uma obra-prima fascinante do cinema mundial e um dos melhores filmes da década.
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Império dos Sonhos (INLAND EMPIRE, 2007): Já em Império dos Sonhos, Lynch adere totalmente ao seu esquema de desconstrução, fragmentação e confusão. Se em Estrada Perdida a falta de sentido era somente parcial e em Cidade dos Sonhos ela funcionava em função do enredo, aqui ela adquire múltiplas personalidades, de tal modo que levou Lynch a ser indagado sobre se estava se sentindo bem mentalmente. Na verdade, o filme é uma espécie de mosaico de histórias-ecos umas das outras que se interligam de formas surpreendentes, mas em certa medida insondáveis. Nem mesmo o diretor e a atriz principal entram em consenso sobre quantas personagens ela interpreta no filme. Que chance nós mortais temos então? Por isso, o jeito é seguir o conselho de Lynch. Ao invés de ficar tentando entender cada detalhe, entremos na viagem e aproveitemos as sensações que o diretor é capaz de proporcionar, pois esse é o segredo de suas obras, e nenhum outro.
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quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Colunistas de greve

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Calma gente, o título é só ilustrativo. Peço desculpas aos visitantes do blog, por essa semana não termos nem a coluna Music seems to help the pain nem a coluna A Roda. Acontece que o Ciampi está com sérios problemas técnicos e de tempo e o Lobato está no meio de uma crise existencial. Mas não temam: em duas semanas os dois voltam bonitos e cheirosos para alegrar nossas terças e quartas-feiras com suas palavras. Aguarrrdem.
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terça-feira, 28 de outubro de 2008

Continuem acompanhando Através do espelho obscuro!

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A minha novela Através do espelho obscuro, publicada diariamente no blog Nós Mesmos, continua a toda. Entrem no link, leiam, e fiquem conhecendo os personagens e as situações que estão fazendo dessa história um relativo sucesso. Comentem!
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segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Crepúsculo dos Deuses

Hollywood é uma terra muito fértil. Não só para artistas em potencial, que lá buscam seus sonhos, ou para os de fato, que lá os realizam, mas também para as mais diversas histórias sobre o efeito que aquele lugar causa nas pessoas. Com efeito, histórias passadas em Los Angeles são uma constante no cinema americano, e aquelas que tem a indústria do show business local ou da meca do cinema como pano de fundo também são freqüentes.

Contudo, se essas histórias podem ser cômicas, ou inspiradoras, elas também são, muitas vezes, trágicas. É o caso de Crepúsculo dos Deuses, obra-prima do diretor Billy Wilder. No filme, acompanhamos em princípio a história de Joe, roteirista fracassado que sequer consegue pagar o aluguel, e pensa em voltar para sua terra natal. Logo, porém, Joe encontra, por acaso, a mansão onde vive a antiga diva cinematográfica Norma Desmond, ícone do cinema mudo que, com o advento do cinema falado, caiu no ostracismo.

Norma, porém, não se conforma com essa situação. Aliás, vai ainda mais longe: não só ela não a aceita como de certo modo a ignora, crendo ainda viver em seus tempos de glória, quando era desejada por todos, diretores, estúdios e fãs. Como se não bastasse sua própria auto-enganação, essa realidade ilusória é sustentada pelo mordomo Max, na verdade ex-marido de Norma, que teme o que poderia acontecer caso ela caísse na realidade e se descobrisse esquecida.

Tragado pelo redemoinho que é a atriz, Joe não tem escolha senão permanecer em sua mansão, ajudando-a a escrever o roteiro daquele que, ela acredita, será seu grande filme. Ao mesmo tempo, a mulher apaixona-se pelo roteirista, e praticamente o obriga a aceitar seu amor possessivo. Cada vez mais enredado na teia da antiga diva, Joe não vê saída por nenhum lado: começa um relacionamento profissional com a mulher de um amigo, que aos poucos parece querer se tornar algo mais. Norma, porém, não o quer longe de si, e só o que o roteirista pode fazer é ver a loucura da mulher aumentar cada vez mais.

No fim das contas, Joe acaba morto, alvejado pelas balas de uma Norma que ele estava prestes a abandonar. Ela, porém, como o choque, afunda ainda mais em sua loucura, em sua ilusão. Permanece acreditando que todos querem vê-la, todos querem filmá-la. Vira-se para a câmera das TVs que ali estavam para cobrir o assassinato e proclama: “Estou pronta para o meu close-up.”, mas o que vemos em seus olhos transtornados nem de longe lembra a glória de sua antiga fama.
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sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Citação de Sexta: Da arte de escrever histórias

“A arte de escrever histórias consiste em saber extrair daquele nada que se entendeu da vida todo o resto; mas, concluída a página, retoma-se a vida, e nos damos conta de que aquilo que sabíamos é realmente nada.”

- Italo Calvino, O Cavaleiro Inexistente
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quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Pílulas Cinematográficas, Edição 6

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Nessa edição das pílulas, o que há de mais em comum entre os filmes é uma verve alternativa: os dois primeiros são de cineastas indies, que fazem seus filmes fora do mainstream (embora a diretora do segundo seja filha de um dos maiores diretores americanos de todos os tempos). Já Woody Allen, diretor do terceiro filme, não é um cineasta alternativo, mas faz os filmes que quer (embora problemas com financiamento o tenham levado a filmar seus últimos filmes na Europa) e, diferente dos outros, é uma lenda viva do cinema.
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Os Excêntricos Tenenbaums (The Royal Tenenbaums, Wes Anderson, 2001): Wes Anderson tem feito bonito desde seu primeiro filme, mas foi com Os Excêntricos Tenenbaums (tradução ruim do título original, renegada até pelo próprio diretor) que ele finalmente alcançou o prestígio. Contando a história de uma família disfuncional (o tema preferido dos cineastas indies), Anderson faz um filme adorável, brilhante, com momentos trágicos e momentos cômicos, mas sempre conduzidos com uma leveza e despretensão dignas do diretor.
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Encontros e Desencontros (Lost in Translation, Sofia Coppola, 2003): Sofia Coppola, também fez um filme estréia elogiado (As Virgens Suicidas), mas foi com Encontros e Desencontros que ela atingiu o reconhecimento. Indicado ao Oscar de melhor filme e diretor (além de ganhador de melhor roteiro original), entre outros, Encontros e Desencontros é um conto tocante sobre a solidão em um mundo desconhecido e sobre o amor que pode nascer sem depender de idade ou desejo sexual. O final do filme é particularmente brilhante: não nos deixando conhecer o que Bob diz para Charlotte, Sofia concede aos seus personagens um momento de intimidade, não se intrometendo nem permitindo que os espectadores voyeurs nos intrometamos naquele momento tão particular, e ainda deixa no ar a pergunta sobre o que foi dito ali, fomentando desse modo o mistério, que diz infinitamente mais do que o conhecido.
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Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry, Woody Allen, 1997): Muitos filmes de Woody Allen são parecidos: têm o próprio diretor atuando como protagonista, um homem judeu de meia idade neurótico e depressivo (cuja vida é movimentada por “cinismo e niilismo, sarcasmo e orgasmo”), que acaba usando o filme como uma espécie de sessão de psicanálise na qual nós, espectadores, somos o médico. Esses filmes, porém, não são iguais, como alguns gostam de falar. Em Desconstruindo Harry, por exemplo, está presente um fator fortíssimo de metalinguagem, eco de Oito e Meio, em que Allen aparece como um escritor com bloqueio criativo que conta nos livros por ele escritos versões de sua própria vida. Na minha visão, o filme funciona como uma espécie de “última sessão de análise”, uma catarse em que Allen justifica todos os filmes que fez sendo personagem principal e ainda se livra, de uma vez por todas (ao menos no mundo da arte) de todas as neuroses e obsessões que marcaram sua carreira (e porque não, sua vida).
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quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Críticas, adaptações...

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Sempre me pego pensando em como minhas críticas (tanto as literárias quanto as cinematográficas) são mancas, falhas, limitadas. É constante a sensação de que algo está faltando, de que algo me escapa, de que muito do que eu pensei enquanto apreciava a obra não está ali.

Mas também, pudera: uma crítica, comentário, exegese, interpretação de uma obra é nada mais que um ponto de vista sobre uma obra de arte, que a enquadra e limita. Enquanto a obra de arte, por sua vez, é também uma interpretação, um ponto de vista, que enquadra e limita a obra maior: a própria existência.

Mas, assim como uma obra de arte, ao selecionar pedaços da realidade, expande a nossa visão sobre ela, também a crítica faz isso: põe em destaque partes da obra, de modo a permitir uma visão diferenciada sobre a mesma.

As famigeradas adaptações seguem um caminho muito parecido: são um ponto de vista sobre a obra original, que nos influencia a vê-la de determinado jeito. Quando assistimos a um filme adaptado de um livro, inevitavelmente, ao lermos o livro, imaginaremos os atores sendo os personagens, mesmo que em relação a outras coisas possamos pensar diferente.

Assim é com todas essas coisas, embora em níveis diferentes: a crítica, a adaptação, a obra de arte, cada uma delas seleciona pedaços da existência e nos apresenta-os de uma determinada maneira, o que acaba influenciando a nossa visão sobre o mundo. Para expandir nosso entendimento, então, devemos recorrer às mais diversas fontes de visões: se refestelar com obras de arte tanto quanto ver adaptações e ler críticas: assim estaremos enxergando muitos lados da Questão, e nos aproximando de compreendê-La por inteiro.
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terça-feira, 21 de outubro de 2008

Através do espelho obscuro, Nova Série

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Estou escrevendo uma história seriada, chamada Através do espelho obscuro. Estou postando uma capítulo novo por dia, lá no blog Nós Mesmos. São capítulos curtos, mas instigantes. Espero que gostem. Comentem aqui e lá!
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segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Os Incompreendidos

Filmes sobre crianças são freqüentemente um problema. Em geral, ou eles são comédias, ou assumem tons de tragédia, melodrama: enfim, um clima muitas vezes piegas e forçado, cheio de comiseração pela desgraça dos pequenos seres humanos.

Difícil, mesmo, é um filme tratar crianças/adolescentes de uma maneira realista, sem recair no drama pesado ou na comédia leve. Os Incompreendidos é um dos filmes que alcançam esse nível. O longa de Truffaut traz um olhar sobre o mundo adolescente que, embora não procure se demorar no lado divertido ou no lado triste da infância, lança sobre todos os eventos dessa fase da vida um olhar carinhoso, compreensivo.

Também, não poderia ser diferente: o filme é densamente autobiográfico, e inclusive parte de sua imagética voltará a aparecer em outros filmes do diretor. O protagonista, Antoine Doinel, alter-ego de Truffaut, interpretado por Jean-Pierre Léaud, aparecerá ainda em outros quatro filmes do mestre da nouvelle vague.

Por isso, o que aparece na tela é uma sucessão de acontecimentos da infância, alguns mais tristes, outros mais divertidos, mas todos com um ingrediente essencial, quando se fala de crianças e adolescentes: a compreensão. Truffaut, lembrando-se de sua própria vida, compreende o mundo infantil, e, apesar de ser esta uma obra um pouco melancólica, nunca deixa a tristeza dominar o tom, e então constrói uma obra-prima de enorme sensibilidade e inigualável beleza.
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sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Citação de Sexta: A Insustentável Identidade do Ser

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“São precisamente as perguntas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e que traçam as fronteiras de nossa existência.”
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- Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser
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quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Pílulas Cinematográficas, Edição 5: Especial trilogia em língua inglesa de Antonioni

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Após um longo afastamento, o retorno: as Pílulas estão de volta! Embora elas tenham ficado muito tempo sem aparecer, voltam em grande estilo, falando de um dos grandes diretores de todos os tempos, Michelangelo Antonioni. Por trilogia em língua inglesa, refiro-me aos três filmes que o diretor fez para a MGM com produção de Carlo Ponti, todos falados em inglês. Ao contrário de sua trilogia anterior, porém, essa nova não tem uma forte ligação temática. Se na “trilogia da incomunicabilidade” o fantasma sempre presente era o da incapacidade dos seres humanos de se comunicarem, aqui não há um assunto que predomine. A incomunicabilidade continua presente, como por toda a carreira do cineasta, mas não é o assunto principal. O tema, penso eu, que mais se aproxima de estar fortemente presente nos três filmes é o da ilusão: ilusões diferentes entre si, mas com a mesma origem. Os filmes de Antonioni são filme difíceis, lentos, com um registro realista mas cheios de acontecimentos estranhos. Decifrar o que está por trás de tudo que está acontecendo é uma aventura muito estimulante. Por isso, recomendo desde já assistir a todos os filme sobre os quais falarei abaixo, pois eles merecem e precisam ser vistos.
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Depois Daquele Beijo (Blow-Up, 1966): De longe, o meu preferido dos três. Blow-Up se insere numa linhagem de filmes metalingüísticos que não falam de cinema, mas da fotografia. Basicamente, a ilusão aqui é a própria realidade: nem a tríade “Sexo, Drogas e Rock’n’Roll”, nem a fama e nem o dinheiro são capazes de tirar o protagonista, o fotógrafo Thomas, do tédio que assola sua vida. Finalmente, quando ele descobre algo que traz alguma emoção para ela, um assassinato que aparece por acaso em suas fotos, logo esse algo se esvai, some, como se nunca tivesse acontecido. É o dilema de Thomas: se a realidade é tão frágil a ponto de em algumas horas mudar de “crime hediondo cometido e fotografado” para “crime nenhum”, de que vale a realidade? Por fim, no jogo de tênis imaginário dos mímicos que encerra o filme, Thomas acaba por aceitar essa ilusão: ilusão que ele mesmo cria, não só pela lente de sua câmera, mas vivendo da maneira como vive.
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Zabriskie Point (Idem, 1970): Esse é o mais fraco dos três, e aquele em que o fator “ilusão” está menos presente. Porém, a cena final do filme vale por ele todo, é espetacular. O filme quer passar uma mensagem anti-sistema, anti-establishment, mas talvez acabe recaindo justamente na ilusão política, a ilusão da mudança: dois jovens envolvidos com movimentos estudantis e revolucionários se encontram e começam a se amar. Na cena que se tornou célebre, passada no ponto turístico que dá nome ao filme, uma espécie de cânion no deserto americano, os dois fazem amor, e esse ato se multiplica ao seu redor, resultando numa espécie de orgia metafísica ecoando por todo o lado. Logo depois, porém, um deles, o homem, acaba morto pelo mesmo sistema que combatia. E o outro, a mulher, que trabalha para alguém pertencente ao sistema, tem de ir até o lugar onde esse alguém está para fazer um serviço. Chegando lá, porém, vê que é uma mansão luxuosa, cheia de “mulheres fúteis” na piscina e homens-de-terno-e-gravata bebendo whisky e discutindo negócios. Então, num misto de ódio pelo sistema, pela perda do amado e pela própria vida, ela imagina a explosão da mansão, de cada milímetro da mansão, e de muitos ângulos diferentes. Contudo, embora sugira a imaginação, Antonioni não nos mostra o lugar após a “explosão”, deixando em aberto o que pode ter acontecido. Só o que ele mostra é o sol do deserto brilhando, apagando da memória e da terra a tragédia que até ali se desenrolara.
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Profissão: Repórter (The Passenger, 1975): Provavelmente o filme mais famoso de Antonioni, Profissão: Repórter conta com Jack Nicholson e Maria Schneider nos papéis principais. É o filme mais misterioso dos três, e conta com uma premissa originalíssima: um repórter, David Locke, que troca de identidade com um companheiro de hotel que morreu de enfarte, e depois descobre ser o companheiro um traficante de armas. A motivação dele a princípio não fica clara, mas depois revela-se como algo familiar: o repórter queria escapar de sua rotina, pois, apesar de viajar o mundo todo em sua profissão, ser casado, famoso, etc., não estava satisfeito. Neste filme, portanto, a ilusão mais uma vez respinga na rotina, mas tem como foco principal, porém, a identidade. A moça que o protagonista conhece em Barcelona nunca tem sua identidade revelada. Na penúltima cena do filme, um primor técnico, obra-prima por si só, travelling de sete minutos, Locke é morto por homens que talvez sejam enviados do governo para matar o traficante de armas que ele “é”, mas talvez não sejam. Assim, questionando a realidade da identidade, Antonioni nos presenteia com mais uma obra-prima.
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quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A Roda #3 - Panorama do Vale de Legium, parte 2






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por Lobato Légio

Tecem-se as impressões sobre o monólito vivo: fulgura já o sol alto no céu, mas ele ainda permanece à sombra. É O Que Foge do Zênite, o para o dia obscuro. Mas, posta a estrela maior, a refulgência de fogo, em seu nadir, ou, antes mesmo, nos limites da visão, caminhante do ocaso, aí sai o monólito de sua caverna e caminha no lusco-fusco, e espera surgir Vésper, e brilha com as estrelas.

E na chuva delas se molha, e se banha, e resplandece, solitário e único, vidrocristal que verte do areal sem fim. O deserto ressoa de eco e silêncio, toca os ângulos e as impressões do monólito vivo. De bem longe vêm surgindo sombras, que caminham em sua direção e por ele passam, antes mesmo que se entenda o que elas eram.

Deitado de braços abertos, engolido pelo céu negro sarapintado de estrelas, sou eu o monólito vivo, erguendo-me da areia, tão pesado quanto o mundo, somente o sol por testemunha. Sem pestanejar caminho, e pulo, e alcanço.

A estrada que corta o deserto, é ela que me alcança, com suas curvas insidiosas, animais invasores, e retas que perpassam o coração das areias como uma lança. O asfalto quente expele um bafo de ilusão, e o caminho que se posta à frente se torna difuso e sem contornos.

Na névoa, porém, vejo aparecer algo sólido, real. Quatro paredes e meia, pilastras, uma bomba de gasolina. Dentro do posto, um homem gordo e barbudo não levanta os olhos quando eu entro, fica a anotar riscos mortos em sua caderneta.

Somente quando toco no balcão, ele sai de sua posição, e vira os olhos para mim, e sua língua, e pergunta, de pronto, sem mesmo piscar: “Mister...?”, ao que respondo, após um único e leve respirar: “Suzano – from Alabama.”
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terça-feira, 14 de outubro de 2008

Music seems to help the Pain #3 - Diário de Bordo






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por Rodrigo Ciampi

Adianto-lhes que a coluna de hoje novamente será de cunho pessoal, o império do empirismo reinará neste humilde texto que vos seguirá. Relatarei novamente como feito no primeiro post, onde contei minha proximidade à musica, mais uma passagem inesquecível para mim, que talvez lhes acrescente um pouco sobre o tema . Para aqueles que esperavam o tema que prometi desenvolver, não taquem-me pedras, o tema gera polêmicas demais, devido ao número “massacrante de inveracidade” dos fatos; outrossim é inviável também analisar caso a caso para a comprovação de cada um, por isto, decidi abandonar a idéia que me geraria muito trabalho, pelo menos por hora.
Enfim,não prolongarei mais um discursos fastidioso, pois não sou Fidel Castro, e não sendo... ok, parei.

Ainda estou em momento de êxtase, movido a uma euforia sem precedentes, por poder ter realizado o sonho de anos, que era há alguns anos atrás irrealizável . Eu pude acompanhar intensamente a vinda de Toshimitsu Deyama, ou o Toshi, ao Brazil. Eis que surgirá a pergunta: QUEM DIABOS É TOSHI? Se esta pergunta calhou em sua mente, eis que farei então uma ressalva contando de forma sucinta um pouco sobre Toshi.

Antes de falar de Toshi, contarei-lhes sobre o X Japan, a banda onde o vocalista concretizou uma carreira brilhante, anos de glória, curtiu por anos também a vida de “rockstar” e deixou com certeza uma marca na história do rock japonês, ou mais ousadamente, do rock mundial. O X Japan foi formado em 1982, pelos amigos Yoshiki e Toshi, em Tóquio. A banda que já foi chamada de NOISE, e depois de apenas X, se concretizou após anos com a formação geniosa de Hide e Pata nas guitarras, Taiji (depois Heath) no baixo, Yoshiki comandando o piano e a bateria da banda, e Toshi nos vocais. A banda tem uma importância tão grande para o rock japonês que é tida como inventora do J-Rock. Influenciado por vertentes do heavy metal, do hard rock, e do glam rock, o X criou um estilo muito próprio, chamado de Visual Kei. Com o visual pesado, ao moldes do KISS, o X Japan logo chamou atenção. Quem eram os garotos que usavam saltos plataformas e faziam um som tão diferente?

De 1982 a 1997, a banda viveu apenas ótimos momentos. Infelizmente, nunca chegaram a sair de Tóquio para um show oficial como banda integra, mas o som do X já era ouvido pelo mundo inteiro, e o sucesso do Visual Kei já tinha chegado às Américas, inclusive ao Brasil.

Em 1997, como uma fenda no tempo, Toshi anuncia sua saída da banda, por não concordar com o estilo da banda, e que sua música é totalmente diferente da linha do X Japan. Existe uma grande suspeita que Toshi sofreu na verdade uma lavagem cerebral por uma seita chamado Masaya, e o guru desta seita, de mesmo nome, convenceu-o que o cantor era apenas um boneco do X. Toshi chegou a declarar que tinha vergonha de seu passado, e que as roupas que usava eram “ridículas” . Para isso realizaram um mega show no TokyoDome chamado “Last Live”. O show foi realizado no Natal, e simplesmente paralisou o Japão por alguns dias, afinal aquele era o fim de toda uma história, uma glória.

Em 1998, o virtuoso Hideto Matsumoto, ou hide (sempre em minúscula, a pedido do próprio guitarrista) faleceu de um infeliz acidente, que na época foi vinculado pela mídia como suicídio do guitarrista; mito este já desmistificado, comprovando então, de fato, que um acidente após mais uma noite alcoolizado levou o mestre das cordas para os céus.

No inicio deste ano, mais precisamente em março, o X se apresentou novamente após mais de uma década, no mesmo TokyoDome, palco do “Last Live”, numa apresentação fantástica, segundo a mídia. Agora o X ensaia uma turnê, e o Brasil, sim o Brasil, está entre os possíveis países onde a turnê deverá passar.

Falemos um pouco então de Toshimitsu Deyama, o Toshi. O garoto, que usava roupas extravagantes, sempre foi muito tímido e calado; Yoshiki, seu melhor amigo desde os tempos de infância, teve de lidar com essa timidez do amigo, que era apenas uma pessoa normal, mas que quando cantava, encantava com sua potente voz, que alcançava 3 oitavas. Em 2008, Toshi retornou com a música, e formou sua banda “Toshi with T-earth” um som dissemelhante que propõem um novo estilo de música: o Eco Hard Rock, músicas com o intuito da conscientização ambiental, com mensagens a favor do meio-ambiente e alertas do que pode estar por vir. E foi com esta banda que Toshi viajou pela primeira vez ao Brasil, dando inicio, então, ao meu diário de bordo.

O show estava marcado para as 16:00 do dia 12 de Outubro, e não precipitei em aceitar o convite de estar na fila no dia 11, um dia antes do grande dia, afinal, iria ver ao vivo Toshi. Então, às 9 horas da manhã parti de Campinas. Por volta do meio-dia, cheguei a São Paulo, em uma temperatura amena para a Terra da Garoa. Galeria do Rock, Liberdade, Av. Paulista, Rua Augusta, Consolação, pontos chaves da tarde mais longa de toda a minha vida. Após 2 metrôs, ônibus, táxi, caminhada, eis que cheguei, às 19h00 no HSBC Hall (antigo Tom Brasil) localizado na Rua Bragança Paulista, para aguardar ansiosamente o show que aconteceria quase 24 horas depois. Obviamente, fomos os primeiros da fila (tomei a liberdade de às vezes colocar-me em 1ª pessoa do plural, afinal não estava sozinho, e sim muito bem acompanhado). Logo que chegamos, fizemos amizade com o segurança do local, Soares, que não acreditava que tínhamos chegado tanto tempo antes para aquele que era um mero “CANTORZINHO JAPONES” em sua visão. Por volta de meia-noite, chegam mais 2 pessoas, um casal muito simpático por sinal, que rendeu-nos horas de conversa. A noite seguiu, e por volta das 5 horas da manhã, quando completávamos as primeiras 10 horas de fila, e as estrelas já se despediam, mais 3 fãs juntaram-se ao grupo que agora já somavam 8. Começava a clarear, os primeiros princípios de luz do dia traziam mais ansiedade, dali pra frente, as horas caminhavam gradativamente mais lentas, a sensação que sentíamos era que quanto mais perto estávamos do show, mais longe ele parecia estar; como um peregrino que percorre um sol escaldante do deserto e não vê outra saída a não ser andar, a nossa era esperar, esperar ansiosamente...

E é isso que você, o leitor fará até semana que vem, aguardar e aguardar. Prometo na semana que vem terminar de contar aquilo que pude sentir em cada momento e cada segundo. Peço perdão novamente àqueles que pouco se interessam por isto, todavia, se a falta de interesse domina seu ser, o X, além da banda que tanto falei neste post, também localizado ali no canto superior de sua tela está apenas te aguardando, se lhe convir clicá-lo. Até semana que vem!
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segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Blade Runner

Excepcionalmente, vou postar algumas críticas de filmes às segundas também, por algum tempo. É que ultimamente tenho visto muuitos filmes (o que é ótimo), então preciso, hmm, desafogar o arquivo.
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A ficção científica é um gênero de observação da sociedade por excelência. Embora possa haver (e há, na maioria dos casos) histórias individuais, muitas vezes o que se sobressai é a caricatura feita da sociedade e projetada num futuro qualquer. Muitas vezes, o mais divertido de um filme deste gênero é achar em que pontos ele acertou e em que pontos errou, e fazer a partir daí reflexões sobre o estado das coisas.

Contudo, há alguns filmes que, a despeito de também terem em si um grande peso da caricatura da civilização, empreendem profundas viagens psicológicas e filosóficas para tentar entender o homem. Um desses casos é Blade Runner, a obra-prima absoluta do diretor Ridley Scott. O filme está, sem dúvida, entre as maiores ficções científicas de todos os tempos, e entre os primeiros colocados. Poucos foram tão completos e diversos quanto Blade Runner.

A primeira questão é a da ambientação: na Los Angeles de 2019, Scott nos mostra sua visão da terra nesse período, visão pioneira que influenciou toda a produção posterior. Se em Star Wars a visão clean que predominava nos filmes de ficção científica já fora quebrada para dar um pouco de verossimilhança ao conjunto, em Blade Runner ela foi totalmente destroçada. A Terra se tornou um lugar absolutamente poluído, onde o sol aparece fraco e o lixo cobre as ruas. A globalização espalhou povos e línguas pelo mundo, então lá vivem chineses (muuuitos chineses), russos, árabes, negros: de modo geral, toda a classe de “imigrantes” notória dos EUA, visto que a classe dominante se mudou para as colônias espaciais. Os poucos ricos que restaram vivem em coberturas luxuosas, enquanto todo o resto permanece em prédios abandonados e na sarjeta.

Outra questão é a do estilo: Scott fez um típico filme noir, com a fotografia cheia de sombras, fumaça e ventiladores girando lentamente, femmes fatales, personagens ambíguos ao extremo (mocinho quase bandido, bandido quase mocinho) e casos policiais para resolver. Ou melhor, quase típico: o fato de se passar no futuro e ser em cores ajuda a dar uma nova visão para o gênero já (à época) clássico.

Encaminhando-nos para a questão temática, o que aparece em primeiro lugar é a discussão da ética científica. Os replicantes, figuras centrais do filme, são robôs orgânicos, seres vivos engendrados geneticamente com o único objetivo de trabalharem como escravos nas mais diversas funções. Porém, para que com o passar do tempo eles não desenvolvessem simulacros de emoções, criou-se uma vida útil para eles: depois de quatro anos, eles morrem, simples assim. Tudo isso é explicado no início do filme, mas no decorrer deste ainda outras informações e fatos serão acrescentados a essa discussão.

Finalmente, temos a questão principal do filme: os questionamentos filosófico-existencialistas. O personagem principal, Deckard (interpretado por Harrison Ford) é um ex -Blade Runner (o tal caçador de andróides do título) que recebe a missão de procurar quatro replicantes amotinados que fugiram de uma colônia de exploração e vieram para a Terra. Esse replicantes, liderados pelo modelo de combate Roy Batty (Rutger Hauer, na atuação da sua vida) querem algo humano, demasiadamente humano para robôs orgânicos como eles: encontrar seu criador (o cientista responsável pelo desenvolvimento dos cérebros replicantes e pela empresa que os... hmmm, qual o termo, fabrica?) e pedir a ele que afaste a Morte, que lhes conceda mais tempo de vida.

Esse ato, porém, acaba somente por apressar o fim. Dois logo são encontrados e mortos por Deckard, deixando o casal restante sozinho. Enquanto isso, o detetive encontra-se com o dono da corporação dos replicantes, o qual pede a ele que submeta sua secretária, Rachel, ao teste usado para definir de alguém é ou não replicante. Deckard descobre que sim, e conta isso a ela, o que desencadeia uma espécie de depressão na mulher que até então acreditava ser... humana.

Mas não seria mesmo ela humana? Para tornar os replicantes “mais humanos que o ser humano”, como diz o lema da corporação, o cientista-chefe, Tyrell, fez implantes de memória em alguns deles, e Rachel, que recebeu memórias da sobrinha do cientista, é a cobaia dessa experiência. Ela foge para a casa de Deckard, senta-se ao piano, começa a tocar, então pára, e diz: “Eu não sei se posso tocar piano ou não. Não sei se as lembranças que tenho das aulas de piano são minhas ou da sobrinha de Tyrell.”

Após algum tempo, Roy consegue chegar até seu criador. Este, porém, diz que nada pode fazer por ele. Mas também, pudera: Roy é mais forte, mais rápido, mais inteligente que seu próprio criador. Ele é quase perfeito (posto que mortal), enquanto seu criador é somente um velho usando óculos fundo de garrafa. Não lhe restam alternativas. Desiludido, Roy dá em Tyrell o beijo da morte, e esmaga seu crânio com as mãos. É a ira, o descontrole, o banho de sangue e paixão desenfreada que antecede uma percepção mais profunda das coisas.

Quando ele chega em seu esconderijo, vê que a outra replicante, sua querida, amada Pris, já foi morta por Deckard. Roy, então, beija os lábios mortos de sua amada, passa o sangue dela em seus lábios, e torna-se um guerreiro lobo, uma espécie de berserker moderno. Assim dá-se mais um estágio de sua evolução: sentiu uma profunda dor na “alma”, ou naquilo de misterioso que havia dentro dele, e regrediu (ou seria evoluiu?) a um estado de selvageria, mas que é mais humano que sua antiga frieza replicante. Enquanto persegue Deckard por um prédio decadente, seu próprio corpo começa a falhar, e então ele experimenta uma nova dor: a dor física profunda, ao enfiar um prego na palma da mão.

A perseguição continua, mas Deckard não desiste. Mesmo com os dedos quebrados, não desiste de escapar, de manter sua vida, mesmo tendo que se agarrar em uma viga de metal a muitos metros do chão. Aí, então, Roy percebe. Sob a chuva negra, o céu escuro e o fedor da poluição, ele percebe o quanto a vida é valorosa. Toma uma pomba nas mãos, ajuda Deckard a subir e se salvar, e senta-se no chão, sorrindo suavemente. Agora, a evolução está completa. Roy tornou-se, se não humano, plenamente vivo, pois está prestes a presenciar uma coisa que todos os seres vivos encaram um dia. Com a chuva caindo em seus lábios, pronuncia palavras que se tornaram antológicas, palavras sublimes : “I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhauser gate. All those moments will be lost in time... like tears in rain... Time to die.” E fecha os olhos, e morre, e a pomba escapa de suas mãos, e vai embora.

E resta Deckard, espantando, surpreso, mas vivo. E resta Rachel, perseguida por ter fugido da Corporação Tyrell. Mas ambos, restando juntos, tem mais chance. Assim, fogem, vão embora, mas não se sabe o que é feito deles. Só uma coisas é certa: o tempo deles um dia passou, e o tempo deles um dia chegou, e eles um dia morreram. Não antes, nem depois do que deveriam, mas na hora. E então, somente então, puderam encontrar seu criador.
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sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Citação de Sexta: Opostos


“Lo que mueve a los mundos es la interacción de las diferencias, sus atracciones y rechazos. La vida es pluralidad. La muerte es uniformidad.”

- Octavio Paz
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quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Lawrence da Arábia

Não dá para confiar em comentários e sinopses publicitários de filmes, especialmente se eles estiverem na capa do DVD. Um exemplo clássico é o DVD de Amarcord, do Fellini, pela Versátil, em que no verso se apresenta uma história totalmente surreal, mas que não tem absolutamente nada a ver com o filme do mestre.

Digo isso porque, no verso do DVD da coleção Superbit de Lawrence da Arábia, consta que a obra é “Pura performance. Puro entretenimento.”, o que, após assistir ao loooonga (que é longo mesmo, mas até que passa rápido), posso chamar de uma gritante inverdade.

Assim é pois, embora Lawrence da Arábia seja uma obra que entretém, e com performances espetaculares, não se resume a isso. Obviamente, ao se analisar a sinopse do filme, é muito possível imaginar que seja mesmo puro espetáculo: um épico sobre a vida de um inglês que ajudou a libertar a Arábia? É claro que esperamos um herói intocável e mitológico, que vem do mundo desenvolvido para tirar os bárbaros das trevas, e no caminho luta em batalhas grandiosas e alcança feitos impressionantes.

As batalhas e os feitos estão lá, mas todo o resto é bem diferente. O diretor David Lean joga com a questão do preconceito, ao mostrar que os ingleses e árabes são muito parecidos, têm problemas parecidos, e talvez somente qualidades diferentes. Ao mesmo tempo, faz um filme de fundo político, criticando a posição das nações imperialistas para com aqueles que os ajudaram.

Mas o grande trunfo do filme é mesmo a atuação e o personagem de Peter O’Toole, um Lawrence da Arábia humano, falho, tangível. Ele pode ser inteligente, corajoso e forte, mas também é por vezes cruel, arrogante, e parcialmente louco e descontrolado. O que se prova, afinal, é que foi uma personalidade intensa, que viveu sua vida de guerreiro e nela fez grandes coisas, mas não foi capaz de superar as seqüelas que ela deixou, e quando a perdeu acabou se isolando.

Apesar de suas quatro horas, é um filme que merece ser visto, e talvez revisto, pois proporciona não só uma grande diversão e espanto, mas também faz pensar um bocado em tudo o que já aconteceu e continua acontecendo lá naquelas terras, no centro exato entre o ocidente e o oriente.
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quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Desanuviar, um vislumbre

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Há tempos que não posto nada de minha produção dita "literária". Assim, aproveito a falta de tempo para colocar aqui um trecho, na verdade o inicial, uma espécie de intróito de meu conto-bizarro Desanuviar, que escrevo há muito tempo. Ainda hei de terminá-lo, em breve espero, mas por ora, não havendo um inteiro, fique o fragmento.
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Cobrem as terras quem cobrem o sol que acobreia o translúcido vitral que acorda o despertar matinal. Imprime-se espelho o narciso reflexa-se no espelho miosótis diáfano diafanando a sombra diáfana do espelho que elas cobrem. No vento e na cor; no tempo e no amor: multiforma.

Ontem mesmo. Quatro, cinco, seis vezes nunca a mesma. Vento, ventania: vaaaagaaaaroooosaaaameeeeentee elas s e s e p a r a m eseunem novamente. Durante anos jogam-se umas contra as outras imaginando novas possibilidades: e se mas e por que seria quando então se nós; Para depois começarem a bordar, a bordar, a bordar.

Elas mesmas não se vêem como você. Por que elas se movem? Por que elas se vêem? Fazendo sombra são assombração. Deitando luz são desilusão. E nós aqui, no meio das sombras delas, correndo movendo suando morrendo, até que, num instante telúrico tudo se encaixa e, beleza das belezas, vem o vento desassociar seu desenho.

Para compreender é preciso estar dentro. Para contemplar é preciso estar fora. Para entender é necessário estar fora. Para enxergar é necessário estar dentro. Para estar dentro é preciso entender. Para estar necessário é necessário contemplar fora. Para ver dentro é preciso vaticinar. Para estar dentro é necessário estar fora. Para contemplar é preciso entender. Para enxergar é preciso compreender. Para compreender enxergar entender contemplar é necessário e preciso estar dentro e fora. Distancie-se e observe. Recolha-se e veja. O entendimento das fôrmas das formas é tão importante quanto a contemplação das formas das fôrmas.

Se não fosse assim, todos seriam poetas. Se fosse diferente, muitos veriam o futuro e viriam do passado. Mas sendo como seja, é compreensível que nem todas as formas sejam apreensíveis pelos meio sinestésicos. Necessário e preciso será que haja uma outra maneira. De enxergar aqui e lá ao mesmo tempo, dando esperanças de que no transcorrer nada se perca. Somente um caminho é o caminho das nuvens. Não o sensível, mas o sensitivo. O de entender que as paixões dos anjos são como as formas das nuvens: tão fugazes quanto perfeitas.
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terça-feira, 7 de outubro de 2008

Um novo blog na blogosfera

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Olá meus queridos, saibam que essa semana tá beem complicada, muito corrida, por isso não teve lista ontem, nem tem coluna do Ciampi hoje, tudo isso só semana que vem! Mas tem outra coisa muito importante pra vocês lerem! Trata-se do blog Nós Mesmos (clique para entrar), criado pelos alunos do colégio ali citado para... bem, acessem e vejam! Está apenas começando mas promete muito.
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segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Dover Beach - Matthew Arnold

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The sea is calm tonight.
The tide is full, the moon lies fair
Upon the straits; on the French coast the light

Gleams and is gone; the cliffs of England stand,

Glimmering and vast, out in the tranquil bay.

Come to the window, sweet is the night air!

Only, from the long line of spray

Where the sea meets the moon-blanched land,

Listen! you hear the grating roar

Of pebbles which the waves draw back, and fling,

At their return, up the high strand,

Begin, and cease, and then again begin,

With tremulous cadence slow, and bring

The eternal note of sadness in.


Sophocles long ago

Heard it on the Ægæan, and it brought

Into his mind the turbid ebb and flow

Of human misery; we

Find also in the sound a thought,

Hearing it by this distant northern sea.


The Sea of Faith

Was once, too, at the full, and round earth’s shore

Lay like the folds of a bright girdle furled.

But now I only hear

Its melancholy, long, withdrawing roar,

Retreating, to the breath

Of the night wind, down the vast edges drear

And naked shingles of the world.


Ah, love, let us be true

To one another! for the world, which seems

To lie before us like a land of dreams,

So various, so beautiful, so new,

Hath really neither joy, nor love, nor light,

Nor certitude, nor peace, nor help for pain;

And we are here as on a darkling plain

Swept with confused alarms of struggle and flight,

Where ignorant armies clash by night."

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sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Citação de Sexta: Oh! admirável mundo novo!


“Durante um breve momento de encantamento, o homem deve ter ficado com a respiração em suspenso em presença desse continente, compelido a uma contemplação estética que ele não compreendia nem desejava, face a face, pela última vez na história, com algo proporcional à sua capacidade de espanto.”

- F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby
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quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Taxi Driver

Poucos conseguiram traduzir tantos sentimentos de época e lugar em um mesmo personagem cinematográfico como a dupla Robert De Niro e Martin Scorsese em Taxi Driver. Travis Bickle, protagonista do filme de 1975, é um acúmulo de tudo que o século XX havia produzido de ruim até então: paranóico, obsessivo, anti-social e reacionário.

O crescimento vertiginoso das cidades e o baby boom americano após a Segunda Guerra haviam produzido nas metrópoles terras da solidão, onde o homem pode se isolar em seu apartamento e sobreviver de maneira quase auto-suficiente (algo que só se agravou com o surgimento da internet e das compras por entrega).

Paralelo a isso, a revolução cultural da década de 60 produziu coisas inesperadas. Com efeito, nem todos os cidadãos eram revolucionários: aliás, só uma minoria era, os universitários e intelectuais insatisfeitos. Fora eles, havia uma multidão de pessoas que não havia lutado por nada mas viram os novos hábitos serem forçados goela abaixo. Se mesmo um autêntico revolucionário como Jack Kerouac (que apesar de tudo era um conservador) terminou a vida isolado e paranóico, quanto mais um membro da plebe, um cidadão que vê impotente tudo que ele conhece mudar diante dos seus olhos.

Assim é Travis Bickle: vindo de uma cidade do interior, vive em Nova Iorque sem amigos ou mesmo conhecidos. Tem insônia e, por isso, resolve virar motorista de táxi, para poder tornar suas noites mais produtivas. Mas, enquanto passeia pelas ruas da cidade, só o que faz é se lamentar pela escória que toma as ruas, as prostitutas, cafetões e viciados que exibem sem pudor suas atitudes mais íntimas e (segundo a visão de Bickle, ao menos) detestáveis. É um homem, como dito acima, paranóico e reacionário, sempre encarando as pessoas com os olhos esbugalhados sem confiar em ninguém.

Em suas andanças, Travis acabará conhecendo duas mulheres, que orientarão suas atitudes: uma delas, Betsy, é uma mulher linda e bem sucedida, que trabalha de campanha de um senador para a presidência. A outra, Íris, é uma menina de 13, 14 anos, prostituta. As duas, cada a uma a seu modo, são produtos da Women’s Lib, a libertação feminina, ocorrida na década de 60. Betsy é a mulher que pode trabalhar e produzir seu próprio sustento, senhora de si e de seu mundo. Íris, por outros lado, é a menina que acha que não precisa estudar, foge de casa, e acaba trabalhando para um cafetão nas ruas de Nova Iorque.

Travis, apesar de sua repulsa pelas conseqüências da revolução sexual, sente uma atração por ambas. Betsy é a sua chance de se integrar ao mundo novaiorquino, uma paixão possível, uma âncora num mundo mais consistente, menos solitário. Já Íris é sua pequena obsessão, um incômodo que aparece aos poucos, vai crescendo, até culminar no apoteótico final. Sua chance de redenção.

Travis tenta, de fato, escolher o lado bom da revolução, mas sua loucura o impede: ele se aproxima de Betsy, ela gosta dele, eles combinam de sair. Mas, ao invés de levá-la a um restaurante ou coisa que o valha, Travis a leva ao cinema pornô, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Transtornada, Betsy o abandona, retirando a muleta em que ele apoiara sua psicose nos últimos tempos.

E a partir daí, essa psicose só cresce: ele decide se tornar um vingador, considera-se o homem solitário de Deus, e sua missão é acabar com a vida do candidato à presidência, aquele mesmo, para quem Betsy trabalhava. Ao mesmo tempo, testa uma aproximação com o lado ruim da revolução, conhece Íris, tenta convencê-la de que a vida que ela leva é ruim, que ela deve ir para casa. Ela diz que ama seu cafetão, que ele é seu marido, mas ele acaba convencendo-a, de certa forma. Promete que dará dinheiro para ela voltar para casa, e que tudo ficará bem.

Mas, apesar desse exterior solidário, um monstro rosna sobre a superfície: o que Travis deseja é a expiação. Assim, faz uma pesada preparação física, compra armas, fala sozinho em frente ao espelho: é tudo parte do treinamento para sua missão. Quando chega o grande dia, raspa o cabelo em forma de moicano, e vai até o comício do senador, decidido a matá-lo. Sua missão, contudo, falha. Ele é lento, não consegue sequer sacar a arma, e acaba tendo que fugir dos seguranças.

Mais uma vez, a história se repete: ele não conseguiu matar o custódio da mulher-símbolo do lado bom da revolução. Decide fazer o mesmo, então, com o custódio do lado-ruim. Numa cena tensa e climática, Travis aborda o cafetão de Íris, o alveja, invade o prédio onde ela prestava seus “serviços”, mata o contador, e termina a carnificina atirando em um cliente. Depois, só o que vemos são a multidão, os policiais e os médicos, até que Travis acorda em um hospital e conhecemos sua vida após o massacre.

O final de Taxi Driver é um dos mais famosos da história do cinema, e pode ser interpretado sob diferentes óticas. Essa característica é um dos motivos que fazem a obra-prima de Scorsese ser considerada um dos maiores filmes de todos os tempos.

Uma nas abordagens é a niilista-redentora. A redenção é um tema comum de Scorsese, e aqui ela aparece quando Travis faz o massacre para se redimir de suas loucuras, e para curar os males que ele achava intoleráveis. É preciso destruir tudo para se construir algo novo. Assim, depois do massacre, ele é louvado como herói pela mídia, alvo dos mais sinceros agradecimentos dos pais de Íris, torna-se amigo dos outros taxistas, e até recebe em seu táxi a visita de Betsy, que parece querer uma reaproximação.

Contudo, essa interpretação um tanto quanto retilínea parece não casar com o resto do filme, pesado e denso. O fato é: como a mídia pode chamar de herói um doido como ele? Poucas horas antes de “salvar” Íris, ele quase se tornara o assassino do próximo presidente dos Estados Unidos. Por sua própria fraqueza (e não força), ele deixou de se tornar um monstro massacrado pela mídia para se tornar o herói da nação, um modelo de cidadão. Além disso, nada garante que debaixo da aparente nova amabilidade de Travis não continue se escondendo um louco psicótico. A linha é muito fina, muito tênue. Quem sabe se, num outro momento de solidão extrema, Travis não tentará novamente matar o presidente?

A última interpretação é a mais sutil de todas, mas tão válida quanto as outras. Postula, simplesmente, que tudo que acontece após o massacre não passa da imaginação e dos desejos de Travis no momento de sua morte. Ele não teria sobrevivido ao massacre, mas morrido ali mesmo e, em seus últimos segundos de vida, imaginado como seria louvado e adorado após tudo aquilo, enfim: mais um sintoma de sua loucura.

Bem: mesmo após falar um bocado, sinto que não dei conta de toda a complexidade do filme. De fato, é uma característica das grandes obras de arte: seus temas são inesgotáveis. Esse texto fica, porém, como um incentivo: para assistir ao filme e produzir novas interpretações, para enriquecer o entendimento não só sobre esse filme em especial, mas sobre o próprio ser humano e o mundo em que vive.
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quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A Roda #2 - Considerações Iniciais






por Lobato Légio

Considerei, quando fui convidado pelo insigne Tuma para escrever neste diário-de-rede, que espécie de compromisso teria de assumir para colocar, a cada quinze dias, minhas palavras à disposição dos outros.

Ponderei, muito calmamente, os dois aspectos mais imediatos dessa abertura. Por um lado, escrever numa coluna permitiria-me expôr algumas idéias que considero essenciais. Mas por outro, demandaria que eu me expusesse muito amplamente, e saísse da cômoda situação em que me encontrava.

De fato, quando Tuma me procurou, encontrou-me em uma espécie de idílio, um exílio auto-imposto a que me submetera para descansar a mente e relaxar o corpo, após tantas jornadas. As situações específicas que levaram a tal exílio não são matéria para esse texto, e portanto ficarão rigorosamente excluídas de seu entrecho.

Basta saber que vivia eu isolado da civilização e dos homens quando, num dia ameno, em que a luz do sol aparece mais branda, tingindo de ouro os campos, e as nuvens se agrupam em largas ilhas de brancura nos ares, e os animais ficam em silêncio para ouvir a própria respiração, apareceu Tuma caminhando calmamente colina acima, acompanhado de um velho da aldeia, que indicou-lhe o caminho e o deixou galgá-lo sozinho.

Já o observava há muitos minutos da janela quando ele alcançou a porta de minha cabana e bateu, três vezes. Curioso, mas calmo, desci vagarosamente as escadas e abri a porta, deixando a luz invadir minha sala e a silhueta de Tuma acertar em cheio meus olhos.

Nos conhecíamos de uma outra visita que ele me fizera, quando eu estava em Veneza, trabalhando no último volume de Crítica e Comentários à Produção Literária Humana e aproveitando o ar do Adriático. Queria autorização para utilizar alguns trechos de minhas obras, a qual dei de bom grado.

Depois, não havíamos nos falado novamente por um bom tempo, até que, no começo desse ano, ele me procurou em minha cabana, no alto daquela colina velha donde se via todas as cercanias.

Apresentou logo o motivo de sua visita: queria que eu cedesse minha “ilustre presença transubstanciada em palavra” (termos dele) para seu recém-criado diário-de-rede, a cada quinze dias. Fui breve, também, em minha resposta: não estava interessado. O resultado das considerações citadas no início deste texto foram os seguintes: a chance de escrever em um diário-de-rede novo e mal visitado não compensava o fato de eu ter de abandonar meu pequeno paraíso.

Assim, Tuma agradeceu por eu haver lhe ouvido, e partiu. Tudo teria permanecido desse modo, e hoje eu não estaria aqui escrevendo este texto, se alguns eventos momentosos não houvessem retirado-me de meu idílio e obrigado-me a vir para o Brasil.

Uma vez com os pés e a alma devidamente postos em terras tupiniquins, logo pensei em entrar em contato com Tuma, mas não foi necessário: ele me procurou no hotel onde estava momentaneamente hospedado e fez, mais uma vez, a mesma proposta.

Neste tempo, porém, não pude recusar: fazendo uma mudança inesperada para um país a respeito do qual só conheço a língua e a cultura? Por que não, afinal, escrever e, assim, tornar-me mais conhecido entre os nativos?

Desse modo, pus-me logo a trabalhar, e Tuma só tem agradecido minha diligência. Eu, porém, é que aproveito o ensejo para agradecê-lo pela oportunidade de estar aqui, enquanto “presença transubstanciada em palavra”, e para avisar a todos de que o que está por vir não foi previsto, ou anunciado, mas será digno das profecias.
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