segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Todo Dia, X - Poesia

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Decidi escrever um poema
Com versos, e rimas
E tudo

Não é o que eu faço melhor, eu sei.
Sempre digo: “Não sei escrever poemas.”
Mas tudo bem,
Vou escrever mesmo assim.

É claro que não vai ser uma obra-prima.
Aliás, é provável que seja ruim mesmo,
No sentido medíocre e inescapável da ruinzice.

Mas tudo bem.

É só um poema, ninguém vai ler, e tal.
Não precisa ser bonito.
Nem lírico.
Nem rimar.
Nem ter ritmo.
Nem revelar o segredo profundo escondido nos corações humanos
.[enquanto eles se perdem construindo para si mesmos imagens que
.[os outros vão ver de maneiras completamente diferentes das que
.[eles imaginam.
Nem ser um poema, de Verdade.
Nem nada.
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sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Todo Dia, IX - Histórias

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“As guerras médicas são uma série de violentos conflitos que vem ocorrendo há séculos entre os alopatas e os homeopatas pelo controle das águas de São Pedro e Serra Negra, entre outras. O conflito também tem raízes ideológicas, sobretudo na discussão sobre a utilização do bordão de Esculápio ou do Caduceu como insígnia, razão inicial da cisão entre os hipocráticos. No final da Idade Média, o conflito atingiu seu ápice épico na batalha de Sar-Amiador, em que os exércitos do general Kikura, dos homeopatas, e do senhor da guerra Sarah Ali, dos alopatas, enfrentaram-se definitivamente, numa tentativa de encerrar a contenda que, já naqueles tempos, vinha se arrastando por anos sem conta. A batalha foi largamente documentada pelos cronistas da época, e por isso é possível fazer um descrição detalhada de seus movimentos e contrações internos.

Uma das principais características dessa batalha foi a presença maciça de diversos órgãos ou facções alinhadas com um ou outro sistema de pensamento. É possível analisar os resultados do conflito somente estudando-se as ações de cada facção. De fato, não surpreende que os homeopatas tenham sido derrotados. Suas forças não apresentavam a mesma coesão da dos alopatas. Com efeito, muitos dos ‘aliados’ dos homeopatas não estavam sequer interessados em combater, mas antes em praticar rituais que pareciam não ter nenhuma relação com o curso da batalha – embora, após a derrota, com a permanência dessas facções, esses rituais fossem revelar-se muito efetivos. Os únicos realmente dispostos a lutar eram a própria Velha Guarda do general Kikura, que mantinham a linha de frente e a retaguarda, destilando os blocos altamente condensados de soldados inimigos.

Enquanto isso, do outro lado do campo, o senhor da guerra Sarah Ali coordenava eficientemente seus batalhões. Os odontologistas, armados até os dentes, formavam a linha de frente. Todo o aparelho de guerra deles era polivalente, e permitia cortar, rasgar e esmagar os inimigos. Os geriatras, por sua vez, com toda a experiência acumulada de veteranos, mantinham os flancos, com movimentos pequenos, mas eficientes. Os oftalmologistas agiam como batedores, permitindo a Sarah Ali ter uma visão melhor do que acontecia – na verdade, toda a cabeça da operação estratégica do senhor da guerra foi eficientíssima: os nefrologistas filtravam as informações trazidas pelos oftalmologistas, e os neurologistas, em conjunto com Sarah Ali, planejavam e ordenavam as ações mais adequadas, coordenando todas as forças.

No entanto, nem todo o exército de Sarah Ali estava saudável. Os dermatologistas, recrutados para dar suporte à linha de frente, preferiam ficar se coçando a lutar, levando os ortopedistas a tentar corrigir sua postura, o que gerou um conflito dentro das forças alopáticas. Nesse momento, os odontologistas haviam construído uma ponte sobre o canal que cortava o campo de batalha, o que melhorou a circulação dos cardiologistas, que puderam fazer maior pressão sobre as linhas de frente homeopáticas. Os endocrinologistas, cheios de adrenalina, seguiram os cardiologistas, enfraquecendo sobremaneira o lado direito das forças similiares. No lado esquerdo, porém, uma surpresa! Os urologistas mudaram de posição, aderindo aos homeopatas e, levantando-se de sua posição de prontidão, onde até então se encontravam, formaram uma falange e penetraram no batalhão dos ginecologistas, dando uma nova mobilidade à batalha. Numa última tentativa desesperada, os acupunturistas, aliados dos homeopáticos, espetaram em vários pontos os exércitos alopatas, mas não foi suficiente. Os oncologistas, surgindo sombrios e inesperados da retaguarda da armada alopática, se espalharam rapidamente, dando a todos os batalhões um novo ânimo, e o conjunto de soldados avançou maciço sobre as linhas inimigas.

Acuados, os homeopatas fugiram para uma cidade próxima, onde estava situado seu governo, e tentaram se isolar. Mas os proctologistas, especialistas em arrombamentos, destruíram os ‘Portões de Fogo’ da cidade e deram a vitória aos comandados de Sarah Ali.

Os homeopatas, no entanto, não desapareceram. Como já apontava a caótica desunião de suas forças em Sar-Amiador, os inimigos dos alopatas dividiram-se em diversas correntes alternativas, como os próprios homeopatas e acupunturistas, além dos ayurvédicos, quiropráticos e adeptos da medicina ortomolecular, entre outros. As guerras, portanto, já encontraram seu fim, mas ainda persiste uma certa inimizade entre os descendentes de Hipócrates.”

(Introdução à História das Guerras Médicas, de Lobato Légio)

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(com L. Servidoni e J.G. Viana)
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quarta-feira, 25 de novembro de 2009

A Série - Episódio piloto

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Emanações percorrem o espaço vazio entre a tela e o sofá. O que há entre a Tela e o Sofá é isso, um espaço vazio, um vácuo contido numa Bolha apoiada no chão de taco, e entra ela e o chão um tapete. Quatro paredes definem o aposento, quatro paredes irregulares dotadas cada uma de seu próprio buraco. Uma delas tem a janela, a tela por fora dela, a veneziana deixando entrar somente rastros de luz. A outra tem o corredor, aquele retângulo cavado na parede sem porta que o complete, do chão ao teto rasgando a monotonia. À sua frente, atraindo toda a atenção com seu característico brilho que chia, a Tela. O quarto buraco são seus olhos.

Mas espere, o que é isso? A transmissão foi interrompida, o chuvisco tomou conta da Tela. Riscos de preto cinza e branco apareceram onde antes havia 65 mil cores, e a suave eufonia do palavrório que saltava da Tela foi substituída pelo ruído de uma víbora soltando levemente o ar por entre os extremos de sua língua bifurcada. Você é tomado por um leve desespero. Levanta-se de imediato e dá um passo em direção à Tela, mas o que o que você não esperava é que a Bolha estaria à sua frente. Você dá um passo e de repente o ar se torna mais espesso, fica difícil de respirar, mas seu passo foi muito largo, seu corpo inteiro já está dentro da Bolha, talvez o tornozelo direito tenha escapado, você leva as mãos ao pescoço GASP soluça buscando algum ar ao seu redor, estende o braço esquerdo com violência, numa última tentativa de tocar a Tela, e choca-se contra a parede à sua frente, já fora da Bolha que o sufocava. A Tela continua tomada pelo chuvisco. Você contrai as sobrancelhas, perplexo, e bate de leve, com carinho, do lado do aparelho. Por um instante o chuvisco torna-se mais intenso, e então um cinza chumbo com um som grave insuportável, e então uma pálida reprodução das imagens que até há pouco chegavam aos seus olhos. Indeciso, você deixa sua mão suspensa por ar por longos segundos, perguntando-se se deve ou não bater de novo. Mas sua ânsia pelas imagens é muito grande, maior que seu carinho pela Tela, e então você deixa seu braço descer e atingir o retângulo brilhoso, dessa vez com mais força que na anterior. Um chiado agudo atinge seus ouvidos, a cor e o movimento voltam a aparecer diante de seus olhos. Suspirando, você se deixa dar um passo para trás, e seu corpo atravessa a Bolha como se não houvesse nada ali, indo cair surdo no sofá atrás dele.

Atrás da Tela, você sabe, há um longo cabo. Esse cabo atravessa 35 metros de concreto para chegar ao topo do seu prédio, e se conecta como tantos outros às antenas que acima da Cidade se elevam, impávidas e opacas contra o céu quase-azul. Elas recebem as Emanações que viajam pelo ar, semelhantes às que atravessam a Bolha para alcançar seus olhos. Partem de lugares distantes, de pilares de aço inacreditavelmente altos, pontilhados de grandes gamelas receptoras-emissoras, fatias de uma esfera que não existe. As Emanações viajam pelo ar, sim, elas saltam suicidas de suas Alturas imponderáveis e um segundo antes de se esborracharem para sempre contra o chão indiferente elevam-se de novo e singram pelo espaço cavalgando com o vento. É isso, finalmente entendi. As imagens da Tela, elas vêm com o vento. Vêm com o vento e são abraçadas pelas antenas e deslizam suaves pelo cabo até explodirem exultantes na Tela que se liga. Mas escute, o que é isso? As Emanações murmuram. Se você chegar sua cabeça para perto da Tela, vai ouvir. A princípio parece um chiado, mas logo os sons confusos começam a tomar um contorno definido, e você pode entender o que elas dizem. Ouça, agora, as palavras das Emanações, ouça e compreenda seu verdadeiro sentido. Elas trazem notícias para você, notícias de muito longe, que vieram levadas pelo vento. Os ventos da mudança estão chegando.

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(Estréia em dezembro)

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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Todo Dia, VIII - Histórias

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1, 2, 3, 4 – e a música começou a tocar, simpática, melodia e ritmo bem conhecidos, soando com clareza nos sinais elétricos de sua mente, de onde ele não saía há mais de dez minutos. Lavava a louça com um esforço displicente, deixando o filete de água escorrer sobre os pratos, garfos e copos enquanto com a bucha já carente de sabão executava lentos e monótonos movimentos circulares e de vai-e-vem. Não enxergava, de fato, a louça à sua frente - seus olhos estavam separados de seu cérebro, comunicando-se diretamente com as mãos responsáveis pela ação. Mas a música começou a tocar em sua mente, e por um instante ele cambaleou no limiar entre torpor e consciência, e então lentamente começou a sair de dentro de si, no compasso das notas que, graciosamente, passara a cantarolar. Em movimentos contínuos e interligados, ele fechou a torneira, balançou as mãos molhadas e esfregou-as no pano da pia.

- Honey pie, you are making me crazy…

Ele lembrava bem dessa parte da letra.

- I’m in Love but I’m lazy… so won’t you please come home?

Suaves, os versos saíam de sua boca sem acompanhamento, enquanto no silêncio de sua imaginação ele ouvia o pianinho da música original. Continuou cantando ao ir até a geladeira e abrir a porta, e também ao pegar a garrafa de água gelada para beber. Não cantou enquanto a água descia por sua garganta, mas tão logo pôde suspirar “ah!” de refresco voltou a cantar, dessa vez uma outra música.

- The weather outside is frightful…

E enquanto o fazia sorriu, ciente do suor que grudava a camiseta às suas costas.

- But the fire is so delightful...

Por um instante sentiu-se em Nova York, numa noite de outono ou começo de inverno, quando o frio ainda não é tão severo, e as pessoas caminham encapotadas pelas ruas direto para dentro de casa, cena tão bem retratada em todo um gênero de filmes (e séries de TV) passados na cidade, assim como nas músicas de Sinatra, cuja audição de somente umas poucas notas já remetia imediatamente ao astro e à Big Apple.

- Since there’s no place to go, let it snow, let it snow, let it snow.

Nesse momento, já alcançara o corredor, e viu a irmã no quarto, curvada sobre o computador. Foi até ela e apertou-lhe as bochechas, obrigando-a a beijar seu rosto, saindo logo depois de perto dela. Ela riu e veio atrás dele, tentando agarrá-lo, mas ele se esquivou sem muita dificuldade. Se virou para ela e, fazendo uma dança estranha, começou a cantar uma das músicas que haviam inventado juntos. Ele ora balançava os braços, ora tentava sambar de um jeito que nenhuma escola de samba jamais havia presenciado, e nisso sua irmã o seguia, acompanhando-o nas coreografias já familiares para ambos, e cantando as letras simples, jocosas e nonsense que haviam surgido do nada em algum dia impreciso do passado dos dois.

Ele dançaram e pularam e riram, e até mesmo repetiram as danças e as músicas para seus pais, mas a energia deles, ainda que tenha durado, foi acabando, e terminaram por voltar cada um para seu próprio silêncio interior.

Ela para a cama e o computador, ele para o sofá azul na sala de tons pastel, onde sentou cansado e sorriu, um pouco contrariado, como se aquele momento pós-sonoro, aquele período de estafa após a execução de sua obra desde já para sempre perdida, tivesse algo de solene e exigisse uma postura séria, um espírito de contemplação indiferente que casasse perfeitamente, por oposição, ao descontrole expansivo das músicas que somente um instante atrás acabara de cantar, esperançoso de que a alegria e a expressão daqueles momentos eufônicos fossem capazes de libertá-lo da sórdida e sub-reptícia melancolia que não largava dele por nada.
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quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Todo Dia, VII - Divagações

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Não. O silêncio.

Meu corpo estendido na cama cheio de preguiça, o rosto contra o travesseiro, o braço esticado pelo prazer do movimento, o som alto que vem da TV, música e conversas e barulhos em vão. Está escuro no quarto mas ainda há som, o som da TV que entra pela porta aberta da sala iluminada, logo ali, onde ela se senta imóvel olhando para o brilho que brilha mais que a luz e vendo o som que aparece mais que o vento. Meu corpo, estendido na cama, sem nenhum corpo que o estenda de si.

Levanto, venho pelo corredor, aquele mesmo passo molenga, os ombros caídos, a corcunda ali mas sem mãe que diga “Olha a postura” ou qualquer um que comente “Erga os ombros!” Passo molenga e ombros caídos para através da porta de volta para o meu quarto, procurando afazeres para preencher o momento vazio. Amigos de sempre, os livros agora, nesse momento de desejo de movimento, não me agradam, palavras palavras palavras. Tento a poesia, mas também ela vai se arrastando pelos meus olhos até parar e uma canseira vir se abater sobre o coração.
As coisas que eu escrevo, dessas também já cansei, tantas vezes já lidas, raramente terminadas, deixe-as lá que é o lugar delas, paradas sem fim fracassadas por enquanto.

Penso nos meus fracassos, mas afasto esses pensamentos. Há sempre a incapacidade que nos ronda, ela ergue seu porrete e afasta qualquer um que deseje se aproximar. Estou aqui ainda, mas sozinho, não alcanço os que estão à distância de um braço porque... hein? Covardia fraqueza indecisão cansaço preguiça medo ou o quê?

Os dedos no teclado, as letras se escrevem. É noite. Estou aqui ainda, mas já-já vou embora. Passos de volta, passo molenga, a corcunda, ombros caídos. Ela ainda lá, parada, em frente ao brilho. Vou entrando pela porta aberta, no quarto escuro, mas sem silêncio. “Ei, criança, o que você tem?”

Não, nada.
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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Todo Dia, VI - Divagações

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Quem é você e o que você está fazendo, o que você está fazendo, o que você está fazendo? Quem é você e o que você está fazendo, o que você está fazendo, o que você está fazendo? Quem é você e o que você está fazendo, o que você está fazendo, está fazendo? Quem é você? O que você está fazendo? Quem é você e o que está fazendo?

Três pedras. Uma pra cima. Pra cima que sobe sobe sobe sobe. Uma pra baixo. Pra baixo que desce desce desce desce. Uma pra água que afunda e vibra e gira e dá a volta no mundo e polui os oceanos e macula os rios e transforma as águas em matéria negra e as areias em matéria bruta e dá vida e mata e mistura e faz um caldo pra surgir barro pra surgir lama pra você se arrastar para os seres se arrastarem para todos se arrastarem para se arrastar e dá a volta e vem por trás e te acerta na cabeça te matando num esguicho de sangue. Uma pedra.

Dois livros. Um para ler e um para queimar. Um para ler para abri-lo e seguir suas páginas e página após página seguindo-o e suas letras e suas leituras um livro grande como não sei se existe enorme muito grande mesmo mal dá pra carregar mal consigo vê-lo por inteiro um livro que eu abro e sigo para você abrir e seguir mas é muito grande mal dá pra vê-lo ou carregá-lo e me engole. Um para queimar pequenino assim de bolso como um papel amassado uma nota fiscal já sem serventia que você tira do bolso de trás e joga ao fogo displicentemente assim como se jogasse uma moeda em uma fonte ou para uma criança ou um mendigo você joga o livro pega no bolso de trás e nem olha para ele só joga no fogo e num instante de luz ardente ele pisca e desaparece assim uma faísca tão rápido que mal dá pra ver mas o fogo apaga e sobram cinzas e a chuva molha e o vento sopra e as letras as letras tão negras no fundo branco do papel como no fundo negro das cinzas elas se levantam e se reúnem e vêm rastejantes até onde você dorme e sobem pelos pés da cama e sobem pelos seus pés e seus pés são meus e as letras me envolvem e me agarram e me engolem. Um livro.

Um mundo. Não seremos como os deuses, não somos, não somos mais. A seta flamejante aponta a saída, e cabisbaixos com vergonha vamos andando, sim, de cabeça baixa, nus, devagar, sim, é noite mas quase dia é a hora mágica e vêm os raios e vem o sol e vem a luz e já não é noite. E eu levanto a cabeça e você e levanto os olhos e vejo que Ele, a partir de agora e para todo o sempre, está à nossa frente. Um mundo.

Mas quem é você e o que você está fazendo?
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sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Todo Dia, V - Histórias

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Faz tempo existia esse condado no final da estrada, um rincão de terra rodeado por uma cerca viva onde bois pastavam o dia todo mugindo alegres para as nuvens brancas passeantes pelo céu azul anil destacado contra os morros do horizonte alargado. A estrada virava viela e a terra ia seguindo numa trilha que cortava a vida verde até uma casa meio escondida entre as árvores, de tijolo de barro, uma casa grande de janelas largas cheia de sombras com poucas luzes entrando pelos umbrais. Mês e outro reuniam-se ali ao lado para comemorar a vida e a luz que ainda vinha, montavam bandeirolas esticavam o fio entre o teto e uns postes, uns paus de madeira colocados longe e embaixo uma fogueira que ardia até as primeiras luzes do esvanecer da madrugada. Fim de festa e todos eles caminhando devagar, o pé se arrastando ao outro, casais e homens sozinhos e pequenas filas familiares caminhando não sei pra onde, um andar vago, somente para tomar distância da casa velha e vazia onde Ele morava. Ele dava a festa e organizava tudo e colocava os paus e os fios e as bandeirolas e a fogueira e mandava trazer comida e doces e violas e ficava olhando as moças dançar sem falar uma única palavra. Os olhos iam se cansando e ele tirava cochilos ali mesmo à janela, em pé, encostado, e as pessoas fingiam não reparar, e continuavam dançando até o quase-amanhecer. Iam embora e fim de festa e ficavam as cinzas e a bruma e aquele cheiro de manhã cansada, e Ele meio acordado meio dormindo voltava pras sombras pra deitar no chão pra fechar os olhos mais uma vez pra ficar ali pra ficar sozinho pra ficar dormindo sozinho deitado nas sombras num depois de fim de festa.
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quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Melhores músicas dos Beatles com nomes de mulheres

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Faz um bom tempo que eu não falo sobre música aqui, mas não vou perder a oportunidade. Estava pensando noutro dia sobre as músicas dos Beatles com nomes de mulher no título, inclusive tendo algumas idéias interessantes para fazer com elas.

Resolvi então fazer um ranking (vocês sabem que eu adoro isso) com a minha ordem de preferência. Duas delas são covers, as do início da carreira deles. Das demais, a maioria está no White Album, pródigo em músicas desse tipo. Fiquem à vontade para concordar ou discordar de mim nos comentários.

1 - Martha My Dear (White Album)

2 - Dear Prudence (White Album)

3 - Eleanor Rigby (Revolver)

4 - Michelle (Rubber Soul)

5 - Julia (White Album)

6 - Anna (Please Please Me)

7 - Sexy Sadie (White Album)

8 - Lovely Rita (Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band)

9 - Polythene Pam (Abbey Road)

10 - Dizzy Miss Lizzie (Help!)

11 - Lucy In The Sky With Diamonds (Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band)

12 - Maggie Mae (Let It Be)

Ah, e pra finalizar: diferente do que muitos pensam, inclusive eu durante muito tempo, Penny Lane não é uma mulher, mas um lugar!
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sábado, 7 de novembro de 2009

Todo Dia, IV - Pensamentos

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Esculpir é um dos ofícios mais fascinantes que existem, a metáfora mais perfeita do ofício artístico. De modo geral há duas maneiras de encarar a arte. Uma delas é vê-la como criação, construção, como Proust construindo sua catedral de memórias ou quaisquer grandes autores criando seus mundos particulares que, por mais semelhantes ao mundo real sejam, lhe são próprios. A outra maneira é ver a arte como uma “filtragem” da realidade. Já falei sobre isso quando escrevi sobre a crítica, sobre como a crítica é um ponto de vista da obra de arte tal qual a obra de arte é um ponto de vista da Realidade. Mas não havia ainda encontrado uma metáfora que me concedesse tão perfeitamente a imagem do que consiste o lide artístico. Encontrei lendo o fabuloso livro de Andrei Tarkovsky, “Esculpir o Tempo”, onde a metáfora do escultor é usada, e aqui a reproduzo e expando. Esculpir consiste, pois, não em sobrepor elementos para criar um todo, mas em retirar do bloco concreto aquilo que não pertence à obra de arte. Seja mármore, gesso, ou granito, o elemento componente da escultura é várias vezes filtrado até atingir seu estado final, a perfeição ou ao menos o objetivo, o ponto em que se pára do escultor. Deus cria o mundo e nele coloca o mineral. O trabalhador vai até a mina e recorta um bloco de mármore ou o que quer que seja, o qual é levado até o artista. O escultor se vê então frente a frente com a impassibilidade ebúrnea da rocha, e com sua alma enxerga ali somente o futuro, somente o sublime que nasce do bruto. Começa então seu trabalho de artesão, o sentido de sacrifício da criação artística, pelo qual ele retira do bloco sólido tudo que é supérfluo, tudo o que não pertence à obra de arte. Assim também se pode dizer dos demais artistas, o pintor que retira cores do branco até encontrar o tom exato; o ator que retira o vazio do vazio e lhe imprime movimento e som; o poeta que retira a brancura da folha e o desespero do silêncio.

Construir ou filtrar? Qual é o verdadeiro processo de criação da arte?
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