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- O quê?
Martin Madusky acaba de configurar em seu rosto redondo uma autêntica expressão de surpresa. Little Punk e Doo-Doom, os agentes da Emissora, acabaram de lhe avisar que John B. será o Diretor da Série. Desta vez eles estão acompanhados por um Agente novo, uma moça que só observa, parada que está alguns passos atrás de seus companheiros, e não diz nada.
- Mas eu pensei que haveria vários diretores, The Brotherhood of Heaven and Hell foi dirigido por 3 pessoas diferentes...
- A Emissora quer fazer diferente, dessa vez, disse Little Punk, John B. vai dirigir a Série e te ajudar a decidir o que acontecerá na história.
Esse momento confirma para Martin sua teoria do terceiro encontro, que ele guarda inexpressa na cabeça e sobre a qual não fala a respeito nunca, tomando cuidado na verdade para nem pensar muito nela. A teoria, que ele cria estar sendo agora confirmada na prática, consistia em serem os terceiros encontros com agentes dEles experiência memoráveis, transformadoras, e possivelmente desagradáveis. Acontecera nas filmagens de Massacre Sangrento, acontecera nas filmagens de “The Brotherhood of Heaven and Hell”, e agora acontecia de novo. Depois que Ruther Cardigan lhe ligara, perguntando se já havia escrito um roteiro, e pedindo a ele um exemplar do gênero para dirigir, justificando o pedido com ser ele um admirador de seus contos, Martin, tendo aceito, o acompanhara a uma reunião com um agente dos Eles do Estúdio que iria financiar e distribuir o filme. O segundo encontro se dera durante as filmagens, quando o mesmo agente do primeiro encontro, que Martin tinha a vaga lembrança de chamar-se Xenofonte, aparecera no estúdio para cumprimentar o elenco e a equipe. O terceiro encontro, fatídico, teve lugar quando Xenofonte, junto de um agente inominado, foi até a casa de Madusky para dizer-lhe que o Estúdio não estava gostando das provas do filme, e que seria necessário fazer alterações e cortes. Quando foi chamado para escrever “The Broterhood of Heaven and Hell”, Martin encontrou-se duas vezes com Little Punk e Doo-Doom, em sua casa e depois na sede da Emissora, e um dia enquanto acompanhava as filmagens da Série eles apareceram, acompanhados de um homem velho que não se apresentou, e avisaram a Martin que por questões complexas de orçamento o número de episódios de “The Brotherhood of Heaven and Hell” teria de ser reduzido drasticamente, passando de 18 para 13, o que eliminou um arco inteiro da série e, na visão de Martin, mutilou parte do sentido de sua obra. Ainda assim, ele não ofereceu muita resistência quando Little Punk e Doo-Doom trouxeram a proposta da Emissora para uma nova Série, dessa vez longa, que daria continuidade ao sucesso alcançado pela última empreitada televisiva de Madusky. Depois de feito o convite, Martin se encontrara com Little Punk na sede da Emissora, para apresentar suas idéias para a Série, e agora, na terceira vez em que encontrava um ou mais agentes desde o fim de seu último trabalho, eles lhe vinham com aquela notícia.
- Mas o que vocês estão dizendo! John B. é como um herói para mim, eu já vi todos os seus filmes várias vezes, vai ser uma honra trabalhar com ele!
E Little Punk respondeu simplesmente:
- Muito bem.
Recebida a notícia, Martin trabalhou com afinco para finalizar as estruturas dos episódios daquela que seria a Primeira Temporada da Série, e com especial esmero se debruçou sobre o Piloto para transformá-lo em algo memorável, capaz de atrair atenção e audiência. Eles haviam decidido transmitir a Série às quartas-feiras, no horário das nove da noite, e embora não estivessem fazendo grandes investimentos técnicos na produção, tinham trazido para trabalhar na Série grandes atores e atrizes, assim como atores e atrizes famosos. O eminente Roy Buffalo, a talentosa Tina Tornado, o chamativo Justin Case, a indescritível Lia Lispeck, assim como os grandes e premiados Kurt Belmondo e Samantha Sugarcane compunham o elenco principal da Série, o sexteto central ao redor do qual os acontecimentos e demais personagens rodariam.
A Série seria gravada nos novos estúdios perto de Wild Sierra, com o apoio da equipe “de luxo” da Emissora, os co-roteiristas Ringo Gillespie, Giuliano Ellington, Clint Parker e Django Reinhardt, vulgo “Quarteto”, o requisitado cenografista Johnny Tarzan, o cinematografista Alfie Figaro, e muitos outros membros dedicados do Esquadrão de Qualidade da NGP. Martin estava muito feliz, portanto, quando chegou ao estúdio naquele que seria o primeiro dia de gravações da Série. Estava sem óculos e até mesmo sorria discretamente por trás da barba. Quando entrou no estúdio, viu que um grupo de pessoas estava reunida diante dos cenários, e não davam o menor indício de estarem trabalhando. Uma das pessoas, percebendo a presença de Martin, veio em sua direção e, sem dizer nada, lhe entregou um bilhete dobrado. Do lado de fora lia-se “Para Martin Madusky”, e ao abri-lo o roteirista deparou-se com uma mensagem imponente, escrita numa letra de mão que bem poderia ter sido encontrada nas ruínas de alguma civilização perdida, e que levava adiante sua teoria dos três encontros, pois parecia constituir, em sua impessoalidade, um encontro mais verdadeiro com Eles do que todos os que tivera até então por meio de Seus agentes:
“GRAVAÇÕES SUSPENSAS ATÉ SEGUNDA ORDEM.
TEMOS UM PROBLEMA:
QUAL SERÁ O NOME DA SÉRIE?”
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quarta-feira, 31 de março de 2010
quarta-feira, 24 de março de 2010
A Série - S01E14
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Bem, como eu estava dizendo, o convite para dirigir a Série me pegou completamente desprevenido, eu estava na prática aposentado e, a despeito dos meus sonhos mais dolorosamente desgastados, não dirigira nada por muito tempo. Meus dias se passavam dentro e fora do trailer, eu cuidava da minha pequena plantação pessoal de artigos vegetais e herbais, principalmente de manhã, e depois ficava brincando com o Tweedle-Dee, meu hamster de estimação, que eu ganhei do meu filho junto com outro, que se chamava Tweedle-Dum, mas esse morreu intoxicado depois de comer o que não devia. Se bem que, considerando o que ele comeu, eu não acho que seja certo usar a palavra intoxicado. Melhor é dizer que ele foi às nuvens rápido demais, e acabou ficando por lá.
Quando ele se cansava eu botava ele de lado, cochilava um pouco, e ficava vendo TV o resto do tempo. Minha preferência sempre foram os filmes, mas eu gostava muito também de assistir aos programas de televendas. As pessoas costumam mudar de canal quando começam esses programas, mas eles não sabem o que estão perdendo. Considero esses vídeos verdadeiras obras de arte utópicas, que meu Tomás Mórus não hesitaria em colocar lado a lado com sua obra. Aliás, acho mesmo que, se ele vivesse hoje, incluiria todos aqueles produtos no cotidiano da ilha, e se inspiraria nos protagonistas das pequenas histórias que compõem os vídeos para definir seu modelo de cidadão feliz de Lugar Nenhum. Em sua obra atualizada os utopianos poderiam cultuar o deus que quisessem, usariam roupas simples e práticas e teriam mangueiras fáceis de enrolar, escadas dobráveis com mil alterações possíveis, máquinas capazes de produzir os refrescos mais sofisticados e vigorosos, fornos que agem como se fossem chefs, produzindo comidas deliciosas facilmente, e equipamentos de exercício que transformariam a todos em deuses saudáveis, e outras tecnologias semelhantes. Tenho sonhos secretos em que eu sou uma daquelas pessoas que vivem nesses vídeos, não um ator, mas um ser real, num mundo real, e lá eu sou feliz.
Então, num desses dias de far niente e suaves empreendimentos filosóficos, Eles apareceram na minha porta. Claro que não eram “Eles”, e claro que não era mesmo uma porta, no sentido mais usual dessa palavra, embora fosse tecnicamente uma porta sim, mas de um trailer. Quando se bate numa dessas belezas elas tremem bastante, e por vezes também o trailer, tudo depende da quantidade de coisas que tem lá dentro, e da força com que batem. Eles não bateram muito forte, talvez por não serem “Eles”, e estarem tentando fazer um contato pacífico. Não vou dizer que não fiquei surpreso. Quando os vi pela janela, corri para pegar minha espingarda, mas me lembrei que não tinha uma, então acabei paralisado. Na verdade, não conhecia aqueles Agentes, mas é claro que só poderiam ser isso, só poderiam ser “Eles”, um homem alto, de pele escura, os cabelos crespos grandes enrolados por uma faixa colorida, uma calça boca de sino e uma camisa brilhante por cima, ao lado de um homem muito branco e muito baixo, quase totalmente careca, que mais parecia uma criança usando o terno do pai, o que mais poderiam ser, senão “Eles”? E o que mais poderia eu fazer senão entrar em pânico, já que da última vez que “Eles” tinham se mostrado para mim eu acabei preso, e desde então eles não haviam parado de me observar, atentamente, pacientemente, secretamente, sem, no entanto, interferir? Foram cheios de angústia, aqueles momentos de indecisão, mas por fim fui demovido da paralisia pelas batidas na porta, que haviam se tornado mais fortes, e quando finalmente a abri para eles e para o dia pensando Alea jacta est nada mais pude dizer senão “Bom dia, pois não?” com um sorriso forçado que eles rapidamente perceberam ser falso.
Fiquei indeciso sobre chamá-los ou não para entrar, mas eles estavam suando mais que eu sob aquele sol, e eu estava suando muito, então pensei que já tinha aberto a porta para eles, convidá-los para entrar não pioraria as coisas. Eles se apresentaram, o negro se chamava Little Punk e o baixinho Doo-Doom, e vinham em nome de uma emissora, da Emissora, como a chamo agora, NGP, olhem que grande coincidência. A Emissora estava produzindo uma nova série escrita por um desses autores da nova geração, todos ótimas figuras para aparecer em capas de revistas, embora eu em geral desconfie da capacidade deles de escrever o que quer que seja, e tinha interesse em que eu dirigisse a Série. Mesmo estando a tanto tempo afastado eu tinha consciência de que na TV os diretores mudam o tempo todo, e têm pouca influência sobre o que acontece na história, mas eles me garantiram que estavam fazendo algo diferente, que eu dirigiria todos os episódios, e poderia discutir os rumos e os temas da série com seu autor, que aparentemente gostava muito de mim.
Fiquei tremendamente inseguro. Por que diabos eles estavam me oferecendo isso agora? Alguns anos antes, eu teria pedido mais tempo para pensar, e descobrir o que diabos estava acontecendo, ou mesmo recusado na hora, mas... Tempus longum vitiat lapidem. O que eu teria a perder? Continuar preso naquele trailer não me livraria deles, nada livraria. E mais, aquela era minha oportunidade de voltar ao coração da Coisa, e quem sabe reparar tudo que acontecera quando de lá eu fora expulso. Por isso, mesmo ainda inseguro sobre como eu deveria agir, aceitei dirigir a Série para a Emissora.
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Bem, como eu estava dizendo, o convite para dirigir a Série me pegou completamente desprevenido, eu estava na prática aposentado e, a despeito dos meus sonhos mais dolorosamente desgastados, não dirigira nada por muito tempo. Meus dias se passavam dentro e fora do trailer, eu cuidava da minha pequena plantação pessoal de artigos vegetais e herbais, principalmente de manhã, e depois ficava brincando com o Tweedle-Dee, meu hamster de estimação, que eu ganhei do meu filho junto com outro, que se chamava Tweedle-Dum, mas esse morreu intoxicado depois de comer o que não devia. Se bem que, considerando o que ele comeu, eu não acho que seja certo usar a palavra intoxicado. Melhor é dizer que ele foi às nuvens rápido demais, e acabou ficando por lá.
Quando ele se cansava eu botava ele de lado, cochilava um pouco, e ficava vendo TV o resto do tempo. Minha preferência sempre foram os filmes, mas eu gostava muito também de assistir aos programas de televendas. As pessoas costumam mudar de canal quando começam esses programas, mas eles não sabem o que estão perdendo. Considero esses vídeos verdadeiras obras de arte utópicas, que meu Tomás Mórus não hesitaria em colocar lado a lado com sua obra. Aliás, acho mesmo que, se ele vivesse hoje, incluiria todos aqueles produtos no cotidiano da ilha, e se inspiraria nos protagonistas das pequenas histórias que compõem os vídeos para definir seu modelo de cidadão feliz de Lugar Nenhum. Em sua obra atualizada os utopianos poderiam cultuar o deus que quisessem, usariam roupas simples e práticas e teriam mangueiras fáceis de enrolar, escadas dobráveis com mil alterações possíveis, máquinas capazes de produzir os refrescos mais sofisticados e vigorosos, fornos que agem como se fossem chefs, produzindo comidas deliciosas facilmente, e equipamentos de exercício que transformariam a todos em deuses saudáveis, e outras tecnologias semelhantes. Tenho sonhos secretos em que eu sou uma daquelas pessoas que vivem nesses vídeos, não um ator, mas um ser real, num mundo real, e lá eu sou feliz.
Então, num desses dias de far niente e suaves empreendimentos filosóficos, Eles apareceram na minha porta. Claro que não eram “Eles”, e claro que não era mesmo uma porta, no sentido mais usual dessa palavra, embora fosse tecnicamente uma porta sim, mas de um trailer. Quando se bate numa dessas belezas elas tremem bastante, e por vezes também o trailer, tudo depende da quantidade de coisas que tem lá dentro, e da força com que batem. Eles não bateram muito forte, talvez por não serem “Eles”, e estarem tentando fazer um contato pacífico. Não vou dizer que não fiquei surpreso. Quando os vi pela janela, corri para pegar minha espingarda, mas me lembrei que não tinha uma, então acabei paralisado. Na verdade, não conhecia aqueles Agentes, mas é claro que só poderiam ser isso, só poderiam ser “Eles”, um homem alto, de pele escura, os cabelos crespos grandes enrolados por uma faixa colorida, uma calça boca de sino e uma camisa brilhante por cima, ao lado de um homem muito branco e muito baixo, quase totalmente careca, que mais parecia uma criança usando o terno do pai, o que mais poderiam ser, senão “Eles”? E o que mais poderia eu fazer senão entrar em pânico, já que da última vez que “Eles” tinham se mostrado para mim eu acabei preso, e desde então eles não haviam parado de me observar, atentamente, pacientemente, secretamente, sem, no entanto, interferir? Foram cheios de angústia, aqueles momentos de indecisão, mas por fim fui demovido da paralisia pelas batidas na porta, que haviam se tornado mais fortes, e quando finalmente a abri para eles e para o dia pensando Alea jacta est nada mais pude dizer senão “Bom dia, pois não?” com um sorriso forçado que eles rapidamente perceberam ser falso.
Fiquei indeciso sobre chamá-los ou não para entrar, mas eles estavam suando mais que eu sob aquele sol, e eu estava suando muito, então pensei que já tinha aberto a porta para eles, convidá-los para entrar não pioraria as coisas. Eles se apresentaram, o negro se chamava Little Punk e o baixinho Doo-Doom, e vinham em nome de uma emissora, da Emissora, como a chamo agora, NGP, olhem que grande coincidência. A Emissora estava produzindo uma nova série escrita por um desses autores da nova geração, todos ótimas figuras para aparecer em capas de revistas, embora eu em geral desconfie da capacidade deles de escrever o que quer que seja, e tinha interesse em que eu dirigisse a Série. Mesmo estando a tanto tempo afastado eu tinha consciência de que na TV os diretores mudam o tempo todo, e têm pouca influência sobre o que acontece na história, mas eles me garantiram que estavam fazendo algo diferente, que eu dirigiria todos os episódios, e poderia discutir os rumos e os temas da série com seu autor, que aparentemente gostava muito de mim.
Fiquei tremendamente inseguro. Por que diabos eles estavam me oferecendo isso agora? Alguns anos antes, eu teria pedido mais tempo para pensar, e descobrir o que diabos estava acontecendo, ou mesmo recusado na hora, mas... Tempus longum vitiat lapidem. O que eu teria a perder? Continuar preso naquele trailer não me livraria deles, nada livraria. E mais, aquela era minha oportunidade de voltar ao coração da Coisa, e quem sabe reparar tudo que acontecera quando de lá eu fora expulso. Por isso, mesmo ainda inseguro sobre como eu deveria agir, aceitei dirigir a Série para a Emissora.
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quarta-feira, 17 de março de 2010
A Série - S01E13
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Quando Eles me convidaram para dirigir a Série eu já estava há muitos anos no que os meus inimigos chamam de ostracismo, mas na verdade era um período sabático. É engraçado, na verdade, ninguém dava muita bola pra mim na época, eu estava morando há dois anos num trailer cercado de arbustos secos e poeira, um verdadeiro Martin Epidimn em Bando de Forasteiros, vivendo de uns parcos direitos autorais pelas exibições dos meus filmes na TV e dos dinheiros que meus filhos mandavam de vez em quando.
Uma vez por mês, mais ou menos, eu recebia uma carta de um fã, geralmente uma longa digressão que dissecava os meus filmes um por um, decifrando os significados de cada fotograma. Durante muito tempo eu esperava ansioso por essas cartas, mas depois admito que adquiri certo enfado em relação a elas. Não porque elas tenham se tornado repetitivas, mas porque haviam perdido o brilho inicial. É como se meus espectadores houvessem se tornado mais técnicos e menos criativos, e não existe nada mais chato que alguém sem criatividade. Felizmente eu encontrei um ótimo uso para essas cartas sem brilho, de modo que seus aspectos materiais viraram cinzas, ou, na melhor das hipóteses, guimbas, se é que vocês me entendem (quando afirmei que meu trailer era cercado de arbustos secos... bem, não eram só arbustos que eu tinha plantados ali).
Apesar de tudo, vez ou outra aparecia uma carta com algum conteúdo interessante, sinal de que nem tudo está perdido (desconfio que os autores dessas digressões brilhantes sejam membros da minha tribo de enevoados). Essas, se não preservava integralmente, ao menos copiava os melhores trechos, trechos que guardo com muito carinho. Vejam esse sobre Marijuana dos Anjos.
“Parece-me evidente, sire, que a cena da possessão em ‘Marijuana’ é uma representação das teorias comunistas, e em especial da URSS, sendo invadidas por parasitas e corroída por dentro pelo demônio do capitalismo e do liberalismo. Isso fica patente quando vossa excelência das Artes mostra Mary sangrando, e alterna sua agonia com uma longa sequência de uma tela inicialmente tomada pela cor vermelha que, no entanto, vai se retraindo, enquanto imagens de uma águia e de homens gordos aparecem no espaço de somente alguns fotogramas, não ficando por mais que um segundo diante dos nossos olhos.”
Esse outro, que escreveu sobre Folhas de Erva, me trata por Tio, o que estranhei a princípio mas terminei por apreciar.
“Tio, seus filmes são maravilhosos eles são foda eles mexem com a cabeça da gente. Eu vi um pedaço de um uma noite a TV tava ligada eu tava chapado e vi aquele monte de imagens sinistras e nossa, quando eu descobri que filme era aquele quem tinha feito e tudo eu fui atrás o mais logo que eu pude e hoje eu já vi mais de cinco filmes de você. Eu adoro as cenas do seu filme os atores as cores as músicas eu adoro o jeito como você faz as coisas as cenas é tudo tão lindo tem uma que é a mais linda de todas e eu entendo tudo que ela diz ela diz tanta coisa é lindo. O filme acho que chama Folhas de Erva tem tanta poesia e uma parte o cara vai passando e cantando na rua você sabe qual que é e ele vai cantando baixinho mas as pessoas que tão na rua também percebem que ele ta cantando e aquilo meio que muda a vida delas e depois quando as pessoas se reúnem no campo para construir o monumento aquelas pessoas são as mesmas pessoas que ouviram o cara cantando na rua e é tão bonito ver aquilo chapado as pessoas cantando e se movendo e trabalhando e as cores é lindo Tio, é lindo tiozinho eu já vi cinco filmes de você e vou ver todos mas eu quero que você faça mais porque quando acabar eu vou ficar triste e mesmo podendo ver de novo eu quero ver mais filmes seus que você fez hoje porque eles são todos lindos, lindos.”
Por enquanto fiquemos com somente mais um.
“John B. (por que você usa esse nome, afinal?), eu adoro seus filmes, eles são para mim o ápice do cinema. Não tenho muito amigos que te conhecem mas os que te conhecem caçoam de mim por te admirar, eles dizem que seus filmes são involuntariamente engraçados, que são filmes B e até que seu nome é B, e eles dizem que seus filmes são puro trash. Mas eu sei que eles são do jeito que são porque você é desse jeito, e você melhor do que ninguém conseguiu se expressar nos seus filmes, você mais do que ninguém foi honesto e abriu a alma. Seus filmes são terror, comédia, psicodélicos, existencialistas, pura poesia é isso não é? Seus filmes são você em celulóide, é isso não é?”
Infelizmente, nunca tive condições de responder a essas cartas, o que deve ter deixado meus admiradores um pouco desapontados.
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Quando Eles me convidaram para dirigir a Série eu já estava há muitos anos no que os meus inimigos chamam de ostracismo, mas na verdade era um período sabático. É engraçado, na verdade, ninguém dava muita bola pra mim na época, eu estava morando há dois anos num trailer cercado de arbustos secos e poeira, um verdadeiro Martin Epidimn em Bando de Forasteiros, vivendo de uns parcos direitos autorais pelas exibições dos meus filmes na TV e dos dinheiros que meus filhos mandavam de vez em quando.
Uma vez por mês, mais ou menos, eu recebia uma carta de um fã, geralmente uma longa digressão que dissecava os meus filmes um por um, decifrando os significados de cada fotograma. Durante muito tempo eu esperava ansioso por essas cartas, mas depois admito que adquiri certo enfado em relação a elas. Não porque elas tenham se tornado repetitivas, mas porque haviam perdido o brilho inicial. É como se meus espectadores houvessem se tornado mais técnicos e menos criativos, e não existe nada mais chato que alguém sem criatividade. Felizmente eu encontrei um ótimo uso para essas cartas sem brilho, de modo que seus aspectos materiais viraram cinzas, ou, na melhor das hipóteses, guimbas, se é que vocês me entendem (quando afirmei que meu trailer era cercado de arbustos secos... bem, não eram só arbustos que eu tinha plantados ali).
Apesar de tudo, vez ou outra aparecia uma carta com algum conteúdo interessante, sinal de que nem tudo está perdido (desconfio que os autores dessas digressões brilhantes sejam membros da minha tribo de enevoados). Essas, se não preservava integralmente, ao menos copiava os melhores trechos, trechos que guardo com muito carinho. Vejam esse sobre Marijuana dos Anjos.
“Parece-me evidente, sire, que a cena da possessão em ‘Marijuana’ é uma representação das teorias comunistas, e em especial da URSS, sendo invadidas por parasitas e corroída por dentro pelo demônio do capitalismo e do liberalismo. Isso fica patente quando vossa excelência das Artes mostra Mary sangrando, e alterna sua agonia com uma longa sequência de uma tela inicialmente tomada pela cor vermelha que, no entanto, vai se retraindo, enquanto imagens de uma águia e de homens gordos aparecem no espaço de somente alguns fotogramas, não ficando por mais que um segundo diante dos nossos olhos.”
Esse outro, que escreveu sobre Folhas de Erva, me trata por Tio, o que estranhei a princípio mas terminei por apreciar.
“Tio, seus filmes são maravilhosos eles são foda eles mexem com a cabeça da gente. Eu vi um pedaço de um uma noite a TV tava ligada eu tava chapado e vi aquele monte de imagens sinistras e nossa, quando eu descobri que filme era aquele quem tinha feito e tudo eu fui atrás o mais logo que eu pude e hoje eu já vi mais de cinco filmes de você. Eu adoro as cenas do seu filme os atores as cores as músicas eu adoro o jeito como você faz as coisas as cenas é tudo tão lindo tem uma que é a mais linda de todas e eu entendo tudo que ela diz ela diz tanta coisa é lindo. O filme acho que chama Folhas de Erva tem tanta poesia e uma parte o cara vai passando e cantando na rua você sabe qual que é e ele vai cantando baixinho mas as pessoas que tão na rua também percebem que ele ta cantando e aquilo meio que muda a vida delas e depois quando as pessoas se reúnem no campo para construir o monumento aquelas pessoas são as mesmas pessoas que ouviram o cara cantando na rua e é tão bonito ver aquilo chapado as pessoas cantando e se movendo e trabalhando e as cores é lindo Tio, é lindo tiozinho eu já vi cinco filmes de você e vou ver todos mas eu quero que você faça mais porque quando acabar eu vou ficar triste e mesmo podendo ver de novo eu quero ver mais filmes seus que você fez hoje porque eles são todos lindos, lindos.”
Por enquanto fiquemos com somente mais um.
“John B. (por que você usa esse nome, afinal?), eu adoro seus filmes, eles são para mim o ápice do cinema. Não tenho muito amigos que te conhecem mas os que te conhecem caçoam de mim por te admirar, eles dizem que seus filmes são involuntariamente engraçados, que são filmes B e até que seu nome é B, e eles dizem que seus filmes são puro trash. Mas eu sei que eles são do jeito que são porque você é desse jeito, e você melhor do que ninguém conseguiu se expressar nos seus filmes, você mais do que ninguém foi honesto e abriu a alma. Seus filmes são terror, comédia, psicodélicos, existencialistas, pura poesia é isso não é? Seus filmes são você em celulóide, é isso não é?”
Infelizmente, nunca tive condições de responder a essas cartas, o que deve ter deixado meus admiradores um pouco desapontados.
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sábado, 13 de março de 2010
A Roda #19 - Panorama do Vale de Legium, parte 8
por Lobato Légio
A floresta: esperas contemplá-la por completo? Esperas poder extrair dela cada folha, cada raio de sol que rasgando a malha dos galhos atinge o solo? Ainda que a percorresses por todos os lados, e visses cada mísero ponto, ainda assim não a teria visto por inteiro, pois teria visto cada ponto em um momento diferente no tempo, e não concomitantemente, como exige a visão plena das coisas. Somente se pudesses ver cada pedaço da floresta no mesmo instante, cada mínimo recorte de suas infinitas imagens na mesma mínima fatia de tempo decorrido, somente aí poderias ter a visão do conjunto, e então ver o que hoje não vês, e entender o que hoje não entendes.
Ouça, pois, aquilo que te digo, e aprende, por minhas palavras, o que não pode contemplar frente a frente. Por entre as árvores e os arbustos, sobre as ervas e o musgo colados ao solo, abaixo da luz e da sombra que céu, sol e galhos formam, pela floresta passam dois caminhos. Entrando-se nela por onde seja, qualquer uma das aberturas que pontuam sua muralha, e percorrendo a trilha tão naturalmente formada que se coloca sob teus pés, tu viajante logo encontrarás uma árvore enorme à tua frente e bifurcando-se violentamente a partir do caminho em que seguias duas novas trilhas se formarão, desviando da árvore e seguindo cada uma em uma direção. Invariavelmente, ao deparar-se com essa árvore, estarás seguindo caminho para o Norte, e o caminho da esquerda portanto o levará do leste para o oeste, seguindo o Sol, enquanto o da direita o levará do oeste para o leste, perseguindo Seu retorno.
Pises no caminho da esquerda, e nele continuando verás muito. Raios de sol penetrando o dossel das copas tocarão os teus pés durante o caminho, e quando parares para beber água ou repousar à sombra, encontrarás um recanto fresco e silencioso. Verás pequenas feras brincando e brigando, e predadores perseguindo suas presas, e verás animais dependurados no galhos que jogarão frutas sobre ti, mas não te acertarão, e cães se alimentando de pequenas aves. Se chover, a chuva encharcará teus ombros, mas também poderás buscar abrigo sob alguma árvore frondosa. Será um caminho cansativo para ti, o da esquerda, haverá momentos de descanso, mas ao fim da jornada invariavelmente estarás tomado pelo mais violento desejo de repousar, o mais quanto for possível. Saindo da floresta, ao fim do caminho, já estará de noite, ou talvez na hora mágica em que o Sol se encaminha para o Outro Mundo. Olharás para trás em direção à floresta e poderás ver que poucas lembranças restarão a ti daquele lugar, mas que a caminhada que lá empreendestes foi, afinal, agradável.
Mas podes também, num gesto simples de escolha como qualquer outro, optar pelo caminho da direita, e ir em direção ao nascer do Sol enquanto o astro te ultrapassa e toma posição às tuas costas.
Se fizerdes isso, encontrarás um outro caminho, totalmente diverso do que encontraria seguindo na outra direção. Nesse caminho, pouco verás do Sol, e talvez o tempo todo que nele caminhardes seja Noite. O mais completo silêncio te acompanhará nesse caminho, quando pensardes ter ouvido algo nada mais será que teu próprio passo. Nesse caminho não poderás parar para comer, pois nele não há árvores com frutos ou animais para te alimentar; não poderás parar para descansar, pois o chão é duro e não há recôncavo onde se aconchegar; não poderás também tornar para trás, pois depois que tu passas o caminho se fecha. Carregarás por todo o caminho um peso no coração, e em cada passo que deres ele se tornará mais pesado, ficarás possesso por uma angústia que não tem nome, uma sensação que não se descreve e da qual não se deve falar. Ao fim do caminho, já terás quase te esquecido de quem és, e de para onde estavas indo, mas ultrapassando os últimos troncos na fronteira da floresta com o campo a seguir serás ofuscado pelo Sol que, tendo dado a volta no Mundo, talvez muitas vezes enquanto estavas entre as árvores, torna a aparecer no horizonte, surgindo do leste para retomar seu caminho tantas vezes repetido. Nesse ofuscar, a escuridão que lhe pesava na alma se tornará subitamente luz, uma brancura por um instante sem sentido, e então te sentirás muitas vezes reconfortado, tomado de uma ardência suave no peito, e continuará seu caminho. Não poderás olhar para trás, pois assim se procede nos lugares infernais, e não esquecerás jamais do que viveste lá dentro, ainda que não possas dizê-lo em palavras.
São tais os caminhos à direita e à esquerda na floresta, e para ti os descrevo, para que tenhas conhecimentos e possas escolher com sabedoria. E dois são os caminhos muitas vezes a nós descritos, mas há uma verdade que poucos ousam falar, e ela reside em que, por mais diversos e definidos sejam esses dois caminhos que sempre se apresentam, há um terceiro caminho. Aquele que, não se deixando vencer pelas trilhas que se apresentam, contorna a grande árvore, descobre que além dela a trilha que até então percorrera continua em frente.
Essa trilha sem demora leva a uma pequena clareira, sobre a qual brilham estrelas, fixas no firmamento. À frente do que vem pela trilha se ergue uma pedra, e sobre ela, imenso, erguido sobre as patas dianteiras, assentado sobre as traseiras, rajado violentamente de laranja e negro, um Deus-Tigre. Tu, paralisado impotente sobre tuas duas míseras pernas, o verás erguer-se de todo e encarar-te, mostrando os dentes. E verás em tua imaginação a vida daqueles que foram até ali antes de ti, e os verá sendo devorados pelo monstro. E o Deus-Tigre fechará a boca, e continuará a te encarar, sem rugir, e em seus olhos tu verás, finalmente, o que fora lá buscar. E a floresta se revelará a ti de uma vez por todas, e poderás contemplá-la, cada ramo e raiz, e verás o incêndio que por ela se alastra, e o que ali dentro reside. E nesse momento, olhos fixos nos dele, finalmente alcançarás o entendimento, e então não haverá mais nada para ver.
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quarta-feira, 10 de março de 2010
A Série - S01E12
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Madusky, o imbecil, ataca novamente. O maldito tentou substituir o Quarteto, arranjar novos co-roteiristas, mas a emissora não deixou ele fazer isso. Que bom, que bom, que ótimo que ele não teve seus caprichos atendidos! O Quarteto tem muito prestígio com a emissora, eles escreveram os maiores sucessos televisivos dos últimos anos, entregam os textos na data certa, não têm frescuras. Ao contrário do Madusky e de sua pança, a dupla dinâmica.
Ainda me pergunto como me deixei enredar nesse projeto. Quando fui chamado, eu não estava de mãos vazias. Eu tinha uma proposta de Travis Armedio para trabalhar num filme de época, do século XVIII, com um orçamento alto pra cacete. Eu tinha sido convidado por Sidney Lawton em pessoa para fazer os cenários de um filme dele passado no futuro, algo como a mesma coisa que hoje mas com pequenos detalhes diferentes, e eu teria TODA A LIBERDADE para criar esses detalhes, toda a liberdade para dar a esse mundo uma cara parecida com a minha. Eu podia até mesmo tentar entrar de uma vez por todas na carreira de diretor, com meu velho projeto passado na Paris da belle époque, que eu amo tanto. Mas não, eu me deixei levar por razões sentimentais e pelas promessas deles, e agora rumino a presença repulsiva de Madusky. Malditos.
Recebi um convite por escrito pelo correio para comparecer a um coquetel na sede da emissora, em Wild Sierra, mas o convite não dizia qual era o objetivo do evento. Normalmente esses coquetéis servem para a emissora fazer uma triagem entre os membros da classe que não são seus funcionários sobre como eles estão se sentindo em relação a ela e à indústria, e por isso não me preocupei muito em me informar. Quando eu cheguei lá vi que esse era um coquetel diferente, pois não só havia relativamente pouca gente como estava cheio de funcionários da emissora, por exemplo meu velho amigo Charlie, que há anos é chefe do pessoal da iluminação, e o Quarteto. Não demorei a descobrir que a emissora tinha feito aquele coquetel para apresentar seu próximo grande projeto à equipe que trabalharia nele. Eles falaram desse jeito mesmo, apareceu um dos famosos porta-vozes, um que eu não conhecia, totalmente careca vestindo um terno bem recortado, como sempre, e começou a falar ao microfone (normalmente nesses eventos não tinha microfone, os contatos eram feitos somente na conversa), dizendo que uma nova série começaria a ser gravada para ser lançada no horário nobre, e que todos nós ajudaríamos a construir o sucesso dela, isso que muitos de nós ali sequer éramos funcionários da emissora e a maioria não fazia idéia do que estava acontecendo.
Só depois surgiu o habitual exército de homens e mulher boa-pinta, todos quarentões, e começaram a formar rodinhas, a conversar pessoalmente com quem estava ali. Comigo veio falar um que eu já conhecia, seu nome era Júlio ou Julien, ele estava vestindo uma jaqueta cor de vinho e uma camisa aberta no peito, e começou a falar sem parar, muito rápido, sobre como a série era interessante, sobre como seu criador era revolucionário, e sobre como eu seria bem remunerado por ela. Eu tentei explicar que não podia, que já tinha dois convites importantes de trabalho, e estava pensando em investir num projeto mais pessoal, mas ele parecia não me dar ouvidos. Até que veio o golpe de misericórdia. O maldito falou a única coisa que poderia me convencer de não aceitar algum dos convites que estavam pendentes e abandonar meu sonho pessoal. Ele disse que o diretor da série, diretor e co-autor, responsável pelo desenvolvimento e direção de TODOS os episódios da série, seria o grande diretor cult dos anos 70, John B. Quando ele disse aquilo, eu congelei. Minha paralisia foi tão súbita que até mesmo ele parou de tagarelar e me perguntou se eu estava bem. Eu respondi que sim e perguntei se ele estava falando sério, se O John B., John B., pensei ao mesmo tempo, o mago da minha infância, o profeta da minha adolescência, meu guia e pastor de todas as horas, fazendo suas magias e dizendo a verdade e guiando-me os passos através das imagens que criara, iria dirigir essa série integralmente para a emissora. E ele disse que sim. O maldito disse que sim e eu, completamente ignorante do que eu teria pela frente, ignorante da desgraça que Martin Madusky seria para mim, desisti de dois projetos promissores e temporariamente do meu próprio sonho e disse que Sim, também, eu aceito.
Maldito Julien!
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Madusky, o imbecil, ataca novamente. O maldito tentou substituir o Quarteto, arranjar novos co-roteiristas, mas a emissora não deixou ele fazer isso. Que bom, que bom, que ótimo que ele não teve seus caprichos atendidos! O Quarteto tem muito prestígio com a emissora, eles escreveram os maiores sucessos televisivos dos últimos anos, entregam os textos na data certa, não têm frescuras. Ao contrário do Madusky e de sua pança, a dupla dinâmica.
Ainda me pergunto como me deixei enredar nesse projeto. Quando fui chamado, eu não estava de mãos vazias. Eu tinha uma proposta de Travis Armedio para trabalhar num filme de época, do século XVIII, com um orçamento alto pra cacete. Eu tinha sido convidado por Sidney Lawton em pessoa para fazer os cenários de um filme dele passado no futuro, algo como a mesma coisa que hoje mas com pequenos detalhes diferentes, e eu teria TODA A LIBERDADE para criar esses detalhes, toda a liberdade para dar a esse mundo uma cara parecida com a minha. Eu podia até mesmo tentar entrar de uma vez por todas na carreira de diretor, com meu velho projeto passado na Paris da belle époque, que eu amo tanto. Mas não, eu me deixei levar por razões sentimentais e pelas promessas deles, e agora rumino a presença repulsiva de Madusky. Malditos.
Recebi um convite por escrito pelo correio para comparecer a um coquetel na sede da emissora, em Wild Sierra, mas o convite não dizia qual era o objetivo do evento. Normalmente esses coquetéis servem para a emissora fazer uma triagem entre os membros da classe que não são seus funcionários sobre como eles estão se sentindo em relação a ela e à indústria, e por isso não me preocupei muito em me informar. Quando eu cheguei lá vi que esse era um coquetel diferente, pois não só havia relativamente pouca gente como estava cheio de funcionários da emissora, por exemplo meu velho amigo Charlie, que há anos é chefe do pessoal da iluminação, e o Quarteto. Não demorei a descobrir que a emissora tinha feito aquele coquetel para apresentar seu próximo grande projeto à equipe que trabalharia nele. Eles falaram desse jeito mesmo, apareceu um dos famosos porta-vozes, um que eu não conhecia, totalmente careca vestindo um terno bem recortado, como sempre, e começou a falar ao microfone (normalmente nesses eventos não tinha microfone, os contatos eram feitos somente na conversa), dizendo que uma nova série começaria a ser gravada para ser lançada no horário nobre, e que todos nós ajudaríamos a construir o sucesso dela, isso que muitos de nós ali sequer éramos funcionários da emissora e a maioria não fazia idéia do que estava acontecendo.
Só depois surgiu o habitual exército de homens e mulher boa-pinta, todos quarentões, e começaram a formar rodinhas, a conversar pessoalmente com quem estava ali. Comigo veio falar um que eu já conhecia, seu nome era Júlio ou Julien, ele estava vestindo uma jaqueta cor de vinho e uma camisa aberta no peito, e começou a falar sem parar, muito rápido, sobre como a série era interessante, sobre como seu criador era revolucionário, e sobre como eu seria bem remunerado por ela. Eu tentei explicar que não podia, que já tinha dois convites importantes de trabalho, e estava pensando em investir num projeto mais pessoal, mas ele parecia não me dar ouvidos. Até que veio o golpe de misericórdia. O maldito falou a única coisa que poderia me convencer de não aceitar algum dos convites que estavam pendentes e abandonar meu sonho pessoal. Ele disse que o diretor da série, diretor e co-autor, responsável pelo desenvolvimento e direção de TODOS os episódios da série, seria o grande diretor cult dos anos 70, John B. Quando ele disse aquilo, eu congelei. Minha paralisia foi tão súbita que até mesmo ele parou de tagarelar e me perguntou se eu estava bem. Eu respondi que sim e perguntei se ele estava falando sério, se O John B., John B., pensei ao mesmo tempo, o mago da minha infância, o profeta da minha adolescência, meu guia e pastor de todas as horas, fazendo suas magias e dizendo a verdade e guiando-me os passos através das imagens que criara, iria dirigir essa série integralmente para a emissora. E ele disse que sim. O maldito disse que sim e eu, completamente ignorante do que eu teria pela frente, ignorante da desgraça que Martin Madusky seria para mim, desisti de dois projetos promissores e temporariamente do meu próprio sonho e disse que Sim, também, eu aceito.
Maldito Julien!
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quarta-feira, 3 de março de 2010
A Série - S01E11
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Com outro salto, ele subiu na mesa e, sapateando, começou a soltar seus versos:
Assim que ele cantou o último verso, os outros três se levantaram e também saltaram sobre a mesa. Suas bengalas descreviam círculos no ar e, acompanhando a batida sincopada dos sapatos, seus braços faziam movimento de alavanca para tirar e voltar a pôr suas cartolas.
E continuando:
Ringo, que estava na frente dos outros, pulou para o lado esquerdo da mesa, assim como Django, enquanto Clint e Giuliano pularam para o direito. Mexendo os braços e as mãos numa dança que lembrava vagamente o charleston, os quatro foram se aproximando de Madusky, que ainda estava paralisado, e terminaram por reunir-se atrás dele, cada um dos quatro com uma das mãos sobre um ombro de Madusky e a outra levantada, com a palma aberta, vibrando no ritmo da música.
E então, para terminar, todos juntos num crescendo:
Após o que voltaram para seus lugares e sentaram-se absortos.
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Com outro salto, ele subiu na mesa e, sapateando, começou a soltar seus versos:
Nós podemos ver, como você está triiiste
Mas isso não é nada que nos limiiite
Nos parece que você gosta de mandar
E talvez até de os outros humilhar.
Mas nós não gostamos disso aqui não
Por isso nós vamos te dar uma lição:
Mas isso não é nada que nos limiiite
Nos parece que você gosta de mandar
E talvez até de os outros humilhar.
Mas nós não gostamos disso aqui não
Por isso nós vamos te dar uma lição:
Assim que ele cantou o último verso, os outros três se levantaram e também saltaram sobre a mesa. Suas bengalas descreviam círculos no ar e, acompanhando a batida sincopada dos sapatos, seus braços faziam movimento de alavanca para tirar e voltar a pôr suas cartolas.
Nós não sabemos o seu problema,
Mas sabemos o que ele caaausa
Quando se sentir cansado e deprimido
Por favor dê uma paaausa
Trate bem os outros, sorria pra eles,
Sua vida vai ser melhor assim.
Se precisar de algum conselho, venha até mim.
Mas sabemos o que ele caaausa
Quando se sentir cansado e deprimido
Por favor dê uma paaausa
Trate bem os outros, sorria pra eles,
Sua vida vai ser melhor assim.
Se precisar de algum conselho, venha até mim.
E continuando:
Ouça-nos com atenção, o que vamos te falar:
Quando ajudamos um irmão, ele consegue se curar.
Sua dor tem solução, basta querer se ajudar.
Nós te damos uma mão, mas você tem que andar.
Quando ajudamos um irmão, ele consegue se curar.
Sua dor tem solução, basta querer se ajudar.
Nós te damos uma mão, mas você tem que andar.
Ringo, que estava na frente dos outros, pulou para o lado esquerdo da mesa, assim como Django, enquanto Clint e Giuliano pularam para o direito. Mexendo os braços e as mãos numa dança que lembrava vagamente o charleston, os quatro foram se aproximando de Madusky, que ainda estava paralisado, e terminaram por reunir-se atrás dele, cada um dos quatro com uma das mãos sobre um ombro de Madusky e a outra levantada, com a palma aberta, vibrando no ritmo da música.
Quando te jogarem ou você cair,
Lembre-se desses conselhos:
Para o seu mundo colorir
Ignore a dor em seus joelhos.
Lembre-se desses conselhos:
Para o seu mundo colorir
Ignore a dor em seus joelhos.
E então, para terminar, todos juntos num crescendo:
Só o que você deve (você deve!)
Só o que você deve (você deve!)
Só o que você deve fazeeeer,
É SOR-RIIIIII
IIIIIIIIIII
IIIII
III
I
R
!
Só o que você deve (você deve!)
Só o que você deve fazeeeer,
É SOR-RIIIIII
IIIIIIIIIII
IIIII
III
I
R
!
Após o que voltaram para seus lugares e sentaram-se absortos.
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