terça-feira, 29 de julho de 2008

Pílulas Cinematográficas, Edição 3: Especial Top Five

Para completar as críticas de Sangue Negro, Onde Os Fracos Não Têm Vez e WALL-E, filmes integrantes do meu top-five de filmes lançados até agora esse ano no Brasil, venho com os comentários sobre Não Estou Lá e Cavaleiro das Trevas, os outros integrantes dessa lista.

__________________________________

Não Estou Lá (I’m Not There, Todd Haynes, 2007)

De biografias musicais, o cinema está cheio. Elas geralmente seguem sempre o mesmo esquema: do anonimato ao sucesso, logo seguido pelo “preço da fama” (geralmente relacionado à dobradinha trauma de infância + drogas) e posterior recuperação, que leva o artista a uma nova fase em sua carreira e à paz de espírito. Assim sendo, é um bálsamo ver nos cinemas (atualmente já em DVD) um filme tão original como Não Estou Lá. O início do filme já avisa: “baseado nas muitas vidas e canções de Bob Dylan”. E é até bom que seja assim. Caso contrário, alguém menos conhecedor das obras do bardo poderia ficar perdido. Isso porque, mais do que preocupado em contar de forma linear a história de Robert Zimmerman, Haynes quer desenhar uma espécie de trajetória “espiritual” do compositor, especialmente em relação ao seu desenvolvimento artístico. Por isso, Dylan é interpretado por seis atores no filme, entre eles um menino negro, que representa o início da carreira de Dylan, quando queria ser (literalmente) como Woody Guthrie, e uma mulher, Cate Blanchet, numa extraordinária performance, representando a fase mais roqueira de Dylan, quando ele virou “elétrico”, fumou maconha com os Beatles e acabou ojerizado por antigos fãs. Enfim: um filme obrigatório para os adoradores do artista, cheio de detalhezinhos deliciosos. E, para aqueles que não conhecerem a obra dele, um fascinante exercício de cinema.

______________________________________


Batman – Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, Christopher Nolan, 2008)

Por muito tempo, os fãs de quadrinhos têm esperado por isso: um filme que fosse ao mesmo tempo fiel e sério. Que, embora sendo respeitoso em relação ao material original, soubesse ir além do feijão-com-arroz que dominava as produções do gênero. E agora, parece que finalmente chegamos lá, de uma vez por todas. Mais que uma mera adaptação de quadrinhos, Cavaleiro das Trevas é um fenômeno, um filme já mítico, seja pela extremamente inovadora e bem sucedida campanha de marketing do filme, seja pelo marcante, e extremamente triste fato de Heath Ledger ter morrido, seja por elevar as adaptações de quadrinhos a um novo patamar. Análises minuciosas do filme já foram feitas por toda a parte, então prefiro não me alongar. O que faço questão de dizer, entretanto, é que esse filme merece ser visto e revisto, em memória sobretudo à interpretação extraordinária de Ledger, o Coringa definitivo, definitivamente, um papel hipnótico e assustador, ainda que melancólico, por mostrar o quanto o cinema perdeu com a morte desse ator. Felizmente, já se fala muito em Oscar póstumo para ele, e estou torcendo pra isso, de verdade. Que além dos recordes de bilheteria que o filme tem batido no mundo todo, e da majoritariamente positiva avaliação que tem recebido (nota 9,3 no IMDb, com mais de 150 mil votos, conceito A no Box Office Mojo, e 95% de críticas positivas no Rotten Tomatoes), ele também seja campeão em receber prêmios, pois essa atuação de Ledger, tristemente a última que ele levou até o fim (havia filmado metade de um filme de Terry Gilliam quando morreu), merece ser reverenciada.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Os 10 melhores filmes de 2008, até agora.


Nesse ranking, listo os 10 filmes lançados no cinema este ano no Brasil que são de minha preferência. No top-five, duas grandes estrelas do Oscar deste ano figuram. Sangue Negro, a última empreitada cinematográfica de Paul Thomas Anderson (que pode dirigir, pasmem, o filme de Metal Gear Solid!), o diretor que vem fazendo um filme melhor que o outro. Sua mais nova obra-prima é também sua melhor obra até agora, desde já um clássico da sétima arte. Próximo a ele, Onde Os Fracos Não Têm Vez tem seu lugar, não só como vencedor do prêmio da academia, mas também como uma obra contundente e poderosa sobre a violência, a passagem do tempo e a derrocada da civilização. Também no top-five, há dois filmes que, eu espero, sejam estrelas do Oscar do ano que vem. WALL-E, animação perfeita em todos os sentidos que "corre o risco" de tomar o pódio de melhor animação ocidental já feita, e Batman - Cavaleiro das Trevas, provavelmente a mais densa adaptação de quadrinhos de super-heróis a figurar no cinema até hoje, o deleite definitivo para os fãs do personagem. Fechando o top-five, Não Estou Lá, o sensacional e criativo filme de Todd Haynes sobre Bob Dylan. Finalmente, nas demais posições, destaques para Juno e Indiana Jones, filmes que combinam um espírito leve com diversão, embora cada um a sua maneira.

1. Sangue Negro, de Paul Thomas Anderson
2. WALL-E, de Andrew Stanton
3. Batman - Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan
4. Onde Os Fracos Não Têm Vez, de Joel e Ethan Coen
5. Não Estou Lá, de Todd Haynes
6. Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, de Steven Spielberg
7. Juno, de Jason Reitman
8. Homem de Ferro, de Jon Favreau
9. Cloverfield, de Matt Reeves
10. Desejo e Reparação, de Joe Wright
.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

O Relógio

.
A radiação de fundo do Universo produz um único som: tic-tac. Desintermitente, porque constante, o som escapa das revoluções de engrenagens que, em órbitas recorrentes, direcionam o funcionamento do mecanismo. Detrás da cortina, há um homem, que diletantemente ajusta todos os componentes da grande máquina, trabalhando silencioso, em vista de poder ouvir o quase imperceptível som das peças funcionando em conjunto.

Neste exato instante (tic-tac), esse homem (chamemos-lo Relojoeiro) caminha com passo firme, em plena luz do dia, em busca de um pequeno defeito em uma pequena pecinha do Mecanismo. Veste seu macacão jeans habitual e uma camisa branca por baixo, além dos sapatos perfeitamente polidos e do boné azul. Leva nas mãos uma caixa. Dentro da caixa, suas ferramentas.

O homem caminha rapidamente. Ele passa em frente a uma figura curvada em um banco. O banco está situado exatamente na linha que divide uma velha praça e a rua de carros passeando obsessivos. Na praça, um bosque é tudo. Cheio de árvores frondosas na aparência, mas muito velhas, algumas não mais que uma carcaça oca pronta para ser levada pelo vento. É outono, o verde e o vermelho disputam ferozmente o domínio da paisagem, ferindo com jatos de cor as folhas cadentes.

A figura curvada, indiferente à passagem do Relojoeiro, é um homem. Em verdade, vos digo: um velho de alma envergonhada, de costas envergadas. Em verde ele se veste, como que desejoso de poder permanecer ali sentado à eternidade, tirando do sol sua energia qual uma planta. Mas é em vermelho que me aparece, saturado de todas as imagens que essa cor carrega.

O Relojoeiro entra no bosque, e desaparece em meio às árvores. A Figura permanece curvada, no exato limite entre os ardentes combates que se degringolam no bosque e o movimento constante dos carros na rua à sua frente. Sapateando na calçada, surge um outro alguém, um Jovem que vem, da mesma direção que o Relojoeiro, cantarolando tão baixo que mal pode ser ouvido.

Sem hesitar, o Jovem se senta ao lado da Figura, esticando as pernas e bocejando como se acabasse de acordar. A Figura, assustada, se move – muito pouco – e lança um rápido olhar para o Jovem. Uma risadinha, quase imperceptível, se segue. Para ele, aquele moço é só um bebê, que estica os braços e abre a boca, na ânsia de obter comida. O Jovem percebe seu movimento, e leva as pernas para trás, encostando totalmente as costas no encosto do banco. Depois, deixa a parte de cima de seu tronco inclinar, e apóia os cotovelos sobre os joelhos. Ele fala:

- Lindo dia, não?

A Figura parece que se assusta novamente. Ergue o corpo com vagar e gira o rosto para encontrar o do Jovem. Ela fala:

- Todos os dias são lindos. Todos os dias são tão belos quantos horríveis, não há nenhum que seja diferente!

Espantado com a resposta eloqüente, o Jovem fita a Figura com olhos bem abertos. Quem seria aquele velho curvado, tão desiludido com a beleza dos dias? Não vendo outra resolução para a questão, ele diz:

- Qual é o seu nome senhor? – ao que o outro responde:

- O que importa? Isso não dirá nada para você. Talvez uma indicação sobre minha ascendência, ou nem tanto. Tente perguntar quem eu sou. – O Jovem encontra-se em uma situação delicada. Tem medo da figura curvada, mas também curiosidade. Não havendo escapatória, resolve acatar a sugestão do outro.

- Quem é você, senhor? – A Figura se ergue um pouco mais. Seu rosto já está acima do do Jovem. Este busca acompanhá-lo, deixando que os joelhos recebam suas mãos.

- Definitivamente, eu não sou o Senhor. O que eu sou, então? Bem, eu sou um velho. Muito velho. Posso ser só isso, mas pelo menos o sou bem! Sou tão mais velho quanto o mais velho que você puder imaginar, e ainda mais. Muito mais.

O Jovem tenta perseguir os olhos da Figura, mas eles lhe fogem, com movimentos rápidos, e os cabelos brancos também lhe atrapalham, caindo com constância para as têmporas e além. Só o que ele vê com perfeição da Figura é a boca, uma boca que tem a força para dizer muitas coisas, mas peca em fraqueza para permanecer fechada. O Jovem quer resolver o enigma da Figura. Ele está ali, irá em frente.

- O que você faz aqui? – a boca da Figura, agora há pouco largada em si mesma, se fecha com rapidez. Os olhos, agora há pouco fugidios, param, e se viram lentamente, encontrando pouso nos do Jovem.

- Oxalá eu pudesse responder a essa pergunta. Só o que eu posso dizer é: o que eu quero fazer aqui, mas ainda assim... - e se cala.

Agora (tic-tac), há silêncio. O Jovem não tem coragem de interrompê-lo. A Figura (quem sabe o que pensa?) não o faz, tampouco. Só o que soa, por todo o espaço ao redor, é o mesmo som, um ruído perfeitamente constante, perfeitamente uniforme. O ruído preenche tudo que a Figura e o Jovem tocam. No banco, no chão, no bosque e na rua. Ali, no limite entre ambos, entre o bosque e a rua, entre o Jovem e a Figura, o ruído está presente. Constante, infinitamente constante, ele soa: tic-tac.

- Meu pai... – e o som de sua voz é como um trambolhão de pêndulos e sinos e de relógios esganiçados e de pratos batendo – era um relojoeiro. – O Jovem ouve a Figura atentamente. – Ele construía seus relógios como obras de arte, mas de uma maneira matemática. Veja, num relógio... – a Figura hesita um instante. – tudo tem seu lugar. Cada engrenagem, cada pequena pecinha. E meu pai era um gênio, ele foi o maior de todos os relojoeiros. Seus relógios eram coisas além do que poderia ser concebido por uma mente menor. Eles transcendiam tudo. Existiam além da beleza, além da arte. Os relógios de meu pai existiam além do tempo.

Os olhos do Jovem não conseguem desviar sua trajetória do rosto da Figura. Para ele, é como se estivesse sendo-lhe revelada ali uma verdade secreta. A história da Figura, que a principio parecera só um velho rabugento, o cativa imensamente.

- Porém, eu... – uma pausa, a maior de todas. Enorme, indivisível, opressiva. Mas logo se desfaz. – Eu me sentia como uma pecinha que não se encaixava no mecanismo da vida de meu pai. Minha mãe morrera quando eu tinha poucos anos. Ela era para ele, para mim também, um ideal, a imagem perfeita. Se para mim era a imagem do amor perfeito, que eu não conhecia, para ele era como um mecanismo perfeito, o melhor relógio jamais feito.

O quadro não se alterou. Permanecem ali os dois, Jovem e Figura, Bosque e Rua, e o Limite, e o Ruído.

- É claro, ele sempre deu mais atenção aos seus relógios do que a mim. Eu era uma engrenagem que não rodava da maneira correta, que tinha algum defeito, e por isso era simplesmente deixada de lado. Isso sem dúvida confunde muito a cabeça de uma criança. E não só me confundiu, mas imprimiu em mim um ódio enorme. Naquela época, sim, eu me lembro bem. Ele saía da cidade constantemente. Uma vez por semana, às vezes mais. Passava o dia todo fora. Ele me dizia que estava se encontrando com outros relojoeiros, trocando trabalhos, técnicas... Veja, para meu pai, nenhum de seus relógios podia ser perfeito. Esse era o tema da maioria de nossas conversas. A impossibilidade da perfeição. De um relógio, ou de tudo.

O Jovem trouxe o rosto mais para perto do rosto da Figura, para ouvi-lo melhor.

- E o motivo disso tudo, dessa impossibilidade, por mais irônico que possa parecer, era o próprio tempo. Ele dizia que um relógio, quando em movimento, se desgasta. Que o movimento do próprio tempo desgasta as coisas, que ele destrói tudo. Para ele, o relógio perfeito seria aquele da inutilidade perfeita: um relógio que não mostrasse o tempo, visto que este simplesmente não existiria. Para ele, o relógio perfeito estaria parado no tempo, e o tempo pararia com ele, e para sempre ele seria apreciado, no exato instante de sua concepção, no instante de sua finalização, na hora mágica quando ele estaria pronto, e nada mais. Nem velho, nem usado, nem quebrado, nem funcionando, nada, somente pronto. Aí então ele seria perfeito.

Os carros deixaram de passar na rua. As folhas deixaram de cair.

- Um dia, eu simplesmente cedi ao peso. De peça inútil passei a mecanismo defeituoso. Meu pai se isolara ainda mais nos últimos tempos. Estava fora naquele dia. Então, eu entrei em seu quarto – uma sombra de dor passa pelo rosto da Figura. – e quebrei todos os seus relógios. Suas maiores obras-primas, eu as joguei no chão e as abri e desmontei uma por uma arremessando longe cada minúscula engrenagem, cada correia, cada parafuso. Quando meu pai voltou para casa, sua oficina era somente uma ruína. Eu o estava esperando ali, sentado no canto, vivendo aquele torpor que nos domina após a implosão de nossa mente, a confusão da raiva. Em suas mãos, ele levava uma caixinha preta.

O silêncio a tudo oblitera, é ao mesmo tempo causa e efeito. Só o que há é ruído: tic-tac.

- Depois daquele dia, ele se tornou totalmente fechado. Andava pela casa se arrastando, taciturno, num estado de quase inconsciência. Não mexia mais em suas ferramentas, não fazia mais relógios. Quase não trocávamos palavras, o essencial mal era dito. Então, ele caiu doente, ficou na cama cheio de febres e convulsões horríveis. Passaram-se poucos dias, e ele morreu. – os próprios olhos da Figura parecem nublados – Só o que me restava dele então, além das roupas e das ferramentas, era a caixa preta, que permanecera sempre fechada após sua primeira aparição. Quando voltei de seu enterro, peguei a caixa, e deixei que ela ficasse em meu colo, ali parada. Aquela caixa se tornara para mim símbolo da morte de meu pai, era uma lápide que precocemente se abatera sobre ele, acompanhando-o até o instante final. Quando tomei coragem, a abri. Lá dentro, encontrei um relógio. Parecia muito simples, mas junto com ele havia um bilhete. Ali, estavam escritas palavras de cujas formas me lembro perfeitamente até hoje, como se estivessem à minha frente: "Para meu filho, o relógio perfeito".

Tic. Tac.

- Naquela hora, fiquei um pouco assustado. Levantei-me com o relógio nas mãos e fiquei encarando-o. Ele estava parado, e marcava a meia-noite. Ergui meu braço lentamente, estendi os dedos para ele, e com uma calma infinita, dei corda.

Tictac. Tictac.

- E ele se moveu. Somente isso, os ponteiros começaram a andar e andar e andar, me hiptonizando em seu translado rigoroso.

A Figura puxa a manga de seu blusão, e em seu pulso esquerdo o jovem pode ver um relógio simples, com a única peculiaridade de ter um ponteiro verde e outro vermelho. A marcha dos ponteiros também o hipnotiza, a passagem de todo o tempo marcada no compasso daqueles dois braços, daquelas setas que audaciosamente apontam para fora, indicando a centrípeta fuga do âmago das coisas, do cerne do próprio tempo.

- Por que as cores? - diz o Jovem.

- Quem sabe? - diz o outro. - Caprichos de meu pai. Talvez ele pretendesse que o verde da vida e o vermelho do sangue fossem um símbolo da dicotomia que acometeria aquele que parasse no tempo, ao mesmo tempo vivo e morto. Ou talvez manifestasse a esperança de ver seu sonho realizado e a raiva advinda da frustração de não conseguir levá-lo adiante.

Tictactictactictac. A Figura vira seu corpo em direção ao Jovem e o encara frente a frente.

- Ele passou toda a vida tentando domesticar o tempo. De fato, fez isso melhor do que ninguém. Seus relógios atingiram o máximo patamar no intento humano de subjugar o passar do tempo a um peso que o mantivesse preso. Foram obras-primas, obras-primas do cárcere, prisões para o tempo. Quando ele percebeu que havia, contudo, um limite onde poderíamos aprisionar o tempo, passou a dedicar sua vida ao único sonho de manter o tempo atado definitivamente, de mãos presas e prostrado ante seu mestre, que seria aquele que fosse como um relógio perfeito. E, no fim da sua vida, ele conseguiu. Não porque estivesse morrendo, mas porque aquele só poderia ser o fim para ele. Quando conseguiu engendrar um relógio perfeito, e depois viu que tudo o que havia feito antes estava em ruínas a partir daquele momento, ele entregou suas armas e morreu. É assim que eu vejo as coisas...

Aproveitando a pausa, o Jovem se apressa em dizer:

- Então ele conseguiu? O Relógio era mesmo capaz de parar o tempo? - neste instante (tic-tac), a Figura encara os olhos do Jovem e desvela os seus próprios. Os de um se abandonam nos do outro, se misturam, tornam-se unos.

- Ele foi capaz de resistir ao fluxo das horas, de me manter isolado em relação à marcha dos anos. Por quanto tempo, não sei. É o problema dos antigos... nunca sabem precisar o tempo... tudo ocorre numa esfera paralela à que eles estão, e sua própria órbita tem um ritmo que, de dentro pra fora, ordena todos os demais. No meu caso, talvez isso tenha acontecido deveras, mas quem é que possui a resposta? Se eu vivi muitos anos, isso pode ter outra explicação... Sim, estou vivo há anos sem conta, mais do que posso me lembrar, mas eu parei no tempo? Veja este corpo velho e carcomido, quando meu pai morreu eu era só uma criança!

A Figura baixa seus olhos e torna lentamente à sua posição inicial: imóvel, curvada.

- Não se pode parar o tempo, não da maneira como meu pai sonhou. O relógio e eu continuamos correndo, e embora tenhamos corrido por muito tempo, hoje somos velhos e desgastados. Assim também são todas todas as coisas: velhas e desgastadas. Hoje o sol brilha menos, o verde é menos verde, o vermelho, mais pálido. Respondendo à sua pergunta, meu jovem, o que eu quero fazer aqui é não seguir essa regra, é permanecer imóvel, no tempo e no espaço, enquanto tudo ao meu redor se esfarela.

A Figura fecha os olhos por um instante, e suspira. Ao Jovem, parece que ela se curvou ainda mais.

- Mas é claro, isso não será possível. Sempre soube que o meu destino era o fracasso. Entretanto, ainda assim quis parar aqui, e permanecer isolado, num exílio de tudo que me envolve. Jovem, não deveria ter falado com você! Assim apressei minha sina. Em minha vigília eterna, sonho com uma grande torre, onde meu pai construiu um relógio, que avança lentamente até a meia noite e, quando a alcança, explode em mil pedaço, que estilhaçam, numa reação em cadeia, tudo o que tocam. E é aí o fim. Lembre-se disso quando eu houver lhe esquecido, pois é sempre valioso guardar memórias do futuro. Jovem, eu não viverei para ver o fim do mundo, mas você, embora já tenha morrido em mim há muito tempo, permanecerá. Agora vá, vá embora, não lhe desejo mais aqui.

O Jovem não está mais ali, só o que há é uma figura curvada sentada em um banco muito velho. De sua cabeça, caem alguns fios de cabelo, e eles são idéias. As lembranças de um estado que já se perdeu, e não pode ser recuperado. A figura curvada soluça, e num último esforço ergue o tronco para o céu, estende os braços, e de olhos brilhando e boca aberta fita tudo o que repousa acima. O céu lhe entra pelas órbitas e o preenche, e as pálpebras então se fecham e também os lábios se unem e os braços caem. Suas costas lentamente se curvam, sua cabeça abandonada pendendo do pescoço. Do bosque, sai o Relojoeiro, assoviando, e toma a direção em que o Jovem seguiu. No punho da Figura, os ponteiros verde e vermelho do relógio diminuem a velocidade, muito lentamente, e param. As folhas tornam a cair e os carros continuam a passar: tic-tac.
.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Pílulas Cinematográficas, Edição 2

.
Resolvi fazer mais uma edição das “Pílulas Cinematográficas”, e talvez seja a primeira de muitas. Quando eu tive algo de mais substancioso para dizer sobre um filme, faço a crítica. Senão, um comentário como os que vão abaixo já está de bom tamanho

____________________________________________________


Patton, Rebelde ou Herói? (Patton, Franklin J. Schaffner, 1970): Do mesmo diretor de Planeta dos Macacos, é um pequeno épico pessoal divertido e emocionante. É um retrato do General dos EUA George Patton (interpretado por um brilhante George C. Scott) em duas peripécias durante a Segunda Guerra Mundial. Ele acreditava em reencarnação, e que havia lutado nas Guerras Napoleônicas, Púnicas e em muitas outras. Escrevia poesia, mas falava palavrões a rodo e sempre dizia o que pensava. Isso acabou lhe causando muitos problemas, apesar de sua imensa habilidade em disciplinar soldados e no combate. Amava a guerra (e pedia perdão a Deus por isso), e com isso era ele próprio (como é muito bem mostrado no filme) a imagem e semelhança de seu país, que adora estar em combate e venera os vencedores, ao mesmo tempo em que despreza os covardes e os perdedores.

__________________________________________

Kundun (Idem, Martin Scorsese, 1997): O protagonista desse filme é o exato oposto do anterior: ama a paz e pratica a não-violência. Trata-se da biografia do 14º (e atual) dalai-lama, desde a infância até o exílio, fugindo de um Tibete invadido, violentado e desfigurado pela China comunista. Foi feito há mais de dez anos, mas está mais atual do que nunca. Deveria ser passado em todas as escolas e emissoras de televisão do mundo inteiro, como uma lembrança de que nem o progresso, nem a educação, nem a saúde, nem a igualdade e nem o espírito olímpico são justificativas para o genocídio.

____________________________________________

Amarcord (Idem, Federico Fellini, 1973): Uma das maiores obras-primas do cineasta italiano (e olha que ele tem várias). Um desses filmes deliciosamente divertidos sobre a infância e a memória, cheio de cenas antológicas e das bizarrices típicas de Fellini. Também tem um lado extremamente melancólico, mas está tudo equilibrado de uma maneira perfeita, indicador da maestria do diretor e de seu domínio da linguagem cinematográfica.

Depois de um longo afastamento, o retorno

Voltei de viagem, mas estive fazendo muitas coisas. Aguardem para breve mais pílulas cinematográficas (com Hitchcock no meio!) e as inéditas Leituras, que começarão a ser publicadas em breve. Não percam!

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Os Esquecidos

Buñuel é conhecido como o grande cineasta do surrealismo. Entretanto, nem todos os seus filmes apresentam uma entrega completa ao gênero. Alguns, como O Anjo Exterminador, apresentam somente algumas características surrealistas. Outros, como esse Os Esquecidos, não são nem um pouco surrealistas. Sendo, pelo contrário, extremamente realista, esse filme é mais uma obra-prima do diretor, além de um contundente e feroz retrato do encontro da miséria e da juventude. Difícil não estremecer em algumas das cenas, e mais difícil ainda é não se sentir extremamente perturbado ao final do filme, uma daquelas obras de arte “malditas” que representam ao mesmo tempo um soco no estômago.

Basicamente, o filme acompanha a vida de um bando de moleques miseráveis na Cidade do México, especialmente após o retorno de um conhecido, fugido do reformatório. O filme vai construindo lentamente nossa relação com os personagens, para depois subverter nossas expectativas e entregar situações que, se não farão muitos se emocionar, com certeza farão todos prenderem a respiração. O filme se diz baseado em histórias reais. De fato, elas podem estar acontecendo, de forma semelhante, em qualquer cidade do planeta. Mas, para além da universalidade da miséria, essas histórias dão humanidade surpreendente para os pobres diabos. O personagem Pedro é um dos mais bem construídos e interpretados que eu vi nos últimos tempos.

O surrealismo do diretor dá as caras em somente uma cena, que representa justamente um sonho, mas cujo apuro técnico me surpreendeu. É uma cena perfeita, e assustadora, nada demais também para o gênio deste que é um dos grandes cineastas de todos os tempos. Os Esquecidos deve ser visto, enfim, por muitos motivos: por sua análise da miséria; por seu retrato arrasador da vida desses jovens; e por seu imenso valor artístico. Wilde disse que toda forma de arte é completamente inútil. Certo, talvez um livro ou filme não tenha o poder de mudar o mundo. Mas, como já foi dito, eles podem mudar as pessoas, e essas podem por sua vez mudar o mundo. Que esta obra de arte, em especial, se não mudar o mundo, pelo menos nos faça pensar profundamente sobre as questões importantes que apresenta, e aí então seu papel já estará mais que cumprido.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

WALL-E

Difícil dizer algo sobre WALL-E que já não tenha sido dito. Que ele é um filme apaixonante, que é uma obra-prima, que é perfeito... Tudo isso já foi dito, e não me cabe outra coisa que não fazer coro a essas verdades. WALL-E, último filme lançado pela Pixar, é de fato a melhor animação do estúdio, provavelmente a melhor animação digital já feita, e uma das melhores animações, em qualquer estilo, de todos os tempos.

Mais do que isso, representa o completo amadurecimento da animação ocidental (estadunidense e comercial, pra ser mais preciso), e um trunfo da narrativa cinematográfica. Não só uma grande animação, WALL-E é uma grande obra da Sétima Arte, o melhor filme do ano até agora e que, eu espero, tem grandes chances de ser ao menos indicado ao Oscar de Melhor Filme.

Tanto já foi dito sobre os personagens, sobre o fato de homenagear, concomitantemente, os filmes mudos (pelo fato dos personagens principais praticamente não falar nada), e os clássicos da ficção científica (especialmente 2001 – Uma Odisséia no Espaço, tanto no design do Piloto Automático quanto no uso de Assim Falou Zaratustra e Danúbio Azul na trilha sonora), que não vale a pena se deter nesses pormenores.

O que vale mesmo é festejar por ter aparecido uma prova tão contundente de que o Cinema (comercial) ainda tem criadores tão apaixonados por seu trabalho e tão conscientes do instrumento que usam. A Pixar tem sido a grande contadora de histórias deste século, e só espero que surjam para ela adversários à altura. Os espectadores agradecem!

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Pílulas Cinematográficas, Edição 1

Tenho visto muitos filmes ultimamente. Vou então fazer comentários breves sobre alguns deles.
________________________________

Butch Cassidy (Butch Cassidy and the Sundance Kid, George Roy Hill, 1969): Filme que repete a parceria do diretor George Roy Hill com a dupla Paul Newman e Robert Redford. É um faroeste com tons de comédia extremamente divertido, que conta a história dos dois pistoleiros do título. Possui passagens interessantes em tons carregados de sépia, além de duas das cenas mais famosas do cinema. O passeio de bicicleta de Newman ao som de Raindrops Keep Fallin’ On My Head. E o final, antológico.
________________________________

Fargo, uma Comédia de Erros (Fargo, Joel [e Ethan] Coen, 1996): Um dos mais famosos do Irmãos Coen, e guarda muitas semelhanças com o último deles, o oscarizado Onde Os Fracos Não Têm Vez. Os temas são muito parecidos, os arquétipos de um encontram sua contraparte no outro, há uma maleta com dinheiro... aqui, porém, os tons são frios, gelados na verdade, ao contrário do calor do faroeste pós-moderno. O humor, embora negríssimo, também está mais presente aqui, e a cena final, de certa forma, é o exato oposto da de Onde os Fracos Não Têm Vez: é a mulher que fala, e há muito otimismo e conforto, diferente do desespero e
da entrega à derrota do outro. Parece que os Coen perderam de vez a esperança.
________________________________

Um Estranho no Ninho (One Flew Over the Cuckoo’s Nest, Milos Forman, 1975): É um dos únicos três filmes a conquistar as cinco principais categorias no Oscar: Filme, Diretor, Roteiro, Ator e Atriz. Os outros dois foram Aconteceu Naquela Noite, de Frank Capra, e O Silêncio dos Inocentes, de Jonathan Demme. É também um filme fabuloso, com atuações extraordinárias de todo o elenco e uma poderosa mensagem contra o conformismo. A cena final é particularmente emocionante, mas o filme todo é de cair o queixo. Imperdível.

terça-feira, 1 de julho de 2008

E então, acordou.

Ele se despediu dos pais com um boa-noite rápido e distante e logo entrou no quarto. Encostou a porta ao batente e foi pra cama, primeiro sentando-se e depois jogando as pernas pra cima. Colocou-as debaixo das cobertas e se virou, meio-corpo, para ajeitar o travesseiro. Já quase cedendo ao cansaço, esticou o braço e com o dedo clicou no interruptor, interrompendo então a luz. Sua cabeça rapidamente se jogou para trás em direção ao travesseiro, encontrando-o somente um instante antes do que esperara, o que causou nele uma leve dor. Passado o arremedo de contratempo, ele deixou o ar entrar em grandes lufadas nos seus pulmões, e soltou pequenos arrotos, que o lembraram instantaneamente do jantar. Enquanto praticava esses exercícios pré-sono, notou pela fresta da porta que a luminosidade da sala diminuíra, deduzindo daí que a luz havia sido apagada. O lusco-fusco-quase-breu, violado somente pelos tênues raios luminosos da tevê, logo o envolveu num clima aconchegante, fazendo-o esquecer os pequenos arrotos, o cansaço, o jantar e o boa-noite distante. Sem que sua mente tomasse nota disso, adormeceu.

E então, acordou. Com um solavanco, da total ausência do sono passou à existência, e a tangibilidade do colchão e o peso do ar, tão familiares, o fizeram ter certeza de que havia acordado. Sonhara talvez com um vôo, ou uma queda, não se lembrava. Só sabia que se encontrava tomado por aquele estranho sentimento que nos envolve quando acordamos de um sonho intenso do qual não lembramos. Aquela sensação de que algo importante nos escapa, de que sabíamos algo que se perdeu. A sensação de impotência diante da inevitabilidade do esquecimento. Sem, no entanto, formular tais pensamentos muito racionalmente, logo eles se dissiparam e ele pôde se levantar.
Desde o momento em que tocou o soalho com o pé estranhou o silêncio. Não se ouvia sequer um ruído dentro da casa. Seus pais, normalmente tão barulhentos pela manhã, estavam totalmente silenciosos. Ele abriu a porta do quarto, que emitiu um gemido leve, e saiu para o corredor. Na sala de tevê, tudo estava mais ou menos como ele deixara na noite anterior. O céu que se entrevia pela janela parecia bem limpo. A porta do quarto dos pais estava fechada, mas com um leve empurrão ele a abriu. Ali dentro não havia ninguém. A cama jazia impecavelmente arrumada, e o banheiro também estava sereno e limpo.
Com passos rápidos, saiu dali, atravessou a sala de tevê e chegou à sala da frente. Abaixou-se e tirou o telefone do gancho. Com o dedo firme, apertou o botão de ligar e levou o aparelho à orelha. Não ouviu nenhum som. Tentou discar o número do celular de sua mãe, e depois de seu pai, mas em ambas as vezes não obteve nenhum retorno. Correu então de volta à sala de tevê e com o controle remoto ligou o bonito aparelho que os pais haviam comprado no último mês. Zapeou por todos os canais mas em todos eles só havia chuvisco. No seu quarto, tentou ligar o computador, mas o monitor só apresentava uma tela preta.
Estava sendo tomado lentamente pelo desespero. Da apreensão inicial de acordar com a casa vazia, passando pelo estranhamento de não conseguir se comunicar com seus pais e pelo medo flagrante de não obter ali nenhum sinal do mundo externo, chegara a um desespero num estado puro, que só fazia se aprofundar. Obrigou-se então à calma, e decidiu ser melhor buscar uma alternativa mais imediata de contato com algum outro ser vivo.
Tirou o pijama e enfiou-se rapidamente numa camiseta e numa bermuda, calçando depois os tênis. Voltou à sala e foi para a cozinha, onde abriu a geladeira - repleta, sua mãe fizera compras no dia anterior - e pegou uma barra de cereais para mordiscar. Abriu a porta e saiu do apartamento. No hall, chamou o elevador e, num arroubo de ansiedade, apertou as campainhas dos outros apartamentos do andar. Nenhum ofereceu resposta. Tentou então abrir as portas, mas elas estavam trancadas. Com isso, lembrou-se de pegar a chave de seu próprio apartamento. Tirou-as de cima da mesa e as guardou no bolso, fechando a porta em seguida. O visor do elevador indicava que ele continuava parado, e impaciente desceu pelas escadas.
Já no estacionamento, a primeira coisa que fez foi ir até sua garagem. Encontrou os carros de seu pai e sua mãe, que surpreendentemente estavam abertos. Estavam também, contudo, vazios. Nada nos porta-luvas, ou nos porta-malas. Totalmente incrédulo, ele foi correndo até a portaria, que estava vazia. O monitor das câmeras de vigilância estava desligado, e não havia nenhum jornal ou correspondência. O portão da rua, porém, estava aberto, e sem pestanejar ele correu para fora.
Nenhum carro havia ali, nem animal. As vacas que esporadicamente pastavam no terreno em frente ao seu prédio não estavam ali, nem estava ninguém. Andando em pleno asfalto, subiu sua rua até o prédio mais próximo, cuja portaria também estava vazia, embora o portão estivesse fechado, e o mesmo se sucedeu com o próximo. Sequer se deu ao trabalho de tentar pular. Melancólico, começou a descer sua rua e voltar para seu prédio, devorando ansiosamente a barra de cereais que trouxera. Desta vez, contudo, encontrou o portão fechado. Forçou a memória para ver se o havia fechado, mas não conseguia lembrar de nada.
Pulou, então, para dentro, e começou a andar em direção aos elevadores. Quando botou os pés no estacionamento, viu que não havia mais carros ali. Os veículos que minutos antes preenchiam o espaço agora eram sumidos, amplificando a sensação de vazio. Correu para sua própria garagem, e esta também estava vazia. A numeração das vagas estava desgastada e ilegível, e a localização naquela sucessão de pilares de cimento se tornara confusa. Com alguma dificuldade, reencontrou o elevador, mas esse mais uma vez não veio ao seu chamado.
Subiu pelas escadas, que estavam escuras, mas teve de contar uma por uma as portas até chegar ao seu andar, pois a numeração estava também ali apagada e esquecida. Quando finalmente chegou ao número de seu apartamento, abriu a porta e entrou no hall. Ali também estava escuro, embora menos, pois a luz que escapava pela fresta das portas dava algum alento ao ambiente. Entretanto, não o suficiente para que ele conseguisse enxergar o número do apartamento, e com isso acabou tendo que se guiar pela memória.
Seu primeiro espanto foi ao girar a fechadura e descobrir a porta trancada. Não se lembrava de tê-lo feito. Pegou então a chave nos bolsos e no escuro tateou pelo buraco da fechadura. Quando alcançou-o e colocou nele a chave, contudo, ela não entrou, e ele se viu forçando-a contra ele. Perguntou-se se estaria mesmo no andar certo, mas seu desespero e ansiedade eram tamanhos que não se deu uma segunda chance. Jogou-se repetidas vezes contra a porta até arrombá-la. Era seu apartamento.
A visão dos móveis familiares trouxe-lhe então uma certa calma. Ofegante, foi até a geladeira, buscando algum bálsamo gelado para acalmá-lo naquele pesadelo. A geladeira estava vazia. Assim como vazios estavam todos os armários e gavetas da cozinha. Transtornado, foi à sala e ali também só havia móveis. A gaveta do aparador não guardava mais os habituais telefones de restaurantes nem tampouco a caderneta de endereços. Tentou novamente ligar a tevê ou o computador, mas nenhum respondeu. Foi quando reparou em seus livros, padecentes na enorme estante de seu quarto. Puxou o primeiro e começou a folheá-lo violentamente, ansioso por ouvir algum tipo de voz humana. As páginas, como leite e como neve, estavam brancas, e como tudo eram vazias. Folheou um por um, só para depois jogá-los ao chão. Os títulos também haviam desaparecido, das capas e de sua memória.
Tremendo e débil, foi até o banheiro lavar o rosto, mas nem uma gota de água veio aliviar sua febre. Dali, já tropeçando e esbarrando nas paredes, foi à varanda tomar um pouco de ar. Com os olhos arregalados, fitou a cidade, que podia ver até o horizonte. Desviando um pouco a cabeça, percebeu as plantas que sua mãe mantinha ali. Tocou a folha de uma delas e ela se soltou na sua mão. Estavam todas mortas. Desviou novamente o olhar e voltou ainda uma vez para a cidade. Dela, só percebia o silêncio. Não enxergava nenhum movimento, não importava quão longe tentasse olhar.
Surpreendentemente, já escurecia. Foi andando lentamente para trás até encontrar uma parede, e deixou-se escorregar por ela até o chão. Levantou os joelhos e apoiou o rosto contra eles. Não lembrava o nome de seus livros, ou de sua cidade, nem os de seus pais, nem mesmo o seu. Seu mundo afundava cada vez na palidez e brancura de solidão e esquecimento, e após o crepúsculo que se avizinhava, ele seria negro. Deixou escorrer as primeiras lágrimas enquanto pensava em quanto a noite seria longa.